quinta-feira, 14 de maio de 2015

Se a imigração for uma questão de números, os direitos humanos estão em risco




A União Europeia não está ameaçada por uma crise de imigração, argumenta o director da Amnistia Internacional para a Europa e Ásia Central, John Dalhuisen, lembrando que nos anos 1990 foram acolhidos muito mais refugiados dos Balcãs sem problemas.

John Dalhuisen falou com o PÚBLICO numa passagem por Lisboa, onde esteve a participar na Assembleia Parlamentar da União para o Mediterrâneo falando sobre imigração e asilo.
O director da Amnistia Internacional para a Europa e Ásia Central vê com bons olhos as propostas da Comissão Europeia (de que eram conhecidos apenas traços gerais no dia da entrevista), sobretudo o reconhecimento de que é preciso haver redistribuição das pessoas que a UE recebe entre os vários Estados-membros. Já ao atacar os traficantes na Líbia sem estabelecer canais para que os imigrantes possam sair do país, a UE poderá condená-los a viver em condições deploráveis.

Como vê as últimas propostas europeias em relação à imigração e às mortes no Mediterrâneo? Como convencer muitos países, pressionados por populistas e extrema-direita, a aceitá-las?

O que aconteceu nas últimas semanas, após o fim-de-semana em que de uma só vez morreram 800 pessoas, foi um acordar para um drama. As pessoas viram que o fim da operação marítima italiana foi um erro trágico, mesmo os populistas que não seriam favoráveis à imigração perceberam que não se pode deixar as pessoas morrer assim. Há pelo menos propostas para a parte da busca e salvamento. Há uma crise no mar, mas aqui o prognóstico parece bom.

E quanto à pressão para receber mais imigrantes?

Enquanto há uma crise global de refugiados – 50 milhões de refugiados ou deslocados em todo o mundo – a Europa não enfrenta uma crise de imigração. Ainda estamos a falar de cerca de 600 mil pedidos, números que são geríveis. Não temos uma crise migratória, mas temos desafios.

O número não é assim tão estratosférico, sobretudo se compararmos com a resposta ao conflito nos Balcãs nos anos 1990, quando os países europeus absorveram confortavelmente vários milhões de pessoas e isso não criou tensão social.

Há muitos mitos. Sondagens mostram que as pessoas acham que a percentagem de estrangeiros é maior do que na realidade, que o número de refugiados é maior. Como se luta contra isto?

Ouvimos hoje de novo na AR alguém dizer que entre 100 e 200 milhões de pessoas da África Subsariana estão a planear chegar à Europa. Como é que se consegue calcular isto?
 Podemos dizer que há 200 milhões de pessoas na Europa que já tiveram a ideia de talvez um dia ir viver para a América, isso não quer dizer que estejam a comprar bilhetes de avião. A realidade é que, se virmos no ano passado, dos 270 mil que entraram por rotas marítimas mais de metade eram refugiados – da Síria, Eritreia, Somália, Afeganistão. A ideia de que a Europa tem esta ameaça atrás dos refugiados, uma horda de pessoas que se querem aproveitar do sistema, é estatisticamente falsa. Agora, isto não quer dizer que se deva abrir as fronteiras a todos; isso é ridículo e cada país tem o direito e o dever de proteger as suas fronteiras.

Como se distingue migrantes económicos de pessoas com pedidos legítimos de asilo?

Essa distinção não pode ter como base o país de origem – não podemos partir do princípio de que todos os que vêm do Níger são migrantes económicos, porque alguns podem ter razões específicas. Grupos evidentes são mulheres (sujeitas a abuso, mutilação genital feminina, por exemplo), lésbicas, gays, talvez outros com ligações a sistemas políticos corruptos – vai sempre ser preciso uma avaliação individual. Mas não há razão para que essa avaliação não possa ser feita rapidamente, meticulosamente e com justiça, e depois as pessoas recusadas voltarem.

Estatísticas mostram que há uma grande diferença nas taxas de aprovação de vários Estados-membros. Porquê? A mesma pessoa teria hipóteses diferentes em países diferentes?

Em alguns casos sim. Mas alguma da diferença na taxa de aprovação reflecte a diferença da origem dos que pedem asilo e isso varia muito. Há países que têm muitos pedidos de sérvios ou kosovares e poucos desses são realmente casos genuínos de asilo.

No entanto, há mesmo diferenças. Essa é uma das coisas que a proposta da Comissão Europeia está a tentar mudar, ver se é possível harmonizar padrões. Penso que esta é uma parte interessante da proposta da UE que é de facto bastante radical. É muito corajosa, sensata...

E deverá falhar.

E deverá falhar, infelizmente. Porque a Europa vai ter mesmo de ter qualquer mecanismo. Ou não se tem de todo, ou tem de se ter um melhor. O sistema híbrido não é assim tão diferente, por exemplo, do euro, em que há uma moeda única sem união fiscal, e não está a resultar. A união de migração sem um sistema de distribuição também não vai funcionar.

A Europa rejeitou 55% dos pedidos de asilo que recebeu em 2014. O que acontece a quem vê o seu pedido rejeitado?

A Europa consegue fazer regressar cerca de 39% das pessoas que rejeita, o que é muito baixo. Este é um problema real que gera preocupações que prejudicam um sistema de asilo. É muito difícil de resolver, é preciso muita colaboração de países de origem, mas parece que a Europa precisa de ser mais dura com estes países.

Há uma opção melhor, que seria o regresso ao país de trânsito. Mas para se mandar de volta pessoas sem sequer analisar o seu pedido de asilo, tem de se ter a certeza de que se está a mandar para um país que as receba. E nem a Tunísia, nem Marrocos, nem a Turquia têm sistemas significativos de asilo.

A Austrália, onde havia um problema de chegadas de pessoas de barco, paga ao Camboja para os receber, e este é um país que não tem uma grande tradição de respeito pelos direitos humanos.

E a Europa faz algo ligeiramente semelhante embora numa escala muito menos visível e de um modo menos cruel. O sistema [europeu] tem assentado em construir muros em terra, e em contribuições financeiras de vários modos para as autoridades da Tunísia ou Marrocos, partindo do princípio de que estas vão impedir as pessoas de vir (o que é muito mais eficaz do que mandar as pessoas embora). Esta é uma das razões que levam as pessoas a tomar cada vez mais a rota do Mediterrâneo central, porque as outras se tornaram quase impossíveis. As pessoas vão pela que sobra, e tragicamente esta é incrivelmente perigosa.

As pessoas têm noção do perigo que enfrentam ao viajar?

Muitos têm alguma ideia dos perigos da travessia do Mediterrâneo e que a viagem até esse ponto também envolve um potencial para abusos. Mas acho que a maioria não percebe a escala completa de todo o horror potencial. Em particular na Líbia, onde acontecem coisas muito chocantes.

Por isso dizemos que é absolutamente legítimo atacar quem leva as pessoas [na Líbia], mas há um perigo muito real de que acabemos por deixar um grupo de pessoas ali sem hipótese de ir para mais lado nenhum.

O que falta nesta abordagem?

Enquanto a Europa vir a gestão da imigração como uma questão de números, vai haver violações de direitos humanos. Porque não se controla o lado da oferta. A oferta está a aumentar numa altura em que se quer que os números baixem. Se a motivação central for fazer baixar os números, isso só se vai conseguir com muitos atalhos e ignorando muitos direitos.

A questão inversa, no entanto, é interessante: podemos ter um sistema que respeite os direitos das pessoas que não faça subir imenso os números? A resposta muito honesta é "não". Mas se perguntarmos se esta subida seria numa escala que não fosse gerível, também acho que não, especialmente se houver investimento em cooperação com os países de origem e trânsito em particular no que diz respeito à migração económica. E a dada altura uma região como a União Europeia tem de simplesmente aceitar subidas e descidas da população refugiada global – há boas décadas, há más, não se decide ou controla.

Foto: John Dalhuisen AFP

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