Rui Peralta, Luanda
É
necessário compreender, para evitar a vulgarização do conceito e da concepção,
a categoria “conhecimento livre” através de formas de interpretação que não se
encontrem limitadas por noções técnicas, jurídicas e económicas e levar em
conta os seus diferentes contextos culturais. Pensamento e acção, teoria e
praxis estão sempre marcados por estes contextos, algo que assume importância
redobrada nesta época em que vivemos, onde são correntes conceitos
concentracionários como “choques de civilizações” e “fim das ideologias”,
vendidos no espaço comunicativo como pedras angulares da “globalização” e que
ao mesmo tempo são dogmas para a “consciência académica” vendida em “pack” nos
novos negócios universitários de pacotilha.
A
globalização, entendida como processo multipolar, enferma do facto de as
relações de Poder serem as mesmas da lógica dominante de finais do século
passado, marcado pelo deslumbrar do “pensamento único” e da “aldeia global”.
As dinâmicas da economia-mundo (do processo de globalização em curso) tendem,
efectivamente, para o mundo multipolar, mas para este ser uma realidade
afirmada por esta dinâmica, terão de ser transformadas (e mesmo invertidas) as
lógicas em que assentam as relações de Poder. Por isso assumem particular
importância formas de organização alicerçadas em factores conceptuais como “coisa
pública” e/ou “autogestão dos bens comuns”, que reforçam que a ideia e a praxis
da liberdade são, em simultâneo, ausência de controlo e autonomia (exemplo
prático: o direito de viajar e a forma simples de obter o passaporte com o
mínimo de dispêndio em dinheiro e em tempo. Viajar para onde quero – liberdade
- será cada vez mais possível num mundo sem vistos e cada vez mais complicado
num mundo dominado pelo carimbo do funcionário. O acesso ao passaporte –
autonomia – está intimamente ligado á liberdade de viajar, pois ele representa
a possibilidade prática de viajar, a permissão de passar a fronteira e entrar
no espaço do outro. A forma como o obtenho, se é caro ou acessível, se é
desburocratizado ou se é formalmente inacessível, etc., demarca o grau de
autonomia, o grau e a capacidade de gestão dos nossos assuntos, em que
vivemos).
O
conceito de “modernidade” é um dos conceitos motores da visão global que
enferma de uma visão do mundo ocidentalizada, não por uma questão de “imperialismo
cultural” do Ocidente, mas pelo facto de ser o Ocidente o seu berço histórico.
A modernidade padece de eurocentrismo devido às relações de produção e de
trabalho que estão implícitas relações de Poder da economia-mundo. O Ocidente é
uma economia central e o resto do mundo tornou-se periférico. Os traços da
modernidade ficaram, assim, prisioneiros deste contexto e não conseguiram
acompanhar as dinâmicas da economia-mundo, que diversificaram os contextos
socioculturais. O etnocentrismo europeu com as suas premissas de “racionalidade” cruzadas
com o mito racial (a raça, conceito que, em detrimento da racionalidade,
espalhou-se pela periferia como elemento central e que é, hoje, causa de
subdesenvolvimento, ou seja, de manutenção da condição de periferia) afirmou-se
com o nascimento do capitalismo á escala mundial (transformação das relações de
produção e de trabalho na economia-mundo). Isto implicou alterações profundas
nas formas de controlo e de exploração do trabalho e do controlo da produção,
dos mecanismos de apropriação e da distribuição de produtos e de riqueza, que
foram subjugadas – de forma articulada – á relação capital/salário.
Na
esfera do conhecimento este esquema de distribuição de funções baseado na
posição em que cada região ocupava no sistema global de produção de capital (e
de reprodução, acumulação e apropriação) manifestou-se através do
eurocentrismo, cristalizando as dinâmicas criativas de conhecimento. Esta
manifestação eurocêntrica – o eurocentrismo - caracteriza-se, assim, pelos
seguintes aspectos: 1) dualismo (tradicional/moderno, primitivo/civilizado,
industrial/atrasado, etc.); 2) o mito da linearidade evolutiva unidireccional
(do estado da natureza á sociedade industrial moderna europeia, por exemplo);
3) distorção nos processos de aculturação implícitos no desenvolvimento, o que
está na base da neocolonização, ou seja da manutenção dos factores periféricos
nas relações multipolares da economia-mundo; 4) distorção da História,
transformando o não Ocidental como passado e o Ocidente como objecto-futuro.
Foi desta forma que a modernidade (um conceito libertador, de raiz) engendrou o
“conhecimento colonial”, que cumpre o papel de combinar os valores do
eurocentrismo (ou seja de uma distorção contextual da modernidade) em matriz
racional e racionalizadora, ao ponto da ciência moderna ser um produto do
Ocidente, esquecendo todos os contributos do Oriente, das culturas ancestrais e
indígenas do Novo Mundo e de África para a construção da visão racional do
mundo, instituição-base da ciência moderna (mesmo os contributos actuais
provindos das regiões periféricos são sempre analisados em função da
ocidentalização. Por exemplo: os prémios nobéis de física nuclear atribuídos
aos cientistas indianos e paquistaneses são sempre em função da importância que
a metrópole – neste caso, Londres – teve na formação destes quadros).
A
História cultural europeia converte-se, na visão eurocêntrica, em eixo central,
girando toda a outra História (ao ponto de ser apenas história ou estórias
fragmentadas) em torno deste eixo central. O resultado final desta concepção do
mundo e da vida é desolador, conforme o demonstram os conceitos de choque das
civilizações, de fim da História ou de pensamento único. Esta desolação
epistemológica é uma consequência da distorção que tem como base as relações
centro-periferia, que geraram categorias utilizadas para a compreensão da
sociedade moderna que foram extrapoladas das circunstâncias socioculturais para
o valor universal. O Ocidente transforma-se no farol e desprezo recai sobre o
acumulado cognitivo das restantes culturas (exemplo: o Islão, cultura que
traduziu os filósofos gregos antigos, que reintroduziu a filosofia helénica no
Ocidente, que foi fundamental para o desenvolvimento da matemática, da
geometria, da tecnologia, etc., acabou actualmente reduzida á condição de
barbaridade e de cultura geradora de violência. O eurocentrismo evita assim a
contaminação de elementos culturais que fazem perigar o seu domínio).
Todo o pensamento está condicionado ao lugar onde é enunciado, pois
identifica-se – antes do mais – com o conjunto de valores do sujeito que o
enuncia. O lugar onde o conhecimento é enunciado é, então, um espaço
geoeconómico marcado, ou seja é um espaço da geoeconomia do conhecimento, que
marca territorialmente o conhecimento, para que com a sua globalização se
possam revelar as dinâmicas que impedirão a sua cristalização. Esta apenas
sucede porque o contexto sociocultural é passado para segundo plano, ou seja
transformam-se em realidades descontextualizadas.
Modernidade,
desenvolvimento, assumir lugar na economia-mundo, sair da periferia, implica um
primeiro passo: descolonização do saber. Isto por uma razão muito simples: a
economia-mundo é uma realidade cosmopolita. E as realidades cosmopolitas
implicam um processo de crítica constante e global em todos os níveis de
conhecimento. E para isso acontecer a organização política das sociedades, a
sua arquitectura constitucional e institucional, têm de assentar na liberdade e
na autonomia, ou seja nos pilares da democracia politica, económica, social e
cultural. Caso contrario a oligarquia prevalecerá sobre a Democracia (e os
Estados Democráticos de Direito nunca passarão de Estados Oligárquicos de
Direito) e os mecanismos limitativos de conhecimento, assentes na logica da
colonização do conhecimento e do saber, prevalecerão sobre as lógicas do
livre-desenvolvimento do conhecimento.
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