PAULO
PENA - Público
O
jornalista José Milhazes afirmou que o PCP continua a ver Estaline e Lenine
como “timoneiros do povo”. Terá razão?
A
frase
“O
Partido Comunista Português, ao que eu saiba, nunca se demarcou dos hediondos
crimes cometidos por Lenine e Estaline, continua a ver nestes dois carrascos
“timoneiros do povo”, sempre foi fiel e servo do Partido Comunista da União
Soviética até ao fim deste.”
O
contexto
Esta
frase foi publicada num artigo de opinião do jornalista José Milhazes no jornal
online Observador. O título: “Não quero participar a segunda vez no mesmo
filme” sobre a possibilidade de um acordo entre PS, PCP e BE para viabilizar um
possível Governo em Portugal. Como se trata de uma opinião, procuramos analisar
a veracidade de um dos pontos da argumentação, tendo em conta uma latitude de
interpretações que não se esgota num mero “sim” ou “não”. Uma demarcação
política, como aquela que Milhazes sugere faltar ao PCP, é sempre relativa.
Depende de quem avalia a demarcação. Para uns, uma demarcação será sempre
insuficiente, para outros, uma mera distanciação já será uma demarcação
bastante. Tentemos olhar para esta questão com distância: Haverá sempre quem
considere que alguém não se demarcou suficientemente de um facto embaraçoso. A
nossa vida política tem disto inúmeros exemplos.
Mas
para responder à pergunta desta Prova dos Factos existem várias fontes
disponíveis. O PÚBLICO contactou para isso vários historiadores portugueses,
especialistas em História do PCP. Estas são as principais conclusões. A primeira
crítica do PCP a Estaline surgiu no V Congresso do partido, na clandestinidade,
em 1957, na sequência da “desestalinização” promovida por Nikita Krushov. O
PCP, na altura, vivia um “desvio de direita”, que Cunhal viria a “corrigir”,
depois da sua fuga de Peniche, em 1961. Mas isso são outras histórias… É o
próprio Cunhal que, no seu livro Partido com Paredes de Vidro retoma
a crítica: “O V Congresso, realizado em 1957, estimulado também pelo desvendar
do culto da personalidade de Stáline e de todas as suas negativas
consequências, instituiu normas de democracia interna e inseriu-as nos
Estatutos do Partido então aprovados." (p.88). Pode-se alegar que a
crítica a Estaline é mitigada. Cunhal, mais uma vez, em 1990, já depois da
queda do Muro de Berlim, deu uma entrevista mais clara. Os entrevistadores, do Independente,
eram Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas. Sobre Estaline, Cunhal disse o
seguinte: “Eu não vou aqui propor ou sugerir a leitura, mas eu escrevi muitas
páginas sobre a caracterização do estalinismo. O estalinismo é isto, e isto, e
isto. E uma coisa que não queremos e que repudiamos. O estalinismo como
ideologia, como acção política, como organização do Estado, como organização do
partido, como intervenção antidemocrática interna ou externa do partido.
Naturalmente que rejeitamos. Aliás, há um país muito acusado de métodos
estalinistas, a Roménia. Já nós, os comunistas portugueses, tínhamos grande
dificuldade de contactos com o Partido Comunista Romeno.”
Outra
questão, completamente diferente, é a da relação do PCP com Lenine. Neste caso,
o partido não só se continua a afirmar como “marxista-leninista”, como não
concordará com a expressão “hediondos crimes” usada pelo jornalista. Porém, no
mesmo livro de Álvaro Cunhal, existe uma crítica à “infalibilidade” das
referências comunistas: “Mas ser leninista não consiste em endeusar Lénine, em
utilizar cada frase de Lénine como verdade universal, eterna e intocável, em
substituir a análise pela citação, em responder aos acontecimentos através de
afirmações de Lénine, mesmo quando se trata de novos fenómenos que Lénine não
conheceu no seu tempo, em abafar, com a transcrição de textos e com a presença
dominadora do nome e da efígie e da autoridade desse nome e dessa efígie, a
investigação, a análise e o espírito criativo no estudo e interpretação dos
novos fenómenos .” (pág.140)
Os
factos
Para
o PCP, a “demarcação” bastante faz-se quando o partido afirma que “tem a sua
própria concepção de socialismo e o seu próprio projecto para a edificação em
Portugal de uma sociedade socialista”. O que significa que não vê em Lenine ou
Estaline, ou Castro, ou qualquer outro modelo de sociedade socialista, um
exemplo a seguir. Pelo contrário, o PCP afirma ter objectivos que se
“diferenciam e distanciam” dessas práticas. No seu programa “Uma Democracia
Avançada no Limiar do Século XXI”, o partido demarca-se da experiência da URSS
e do antigo “bloco de Leste”. “Nesses países (…) acabou por instaurar-se (…) um
"modelo" que violou características essenciais de uma sociedade socialista
e se afastou, contrariou e afrontou aspectos essenciais dos ideais comunistas.”
Exemplos disso? “Um poder excessivamente centralizado nas mãos de uma
burocracia (…) a acentuação do carácter autoritário do Estado (…) uma economia
excessivamente estatizada (…) um centralismo burocrático baseado na imposição
(…) confusão das funções do Estado e do partido (…); “um distanciamento entre
os governantes e as massas, o uso indevido do poder político, o abuso da
autoridade, a não correspondência da política e das realidades com os
objectivos definidos e proclamados do socialismo, desvios e deformações
incompatíveis com a sua natureza.”
Em
resumo
Cada
um fará a sua interpretação, à luz das suas próprias convicções, se a
demarcação face a Estaline é proporcional à gravidade dos crimes conhecidos do
ex-líder soviético. Mas neste caso, parece indiscutível que houve um repúdio
público do PCP e do seu histórico líder Álvaro Cunhal sobre aquele período
histórico. Uma situação diferente é a de Lenine. Aí, o PCP continua a defender
o seu legado teórico, embora procure distanciar-se de qualquer “culto da
personalidade”. Ou seja, a expressão “timoneiros do povo” não é aplicada a
nenhum dos dois por nenhum documento do PCP. Quanto ao “seguidismo” em relação
à União Soviética, essa ainda é uma matéria controversa na historiografia.
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