Miguel
Guedes – Jornal de Notícias, opinião
O
velocímetro da política, de tanto acelerar, quase bate nos limites máximos do
PREC. E não bate num limite vermelho ou num cordão sanitário. Por muito que
custe a alguns, é apenas a democracia a funcionar com todo o espectro político
em jogo. O que muitos parecem temer. Nos últimos dias, para uma boa parte dos
responsáveis partidários e grande parte dos comentadores e analistas
político-económicos, passamos de um país sentado bem no centro do novo oásis da
retoma para um país no limite do abismo. Perante a hipótese do lobo mau rumar
em viagem de negócios com o capuchinho vermelho, agitam-se as bandeiras da
demagogia e do papão, do golpe de Estado e da tomada do poder, os vales para
entradas súbitas no campo pequeno e equaciona-se o menu de degustação dos
comunistas ao pequeno-almoço. Marques Mendes (também ele?) tem a ousadia de
comparar resultados eleitorais com classificações de futebol. Aos inspiradores
do medo, talvez servisse rasgar a Constituição contra a qual governaram durante
4 anos. Mas a Constituição democrática é esta e as legislativas não são uma
corrida para primeiro-ministro. Em qualquer país com semelhante regime, nada
haveria a discutir. Dinamarca, Bélgica, Luxemburgo, Letónia, quatro países da
UE onde quem formou Governo não foi quem obteve mais votos ou ganhou as
eleições. Mas em Portugal, o défice de democracia corre em paralelo com o
défice de politização e de entendimento sobre o que é o nosso regime
democrático. Sim, a maioria é de Esquerda e - pasme-se - parece entender-se. E
agora? Venha de lá esse medo ou "isto é só fumaça"? Exercitem a
calma, "o povo é sereno".
Este
pode ser o grande acto único da Esquerda em Portugal. Não há memória de algo
assim e para um exemplo de proximidade é necessário recuar ao apoio de Álvaro
Cunhal a Mário Soares na segunda volta das Presidenciais de 86. A capacidade de
reacção deste PCP ao resultado eleitoral foi extraordinária. Em poucos dias,
Jerónimo de Sousa, envolto num resultado seguro mas algo ambíguo devido à
ultrapassagem do BE, afasta o cenário da sucessão nomeando o ex-padre Edgar
Silva para futuro desistente nas próximas presidenciais, disponibiliza-se para
um inédito entendimento de governo com o PS de António Costa (admite-se até que
António Filipe tenha sido aventado para o Ministério da Justiça) e enche um
comício em Lisboa. Pressionado ou não pelo seu poder autárquico, o PCP
posiciona-se para dar a volta ao seu mundo, dando um passo para novas
construções. Catarina Martins foi a vencedora mais inequívoca destas eleições e
sabe-o. Já na campanha eleitoral estabeleceu pontes para o PS. Quando declara,
após o encontro com Costa, que pelo BE "o Governo de Coelho e Portas
acabou hoje", não nos fala pelo lado do seu optimismo. A declaração
política é notável e pressiona o PS a assumir a sua inteira culpa se não quiser
governar à esquerda em Portugal.
A
possibilidade de entendimento existe e é confirmada por movimentos contrários:
as declarações de António Arnault e a demissão de Sérgio Sousa Pinto. Resta
saber se o PS é capaz de enfrentar as suas próprias clivagens, ultrapassar a
pressão dos seus pares europeus e pensar em dois planos: se e quando. António
Costa quer avançar já que não pode chegar ao Congresso do PS com duas derrotas
eleitorais no bolso. Por outras palavras, só continuará líder se for
primeiro-ministro. Já "quando" é uma palavra incerta. Pode votar,
desde já, com a anunciada moção de rejeição do BE e PCP ou esperar pelo
Orçamento do novo Governo. Esperar pelo Orçamento, caso o PS consiga resistir a
dois meses de pressão internacional para se desligar de entendimentos com BE e
PCP, poderia ser o melhor movimento táctico da Esquerda. A Esquerda, recusando
o Orçamento de Direita, ganharia tempo, massa crítica, compreensão do fenómeno
e saberia dizer, com toda a propriedade, que - mesmo viabilizados - Passos e
Portas nada perceberam do que lhes foi dito. E, já agora, poderia ter acesso à
execução orçamental das contas do país que a Direita teima em não querer
apresentar (quais os reais números do défice e da segurança social?).
Solitário,
Cavaco Silva teima em fazer a rodagem a um veículo que já foi para abate. Como
se ainda conduzisse o seu Citroën BX pela Figueira da Foz em 85, desiste do seu
5 de Outubro para pensar em todas-as-hipóteses-do-seu-único-cenário e pode ser
obrigado a não ter alternativa senão à de assistir ao BE e PCP a dar entrada no
arco da governação durante o seu mandato. Em nome da estabilidade que tanto
pediu... Esta coisa da democracia é lixada.
*Músico
e advogado
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