Revista
da esquerda liberal norte-americana analisa: EUA e seus aliados favorecem ISIS;
atitude da Rússia é positiva; Casa Branca precisa renunciar à guerra permanente
Pelo
corpo editorial da The Nation - Tradução: Antonio
Martins, em Outras Palavras
Uma
série surpreendente de acontecimentos está sacudindo, há uma semana, o cenário
do Oriente Médio e pode provocar um tremor geopolítico na região. No momento em
que a crise dos refugiados se agravava, e em que a dissolução de mais um país –
a Síria – parecia inevitável, surgiu um fato novo. Moscou, um antigo aliado do
regime sírio, voltou a intervir na região, cuja importância estratégica é
notória. Aviões russos passaram a bombardear equipamento militar e postos de
comando do Califado Islâmico (ISIS), o grupo ultra-fundamentalista que hoje
controla parte do território da Síria e do Iraque. Os Estados Unidos reagiram,
mas parecem impotentes.
A
Rússia, que alega intervir a pedido do governo sírio, anunciou que sua ação
poderá se estender por três meses. Robert Fisk, um dos jornalistas que melhor
conhecem o Oriente Médio e menos se rendem aos interesses da potências
ocidentais, julga que
a ação russa poderá ajudar o exército sírio a reconquistar, em breve, a cidade
de Palmira, patrimônio da humanidade agora submetido à barbárie do ISIS. O
primeiro-ministro iraquiano anunciou há
horas que uma possível ação dos aviões russos seria bem-vinda também em seu
país. Há rumoresde
que a China poderia somar-se à Rússia nas ações aéreas, o que consistiria uma
reviravolta de dimensões globais. Enquanto Barack Obama permanece paralisado,
Vladimir Putin age: também nesta sexta-feira, ele debateu a
situação síria, em Paris, com governantes da União Europeia. Num editorial publicado
esta semana, “The Economist”, claramente pró-EUA, taxa o presidente russo de
“ousado” e o norte-americano de “vacilante”.
Como
Putin, visto até há pouco no Ocidente como um pária, foi capaz de tanto? Em seu
editorial desta semana, publicado a seguir, “The Nation”, a mais antiga revista
semanal norte-americana, aponta pistas. Ligada à esquerda liberal
norte-americana, a publicação sustenta: Washington acreditou por muito tempo
que poderia controlar o Oriente Médio como desejasse. Afirmou combater o ISIS,
mas sua suposta ação não produz efeito algum. Permitiu que seus aliados –
Turquia e monarquias do Golfo Pérsico – financiassem os ultra-fundamentalistas
e perseguissem as guerrilhas curdas que os combatem. E, principalmente, apostou
numa política que visa destruir os Estados árabes, o que já projetou no caos na
Líbia, Iraque, Yêmen, Afeganistão.
Negligenciada
pelos jornais brasileiros, a crise síria é um acontecimento de relevância
global. A onda de refugiados que ela provocou espraia-se pelo mundo. No Oriente
Médio, ela já ameaça espalhar-se por Líbano, Jordânia e Turquia. É esperançoso
perceber que a potência que a atiça pode ser freada; e que os resultados
desastrosos desta potência já sejam pesados no interior de suas próprias
fronteiras. (A.M.)
A crise dos refugiados que agora acossa a Europa, onde centenas de milhares de migrantes desesperados infiltram-se por múltiplas fronteiras, abriu fissuras profundas na União Europeia (UE). A crise ameaça dividir o bloco, mas sua natureza é global e suas raízes estão fincadas em décadas de conflito, do Afeganistão à Somália e à Eritreia; nos múltiplos levantes decorrentes das revoluções árabes, da Líbia ao Yêmen; e na instabilidade regional e extremismo provocados pela invasão e ocupação norte-americana e pela destruição do Iraque. Mas a maior fonte de refugiados que inunda a Europa agora a Síria. Isso exige repensar não apenas a estratégia da UE e dos EUA para refugiados, mas também sua posição diante da guerra civil.
A crise dos refugiados que agora acossa a Europa, onde centenas de milhares de migrantes desesperados infiltram-se por múltiplas fronteiras, abriu fissuras profundas na União Europeia (UE). A crise ameaça dividir o bloco, mas sua natureza é global e suas raízes estão fincadas em décadas de conflito, do Afeganistão à Somália e à Eritreia; nos múltiplos levantes decorrentes das revoluções árabes, da Líbia ao Yêmen; e na instabilidade regional e extremismo provocados pela invasão e ocupação norte-americana e pela destruição do Iraque. Mas a maior fonte de refugiados que inunda a Europa agora a Síria. Isso exige repensar não apenas a estratégia da UE e dos EUA para refugiados, mas também sua posição diante da guerra civil.
Cerca
de metade da população síria – quase 12 milhões de pessoas – foi deslocada,
depois de quatro anos de conflito brutal. Houve 300 mil mortes e mais de 4
milhões de pessoas tiveram de fugir de seu país. Segundo o Alto Comissariado da
ONU para Refugiados, o enorme aumento no número de sírios que fogem para a
Europa este ano tem muitas causas, sendo a principal delas a desesperança em
relação a uma saída para a crise, combinada com redução constantes do apoio aos
campos de refugiados na Turquia, Líbano e Jordânia. O atual plano das agências
da ONU para ajuda recebeu, em 2015, menos de 40% de seu orçamento e alguns
países fronteiriços à Síria impuseram rígidas restrições ao emprego dos
refugiados.
A
catástrofe humanitária desencadeou novas demandas às potências mundiais, para
que se empenhem em resolver a guerra civil – e a sessão da Assembleia Geral da
ONU, em setembro, foi um momento oportuno para fazê-lo. E de fato, diplomatas
dos EUA e da Rússia expressaram vontade crescente de cooperar na resolução da
crise. Washington e Moscou disseram compartilhar um objetivo comum: frear o
extremismo e alcançar a estabilidade na Síria e no Iraque. Mas os discursos
opostos dos presidentes Obama e Putin expuseram mais uma vez as divisões
profundas entre os dois países.
Tais
divisões refletem e são agravadas pela divisão sectária no Oriente Médio, na
qual a Arábia Saudita e outras monarquias do Golfo Pérsico, juntas com a
Turquia, ofereceram armas e ajuda para as milícias que combatem o governo do
presidente Bashar al-Assad, enquanto a Rússia, o Irã e a guerrilha do Hezbollah
ampliaram seu suprimento de armas, ajuda e conselheiros – além de tropas
terrestres, no caso do Hezbollah – ao regime de Assad. Agora, Putin ampliou a
aposta, ao anunciar uma acordo de compartilhamento de informações entre a
Rússia, Irã, Iraque e Síria. Embora tenha o objetivo alegado de combater o
Estado Islâmico (ISIS), o compromisso parece oferecer um escudo ao governante
sírio. Dois dias após o discurso de Putin, a Rússia iniciou seus ataques
aéreos.
Ainda
que o conflito pareça intrincado como sempre, há medidas concretas que os
países poderiam tomar, individual ou coletivamente, para aliviar a agonia,
enquanto renovam conversações para uma solução negociada. Primeiro, as Nações
Unidas e as agências internacionais de ajuda precisam de um aumento substancial
de seu financiamento. As potências globais podem discordar sobre como resolver
o conflito, mas nada as impede de enfrentar a crise humanitária, que ameaça
agora a estabilidade da Jordânia (que abriga 600 mil refugiados), do Líbano
(mais de 1 milhão) e da Turquia (cerca de 2 milhões). Além disso, os Estados
Unidos e os países europeus precisam ampliar, muitas vezes, o número de
refugiados a que oferecem asilo. Os EUA poderiam facilmente absorver ao menos
100 mil – muito mais que o pálido aumento anunciado pelo governo de Obama.
Já
a política global dos EUA em relação à Síria chegou a um beco sem saída. A
campanha de ataques aéreos iniciada há mais de um ano foi incapaz de impedir o
avanço do ISIS, e o esforço norte-americano para treinar e apoiar um exército
sírio “moderado” em oposição ao regime, para complementar os ataques aéreos,
desabou. Embora os curdos, ao norte, tenham demonstrado ser aliados úteis
contra o ISIS tanto na Síria quanto no Iraque, o mesmo não pode ser dito dos
aliados sunitas de Washington. Eles continuam a perseguir seus interesses
particulares, com a Turquia mais focada em atacar os curdos que o ISIS,
enquanto a Arábia Saudita e as monarquias do Golfo Pérsico continuam a
financiar os grupos jihadistas na Síria, embora finjam somar-se à guerra contra
o ISIS.
Para
evitar uma catástrofe ainda maior, o governo norte-americano precisa rever de
maneira decisiva sua rota e tomar o único caminho que oferece uma chance
plausível de estabilizar a Síria e, ao final, derrotar o ISIS e outros grupos
islâmicos radicais. Este caminho implica, primeiro, reconhecer que não há uma
solução militar, e que a ação militar na verdade impede o avanço da diplomacia.
Além disso, os EUA precisam caminhar para uma solução que inclua todas as
partes envolvidas no conflito: o governo sírio, o He\bollah e as diversas
forças rebeldes e grupos civis de oposição; as potências regionais, inclusive o
Irã, a Turquia e as monarquias do Golfo; assim como países com a Rússia e
outros membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. A única exceção
deveria ser o ISIS – que, além de praticar um niilismo teatral e assassino,
rejeita, por princípio, a própria ideia de negociações.
O
Comunicado de Genebra 2012 – resultado de uma conferência iniciada naquele ano
pela ONU e pelo enviado da Liga Árabe, Kofi Annan, da qual participaram EUA,
Rússia, China e Grã-Bretanha – nasceu morto, antes de tudo em função de desacordos
sobre o status de Assad e a definição do que seria “transitar” para
um governo mais representativo. Em 2014, a conferência de Genebra que deveria
fazer um balanço dos resultados, fracassou devido a uma disputa sobre se o
Iraque poderia participar. As partes devem agora reiniciar estas conversações,
evitando ultimatos, exclusões ou exigências absurdas sobre o status de
Assad. Enquanto isso, precisam afunilar seus desacordos para tentar chegar a
uma transição viável, num país agora devastado e profundamente traumatizado
pela guerra civil.
Em
seu discurso na ONU, Putin pode ter parecido belicoso, ao insistir na
legitimidade do regime de Assad. Mas esta postura eclipsa uma antiga posição
russa, segundo a qual o destino de Assad é menos importante que a necessidade
de assegurar que qualquer transição resulte num Estado governável. Putin está
correto, ao frisar que a remoção violenta de ditadores, sem manter estruturas
governamentais viáveis para substituí-las – o que ocorreu com Gadhafi, na
Líbia, e Hussein, no Iraque – provocou caos e extremismo. Por outro lado, Obama
está certamente correto ao insistir que a brutalidade do regime de Assad “não
envolve apenas assuntos internos de um país – ela provoca sofrimento humano
numa magnitude que afeta a todos nós”. E é certamente razoável, para Obama,
propor “uma transição negociada de Assad para um novo líder e um governo
inclusivo”.
As
partes presentes numa futura conferência precisam concentrar-se em caminhos
criativos para reduzir as divisões entre si mesmas, enquanto dão outros passos
para desradicalizar o conflito. Estes passos intermediários deveriam incluir
apoio a tréguas locais, como as recentemente firmadas nas províncias de
Zabadani e Idlib. Um segundo passo deveria ser uma cooperação mais profunda
entre todas as nações, para bloquear o recrutamento por extremistas da jihad,
em particular o ISIS. Um terceiro passo seria um embargo no fornecimento de
armas – de preferência, negociado no conselho de Segurança da ONU. Pode
parecer, hoje, uma possibilidades distante, dadas as ações recentes da Rússia
para fortalecer sua base militar em Latakia e ampliar o fluxo de armas para o
governo de Assad, sem falar no contínuo suprimento de armas para grupos
opositores, tanto moderados quanto jihadistas. Mas um embargo construído
conjuntamente por Washington, Moscou e outras nações do P5, além das monarquias
do Golfo, do Irã e da Turquia – é uma necessidade e precisará ser respeitado
por todos, inclusive as forças do governo e da oposição.
Está
na hora da Casa Branca comprometer-se com uma relação de trabalho mais séria
com Moscou. Agora, Washington não precisa apenas reorientar suas atividades da
guerra para a diplomacia; deve também esforçar-se para chegar a um acordo com a
Rússia, em que ambas as partes pressionem seus aliados na região para
desescalar o conflito. Washington deveria notificar seus aliados de que os
Estados Unidos não continuarão a fazer vistas grossas ao contínuo apoio dado
pela Turquia e pelas monarquias do Golfo Pérsico aos grupos extremistas que
ameaçam tanto a Síria quanto o Iraque. A Casa Branca deveria também resistir às
demandas beligerantes de ação militar lançadas tanto por republicanos quanto
por alguns falcões democratas. Em vez disso, seria proveitoso responder
afirmativamente ao Jim Himes, deputado por Connecticut que, com o apoio de mais
de 50 outros membros do Congresso, pede ao presidente Obama que lidere esforços
diplomáticos para alcançar um fim negociado da guerra civil e forjar uma
campanha coordenada contra o ISIS.
Alguns
objetarão que este plano de ação contém o risco de fortalecer o regime de Assad
e desamparar, no conflito, os aliados sunitas dos EUA. Mas todo esforço deveria
ser feito para dar à Turquia, Arábia Saudita e outras monarquias do Golfo a
oportunidade de participar. E todo esforço deveria ser feito para estabelecer
bases de um acordo que conduza a um governo mais amplo e mais inclusivo na
Síria. Dada a profundidade da destruição da Síria, um acordo final pode exigir
uma robusta força de paz da ONU, similar às que foram formadas nos casos do
Camboja e Bósnia.
Os
Estados Unidos deveriam ter aprendido, nos últimos quatro anos, que lançar
exigências inflexíveis só produziu mais extremismo, mais guerra e mais tragédia
na região. É hora de tentar outro caminho.
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