Thierry
Meyssan*
Desde
há duas semanas que a imprensa internacional espalha rumores anunciando o
início de uma operação militar norte-americana contra a Síria. Thierry Meyssan,
que havia denunciado uma manipulação do general John Allen e dos seus amigos
tendo em vista sabotar o acordo E.U./Irão, retoma aqui o absurdo desta
proposição. Ele explica o porquê do apoio estratégico da Rússia e da China a
uma Síria laica não ser negociável.
A 7
de julho, o New York Times anunciava a criação de uma zona de
segurança na Síria, por Washington e Ancara, para abrigar refugiados sírios,
actualmente estacionados na Turquia [1].
Pouco após, a Casa-Branca desmentia esta informação. Eu expliquei, num artigo
precedente, que o New York Times havia sido intoxicado, ao mesmo
tempo, tanto pelo general John Allen, enviado especial para a Coligação
internacional anti-Daesh, e pelo governo interino turco [2].
Lembrei que Allen havia já participado em duas outras tentativas para sabotar a
paz na Síria, em Junho de 2012 e em Dezembro de 2014, e que o presidente Obama
tinha tentado, há quase três anos, fazer com que fosse preso, em Setembro de
2012.
Numerosos
comentadores juntaram esta informação a uma outra, na qual o Pentágono se
autoriza, agora, a apoiar os seus «rebeldes moderados», sempre que eles sejam
atacados, qualquer que seja o seu atacante. Eles descortinaram, aí, o
lançamento da muito esperada campanha da Otan contra a República Árabe Síria.
Esta
interpretação é absurda, e estes elementos devem ser interpretados de modo
diferente.
Declarações
contraditórias e realidade no terreno
Acontece
que a Coligação assumiu o compromisso de não atacar o Exército Árabe Sírio,
mas, unicamente, o Daesh —e agora, também, a al-Qaida— na Síria.
Por
outro lado, ela comunica os planos de vôo dos seus bombardeiros, e as missões
das suas tropas terrestres, ao estado-maior do Exército Árabe Sírio com
antecedência, por intermédio dos seus aliados curdos do PYG. Desta forma, a
Coligação assegura-se, com antecedência, que os seus aviões não serão
derrubados pelos aviões de caça sírios, e sim que eles contribuirão para os
mesmos objectivos que o Exército Árabe Sírio, sem ter que entrar em mais
coordenações.
Oficialmente,
os Britânicos e os Franceses não participam nas operações em território sírio.
No entanto, nós sabemos que isso é falso. Aliás, há meses que estas nações
bombardeiam o Daesh na Síria. Há alguns dias, o ministro britânico dos Negócios
Estrangeiros(Relações Exteriores-br) foi forçado, na Câmara dos Comuns, a
admitir a verdade [3].
O seu homólogo francês, que não está sujeito às mesmas pressões políticas,
continua a negar os factos. Além disso, os Britânicos colocaram 120 SAS no
terreno para orientar os ataques aéreos [4].
Sendo esta missão particularmente arriscada, para estrangeiros que não conhecem
o terreno, o Pentágono formou 60 «rebeldes sírios moderados» para os ajudar
nisso. Entraram em território sírio 54, que foram imediatamente atacados pela
al-Qaida.
É
grotesco pretender que o Pentágono formou estes 60 combatentes com o objectivo
de derrotar as centenas de milhares de soldados do Exército Árabe Sírio e de
derrubar a República. A sua única função é a de participar na Coligação
anti-Daesh, e a sua única missão é a de identificar os alvos terrestres para os
bombardeiros.
É
verdade, como observou o ministro dos Negócios Estrangeiros russo Sergey
Lavrov, que este anúncio foi mal formulado. O porta-voz da Casa Branca deveria
saber que seria mal interpretado, vista a vontade de uma parte dos Americanos,
e de dirigentes franceses e turcos, em entrar em guerra aberta contra a Síria.
Na prática, ele preferiu induzir em erro os adversários do acordo EUA / Irão.
De
passagem, o Pentágono fez alusão a um episódio que ocorreu. Os seus 54
«rebeldes moderados» foram atacados pela al-Qaida e ele defendeu-os. Ora, no
decurso dos últimos meses, a França, a Arábia Saudita e a Turquia tentaram
reabilitar a al-Qaida na Síria (a Frente al-Nusra), para fazer dela uma
alternativa aceitável ao Daesh. Contrariamente às conclusões de muitos
comentadores, ao bombardear ao mesmo tempo tanto o Daesh, como a al-Qaida, o
que é novo, o Pentágono, na realidade, fez o jogo da República Árabe da Síria,
em conformidade com o seu acordo com o Irão.
Princípios
geo-estratégicos
Agora
cheguemos ao fundo. Esta polémica, habilmente fabricada pelo General Allen, no
Aspen Security Forum (Fórum de Segurança de Aspen- ndT), e pela Turquia, visa
fazer acreditar numa mudança radical na política dos EUA. Washington, depois de
ter, durante muito tempo, hesitado em se lançar numa guerra aberta contra a
Síria, finalmente teria se resolvido a isso. A Síria seria, em breve,
bombardeada, tal como antes a Líbia, e, finalmente, teríamos nos livrado do
presidente Bashar el-Assad.
Se
fosse este o caso, teríamos entrado numa Guerra Mundial.
Com
efeito, por quatro vezes já, a Rússia e a China opuseram o seu veto no Conselho
de Segurança a projectos de resolução autorizando, ou preparando, um ataque
contra a Síria. Ao oporem o seu veto, Moscovo e Pequim não se contentaram
apenas em não apoiar estas resoluções. Elas entraram em conflito diplomático
com os autores desses projectos. Afirmaram, pois, estar prontas a fazer a
guerra, contra aqueles, se eles passassem unilateralmente à acção.
O
primeiro veto, a 4 de outubro de 2011, surpreendeu Washington. O segunda, a 4
de fevereiro de 2012, convenceu-o a desistir de agir na Síria tal como na
Líbia. A França, o Catar e a Turquia decidiram relançar a guerra, e, assim,
apresentaram outros dois projetos de resolução a 19 de julho de 2012, e sobre a
questão de crimes contra a humanidade, atribuídos à República, a 22 de maio de
2014. Ora, eles levaram com os mesmos vetos.
As
declarações francesa, catari e turca, segundo as quais os diplomatas se
empenham em convencer os seus amigos russos a deixar cair Bachar el-Assad, são
afirmações estúpidas, e as recentes declarações de Barack Obama sobre uma
mudança das posições da Rússia e do Irão não valem muito mais. Aliás, o
Presidente dos E.U. visava, por si mesmo, adormecer os opositores ao acordo que
negociou com o Irão.
Mas
nós, não estamos falando, aqui, do Irão. Unicamente de duas potências, membros
permanentes, do Conselho de Segurança, que são a Rússia e a China.
Os
interesses russo e chinês
A
posição de Moscovo e Pequim não é, nem uma bravata anti-ocidental, nem uma
solidariedade entre ditaduras, já que é assim que os ocidentais qualificam os
regimes desses Estados. É uma questão geo-estratégica que se inscreve em
séculos de história. Será tudo, menos negociável.
A
presença russa no Mediterrâneo e no Próximo-Oriente depende de um regime
respeitador da diversidade religiosa em Damasco. Ela seria impossível no caso de uma
tomada de poder pela Irmandade Muçulmana, ou qualquer ouro grupo islamista
dessa área. Tal foi já o caso na época da Czarina Catarina II, que afirmava ver
na Síria a chave do Próximo-Oriente para a Rússia, e mantêm-se sempre o mesmo
com o Presidente Putin. Além disso, os russos, que são predominantemente
ortodoxos e por tal pagaram, sentem-se solidários com os cristãos sírios, em
maioria ortodoxos.
Claro,
nem sempre a Rússia esteve à altura de defender os seus interesses. Assim, em
2005, ela recusou a proposta síria de ocupar o porto de Tartus, mais 30
quilómetros de costa, como base permanente para sua frota naval no Mediterrâneo
—Damasco esperava, assim. prevenir a guerra que Washington havia começado a
preparar, bem antes das “Primaveras” árabes— Mas, na altura, após o colapso da
União Soviética, ela não tinha qualquer frota no Mediterrâneo. Agora,
reergueu-se, restaurou o seu poder naval, e utiliza efectivamente o porto de
Tartus.
Para
se desenvolver o comércio chinês precisa de assegurar rotas continentais
ligando a China ao Mediterrâneo. Na Idade Média, os chineses construíram a
«Rota da Seda», ligando a capital da época, Xi’an, a Damasco. Os Omíadas, que
fundaram a religião muçulmana, velaram pela protecção de outras religiões
locais, Judaísmo, Mandeísmo e Cristianismo. Quando estenderam o seu poder na
Ásia Central, até ao Xin Qiang, eles agiram idênticamente com as religiões do
Extremo Oriente —Eles estavam, é claro, muito longe do sectarismo do Islão
actual—. Ainda hoje, grupos de todas as religiões rezam, diariamente, na Grande
Mesquita de Damasco, e um dos seus mosaicos presta homenagem a um pagode
chinês. Para se desenvolver, a China actual tenta reconstruir «Rotas da Seda».
Para tal, ela acaba de fundar o Banco Asiático de Investimento (AIIb).
Que
ninguém se engane quanto a isto, o apoio estratégico de Moscovo e Pequim a
Damasco não significa, de forma alguma, que eles irão enviar as suas tropas
para defender o país contra os jiadistas que o sangram —Eles não o fizeram, e
não o farão— ; eles apenas não deixarão que as potências ocidentais usem os
seus próprios exércitos para destruir a República Árabe Síria.
Por
seu lado, os Estados Unidos são a potência mundial dominante, porque
constrangem a que o comércio global se efectue, principalmente, por via
marítima e, com a ajuda do Reino Unido, tratam de proteger e controlar todos os
oceanos. É por isso que Washington considera como essencial, para a manutenção
do seu poderio, a sabotagem de quaisquer tentativas de estabelecimento de rotas
continentais [5].
O caos no Iraque e a captura de Palmira cortam a via de comunicação pelo Sul,
enquanto o caos na Ucrânia corta a via pelo Norte.
No
conflito sírio, os Ocidentais e as potências do Golfo apoiam os Irmãos
Muçulmanos, enquanto a Rússia e a China apoiam a República laica.
As
ilusões da França, da Arábia Saudita e da Turquia
O
governo turco, que não tem nenhuma sensibilidade política, tentou por duas
vezes forçar os Estados Unidos a entrar em guerra aberta. A 11 de maio de 2013,
denunciou um enorme atentado em Reyhanlı, que ele atribuiu aos serviços
secretos sírios. Recep Tayyip Erdogan precipitou-se para o Presidente Obama
afim de se queixar. Mas, este tinha sido avisado, com antecedência, pela CIA
que o atentado que custou a vida a 51 Turcos, e que provocou 140 feridos, era
uma encenação do Millî İstihbarat Teşkilatı (MIT), uma operação de falsa
bandeira dos serviços secretos turcos. Depois disso, aliás, os responsáveis
foram obrigados a demitir-se.
Erdoğan
recidivou, quatro meses mais tarde, organizando, com a ajuda do Eliseu, o
ataque químico da Ghutta de Damasco, a 21 de agosto de 2013. Eles foram
imediatamente desmascarados pelo MI6 britânico, que se apressou a prevenir os
seus amigos norte-americanos. No seguimento de uma hábil encenação, na Câmara
dos Comuns, Londres e Washington deixaram Ancara e Paris com os seus crimes e
as suas farsas.
Podemos
questionar a capacidade da administração Obama em defender a sua nova
estratégia de aliança com o clero xiita iraniano, ou a dos seus opositores
norte-americanos em prosseguir a estratégia straussiana, de remodelagem do
«Médio- Oriente Alargado» e de caos generalizado. Mas, seja como fôr, nunca,
nem uns nem outros passarão de uma guerra por interpostos jiadistas para um
conflito clássico. É absurdo imaginar que Washington se vai lançar numa
Terceira Guerra mundial, contra a Rússia e a China, com o único propósito de
substituir o presidente Bashar el-Assad pelos Irmãos Muçulmanos.
Thierry Meyssan* - Tradução Alva - Voltaire.net
[1]
« Turkey
and U.S. Plan to Create Syria ‘Safe Zone’ Free of ISIS » (Ing- «A
Turquia e os E.U. Planeiam Criar "Zona Segura", Livre do DAESH, na
Síria»- ndT), Anne Barnard, Michael R. Gordon & Eric Schmitt, The New
York Times, July 27, 2015.
[2]
“Clinton, Juppé,
Erdoğan, o Daesh e o PKK”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede
Voltaire, 3 de Agosto de 2015.
[3]
“O Reino Unido e a
França bombardeiam o Daesh na Síria”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 24
de Julho de 2015.
[4]
“SAS
dress as ISIS fighters in undercover war on jihadis” (Ing- «Na guerra
secreta aos jiadistas os SAS fardam-se como combatentes do E.I.»- ndT), Marco
Giannangeli and Josh Taylor, Sunday Express, August 1, 2015.
[5]
“The Geopolitics of
American Global Decline” (Ing- «A Geo-política do Declínio Global
Americano»- ndT), by Alfred McCoy, Tom Dispatch (USA),Voltaire Network, 22 June
2015.
Na foto: General John Allen, no Fórum de Segurança Aspen.
Na foto: General John Allen, no Fórum de Segurança Aspen.
*Intelectual
francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace.
As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe,
latino-americana e russa. Última obra em francês: L’Effroyable
imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand,
2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y
desinformación en los medios de comunicación(Monte Ávila Editores, 2008).
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