Cristina
Azevedo – Jornal de Notícias, opinião
O
ex-primeiro-ministro de um país é preso preventivamente por alegada corrupção
no exercício do cargo. Só dez meses depois vê a pena comutada para prisão
domiciliária (sem pulseira). Insiste que não conhece a acusação em concreto e
que estranha os mil e um ângulos pelos quais o processo o espreita.
Entretanto,
por fugas constantes ao segredo de justiça, devidamente amplificadas pela
Comunicação Social, discute-se um crime, depois outro, e mais outro,
entreveem-se cúmplices e acicata-se o voyeurismo em infografias coloridas de
complexos circuitos financeiros.
Tudo
isto antes de deduzida a eventual acusação e, muito antes, de qualquer futuro
trânsito em julgado.
Mas
tudo isto em pleno exercício de campanha eleitoral.
E,
no entanto, à esquerda e à direita num basso ostinato ensurdecedor só se ouve
"à política o que é da política", "à justiça o que é da
justiça".
Irrita-me
isto, porque parece que nos querem impedir de discutir, de levantar questões,
de duvidar, de concordar, de fazer e dizer o que muito bem nos apetecer,
política e justiça, cada coisa por seu lado, as duas a par, as duas misturadas.
O
exercício eleitoral para não mexer as águas, para ficarmos todos nesta modorra
do "crescer com cuidado" ou do "crescer com confiança",
para segurar um empate até às últimas, para não ficar encurralado, para nos
intoxicar a todos com o politicamente correto, desenha-nos esta linha
imaginária a cor fosforescente e cavalga os efeitos tenebrosos da passagem do
Rubicão.
Mas
é pura hipocrisia e pobre serviço ao país.
Podemos
e devemos discutir em que circunstância pode um titular de cargos públicos
abusar do respetivo exercício, e como pode ou deve ser impedido de o fazer;
podemos e devemos discutir como pode um cidadão ser privado de liberdade sem
conhecer a acusação e como podem e devem os seus direitos e garantias fundamentais
ser intocáveis; podemos e devemos discutir o nosso sistema penal e judicial e
defender, sem medo, o que entendemos que deve mudar. Sem colagem ou raciocínio
específico ao caso em questão mas por causa e a propósito dele próprio. E
podemos e devemos perceber como é que cada um dos principais partidos políticos
se situa neste âmbito.
O
que não podemos fazer é de conta, como se o eng.º Sócrates fosse invisível.
Ou
como se só fosse visível se resolver prestar declarações públicas no dia 3 de
outubro, dia de reflexão!
Podemos
e devemos discutir o nosso sistema penal e judicial e defender, sem medo, o que
entendemos que deve mudar. Sem colagem ou raciocínio específico ao caso em questão
[Sócrates] mas por causa e a propósito dele próprio
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