quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Nova Cultura Politica e Geoeconomia do conhecimento (reflexões pós-natalícias)



Rui Peralta, Luanda

É necessário compreender, para evitar a vulgarização do conceito e da concepção, a categoria “conhecimento livre” através de formas de interpretação que não se encontrem limitadas por noções técnicas, jurídicas e económicas e levar em conta os seus diferentes contextos culturais. Pensamento e acção, teoria e praxis estão sempre marcados por estes contextos, algo que assume importância redobrada nesta época em que vivemos, onde são correntes conceitos concentracionários como “choques de civilizações” e “fim das ideologias”, vendidos no espaço comunicativo como pedras angulares da “globalização” e que ao mesmo tempo são dogmas para a “consciência académica” vendida em “pack” nos novos negócios universitários de pacotilha.

A globalização, entendida como processo multipolar, enferma do facto de as relações de Poder serem as mesmas da lógica dominante de finais do século passado, marcado pelo deslumbrar do “pensamento único” e da “aldeia global”. As dinâmicas da economia-mundo (do processo de globalização em curso) tendem, efectivamente, para o mundo multipolar, mas para este ser uma realidade afirmada por esta dinâmica, terão de ser transformadas (e mesmo invertidas) as lógicas em que assentam as relações de Poder. Por isso assumem particular importância formas de organização alicerçadas em factores conceptuais como “coisa pública” e/ou “autogestão dos bens comuns”, que reforçam que a ideia e a praxis da liberdade são, em simultâneo, ausência de controlo e autonomia (exemplo prático: o direito de viajar e a forma simples de obter o passaporte com o mínimo de dispêndio em dinheiro e em tempo. Viajar para onde quero – liberdade - será cada vez mais possível num mundo sem vistos e cada vez mais complicado num mundo dominado pelo carimbo do funcionário. O acesso ao passaporte – autonomia – está intimamente ligado á liberdade de viajar, pois ele representa a possibilidade prática de viajar, a permissão de passar a fronteira e entrar no espaço do outro. A forma como o obtenho, se é caro ou acessível, se é desburocratizado ou se é formalmente inacessível, etc., demarca o grau de autonomia, o grau e a capacidade de gestão dos nossos assuntos, em que vivemos).

O conceito de “modernidade” é um dos conceitos motores da visão global que enferma de uma visão do mundo ocidentalizada, não por uma questão de “imperialismo cultural” do Ocidente, mas pelo facto de ser o Ocidente o seu berço histórico. A modernidade padece de eurocentrismo devido às relações de produção e de trabalho que estão implícitas relações de Poder da economia-mundo. O Ocidente é uma economia central e o resto do mundo tornou-se periférico. Os traços da modernidade ficaram, assim, prisioneiros deste contexto e não conseguiram acompanhar as dinâmicas da economia-mundo, que diversificaram os contextos socioculturais. O etnocentrismo europeu com as suas premissas de “racionalidade” cruzadas com o mito racial (a raça, conceito que, em detrimento da racionalidade, espalhou-se pela periferia como elemento central e que é, hoje, causa de subdesenvolvimento, ou seja, de manutenção da condição de periferia) afirmou-se com o nascimento do capitalismo á escala mundial (transformação das relações de produção e de trabalho na economia-mundo). Isto implicou alterações profundas nas formas de controlo e de exploração do trabalho e do controlo da produção, dos mecanismos de apropriação e da distribuição de produtos e de riqueza, que foram subjugadas – de forma articulada – á relação capital/salário.

Na esfera do conhecimento este esquema de distribuição de funções baseado na posição em que cada região ocupava no sistema global de produção de capital (e de reprodução, acumulação e apropriação) manifestou-se através do eurocentrismo, cristalizando as dinâmicas criativas de conhecimento. Esta manifestação eurocêntrica – o eurocentrismo - caracteriza-se, assim, pelos seguintes aspectos: 1) dualismo (tradicional/moderno, primitivo/civilizado, industrial/atrasado, etc.); 2) o mito da linearidade evolutiva unidireccional (do estado da natureza á sociedade industrial moderna europeia, por exemplo); 3) distorção nos processos de aculturação implícitos no desenvolvimento, o que está na base da neocolonização, ou seja da manutenção dos factores periféricos nas relações multipolares da economia-mundo; 4) distorção da História, transformando o não Ocidental como passado e o Ocidente como objecto-futuro. Foi desta forma que a modernidade (um conceito libertador, de raiz) engendrou o “conhecimento colonial”, que cumpre o papel de combinar os valores do eurocentrismo (ou seja de uma distorção contextual da modernidade) em matriz racional e racionalizadora, ao ponto da ciência moderna ser um produto do Ocidente, esquecendo todos os contributos do Oriente, das culturas ancestrais e indígenas do Novo Mundo e de África para a construção da visão racional do mundo, instituição-base da ciência moderna (mesmo os contributos actuais provindos das regiões periféricos são sempre analisados em função da ocidentalização. Por exemplo: os prémios nobéis de física nuclear atribuídos aos cientistas indianos e paquistaneses são sempre em função da importância que a metrópole – neste caso, Londres – teve na formação destes quadros).

A História cultural europeia converte-se, na visão eurocêntrica, em eixo central, girando toda a outra História (ao ponto de ser apenas história ou estórias fragmentadas) em torno deste eixo central. O resultado final desta concepção do mundo e da vida é desolador, conforme o demonstram os conceitos de choque das civilizações, de fim da História ou de pensamento único. Esta desolação epistemológica é uma consequência da distorção que tem como base as relações centro-periferia, que geraram categorias utilizadas para a compreensão da sociedade moderna que foram extrapoladas das circunstâncias socioculturais para o valor universal. O Ocidente transforma-se no farol e desprezo recai sobre o acumulado cognitivo das restantes culturas (exemplo: o Islão, cultura que traduziu os filósofos gregos antigos, que reintroduziu a filosofia helénica no Ocidente, que foi fundamental para o desenvolvimento da matemática, da geometria, da tecnologia, etc., acabou actualmente reduzida á condição de barbaridade e de cultura geradora de violência. O eurocentrismo evita assim a contaminação de elementos culturais que fazem perigar o seu domínio).  Todo o pensamento está condicionado ao lugar onde é enunciado, pois identifica-se – antes do mais – com o conjunto de valores do sujeito que o enuncia. O lugar onde o conhecimento é enunciado é, então, um espaço geoeconómico marcado, ou seja é um espaço da geoeconomia do conhecimento, que marca territorialmente o conhecimento, para que com a sua globalização se possam revelar as dinâmicas que impedirão a sua cristalização. Esta apenas sucede porque o contexto sociocultural é passado para segundo plano, ou seja transformam-se em realidades descontextualizadas.

Modernidade, desenvolvimento, assumir lugar na economia-mundo, sair da periferia, implica um primeiro passo: descolonização do saber. Isto por uma razão muito simples: a economia-mundo é uma realidade cosmopolita. E as realidades cosmopolitas implicam um processo de crítica constante e global em todos os níveis de conhecimento. E para isso acontecer a organização política das sociedades, a sua arquitectura constitucional e institucional, têm de assentar na liberdade e na autonomia, ou seja nos pilares da democracia politica, económica, social e cultural. Caso contrario a oligarquia prevalecerá sobre a Democracia (e os Estados Democráticos de Direito nunca passarão de Estados Oligárquicos de Direito) e os mecanismos limitativos de conhecimento, assentes na logica da colonização do conhecimento e do saber, prevalecerão sobre as lógicas do livre-desenvolvimento do conhecimento.

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