domingo, 26 de abril de 2015

DIVÓRCIO LITIGIOSO, POR MÚTUO ACORDO OU (RE)CONCILIAÇÃO?




A possibilidade, que em grande parte era uma realidade, da entrada dos hipermercados Continente em Angola parece ter a certidão de óbito assinada. A Sonae e a Condis vão divorciar-se. Por mútuo acordo? Talvez não.

Orlando Castro

Aequipa de Paulo Azevedo (Sonae) diz que que rainha santa Isabel (dos Santos) – dona do país em parceria com o seu pai – a apunhalou pelas costas ao contratar dois quadros de topo da área de retalho da Sonae e que trabalhavam nesta parceria, Miguel Osório e João Seara.

A dona da Condis parece pouco preocupada. É para o lado que dorme melhor. Com os milhões que tem, a que junta os milhões que precisar, Isabel dos Santos não dá ponto sem nó. A Sonae que se cuide.

Chegou a falar-se que o Continente estaria de portas abertas no nosso país no Verão de 2015. A Sonae apostou forte. Constituiu uma equipa para acompanhar a abertura dos hipermercados mas, é claro, primeiro foi necessário engolir uns tantos sapos, o que fez esgotar os stocks de “alka seltzer” das próprias lojas. Depois seguiram-se doses industriais de hóstias para tirar o pecado de negociar com um dos regimes mais corruptos do mundo.

O projecto que marcara a entrada do maior empregador privado português no território angolano seria fruto de uma parceria estabelecida entre o grupo e, como não poderia deixar de ser e corresponde à Lei da Probidade do nosso país, a empresária e não se sabe quantas vezes milionária Isabel dos Santos que, para quem não saiba, é filha do presidente José Eduardo dos Santos.

Para a eventualidade de algum leitor só agora ter chegado a este mundo, recorde-se que José Eduardo dos Santos é, para além de chefe do Governo, o presidente de Angola desde 1979, sem nunca ter sido nominalmente eleito, bem como do MPLA (partido que está no poder desde a independência).

Hipermercados, supermercados, lojas de conveniência, lojas de proximidade, restauração, para-farmácias, livrarias, vestuário, desporto, electrónica, centros comerciais, administração de imóveis, investimentos financeiros, telecomunicações, software e sistemas de informação e media são as áreas do império fundado por Belmiro de Azevedo, a Sonae.

Mas como tudo na vida, Belmiro de Azevedo é muito diferente do seu sucessor dinástico, o filho Paulo Azevedo. O pai, que nem ao domingo descansava, dizia a mesma coisa em qualquer dia de semana. Hoje a estratégia é diferente. O filho diz às segundas, quartas e sextas uma coisa, às terças quintas e sábados outra coisa. E ao domingo vai à missa.

O acordo com a Condis – detida maioritariamente, como também não poderia deixar de ser e sempre respeitando espírito e a letra da tal Lei da probidade, por Isabel dos Santos – aconteceu ainda em 2011, sendo que o projecto previa a abertura de uma rede de hipermercados Continente nosso país.

João Seara era o homem forte do grupo para este projecto, sendo que deveria ocupar o cargo de director executivo. A empresa nunca adiantou grandes pormenores, dizendo apenas que “não estava definida nenhuma data em concreto, mas tanto a Sonae como a Condis estão a envidar todos os esforços para proceder à abertura da primeira unidade o mais breve possível”.

Nesta típico ziguezaguear chegou-se a uma previsão que parecia ter fundamento: Verão de 2015. No terceiro trimestre do ano passado já se falava de equipas mandatadas para começar a definir as gamas de produtos que seriam enviados para Luanda e que se juntariam a outros aqui produzidos. A própria Condis tinha em marcha a construção de uma infra-estrutura que acolherá as instalações do hipermercado.

A entrada da Sonae em Angola sofreu alguns contratempos, explicando-se assim a relutância do grupo português em avançar com uma data concreta. A internacionalização da empresa para o nosso país está em desenvolvimento desde 2012, ano em que a Sonae e a ANIP assinaram um contrato de investimento no valor de 100 milhões de dólares, com vista à abertura de cinco hipermercados.

Todos os atrasos poderão ter a ver com o facto de, durante algum tempo, a Sonae ter tido dificuldades em engolir as regras da corrupção angolana. Daí as coisas não terem corrido tão bem como o inicialmente previsto, isto porque Paulo Azevedo anunciara a 17 de Março de 2011 que a entrada da empresa no mercado angolano poderia acontecer já nesse ano.

Fernando Ulrich, presidente do BPI, banco presente em Angola desde 1996, poderá ter tido um papel importante ao garantir a pés juntos que em Angola não há corrupção. Ao ouvi-lo dizer que “o BPI nunca pagou nada a ninguém para obter nada em troca como nem nunca ninguém nos pediu nada para fazer o que quer que fosse em troca”, Paulo Azevedo (Belmiro não foi nessa) sorriu e mandou avançar as suas tropas.

Em abono da tese de Fernando Ulrich, recorde-se que o procurador português que em tempos investigava o caso “BES Angola” ingressou no Banco Internacional de Crédito (BIC), presidido pelo cavaquista Luís Mira Amaral, uma instituição de capitais luso-angolanos que, mais uma vez, é dominada pela tal impoluta cidadã Isabel dos Santos, que é filha do não menos impoluto cidadão José Eduardo dos Santos.

Paulo Azevedo reeditou a velha teoria de rapidamente e em força para… Angola. Falhou na rota.

É pena. Como muitos angolanos (muitos mesmo) vivem na miséria e raramente sabem o que é uma refeição, estavam à espera de fazer incursões ao Continente, ou melhor, aos caixotes do lixo do Continente, e lá encontrar restos quase novos de comida.

A Sonae assumiu que não é uma empresa filantrópica e, por isso, negoceia com os donos do poder e, no caso de Angola, do país. E, como sempre, é muito mais fácil negociar com dirigentes vitalícios do que com os que resultam de uma vida democrática. Aliás, a família Azevedo gosta muito de viver em democracia. Já se os outros vivem em ditadura, o problema é deles. O que importa é haver gente com muitos dólares. E o regime tem fartura dessa espécie.

Folha 8 (ao)

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Angola. SERVIÇOS DE JUSTIÇA SÃO INSUFICIENTES



Isidoro Samutula, Dundo – Jornal de Angola

O Procurador-Geral Adjunto da República Luís de Assunção Mota Liz reconheceu que os serviços de Justiça ainda são insuficientes e por vezes ineficazes e que a demora dos processos nas instâncias judicias cria insatisfação social.

Falando no Dundo, Lunda Norte, numa palestra sobre a nova organização judicial, no âmbito da Semana da Legalidade, Mota Liz referiu que um Estado Democrático e de Direito tem que ter os alicerces bem profundos assegurados no primado da lei. 

“Se cumprirmos com o que está estabelecido na lei, teremos uma paz e estabilidade social duradoura e as autoridades não têm que correr atrás de muitos cidadãos”, sublinhou Mota Liz, acrescentando que a estabilidade não se garante com insatisfação social. “É preciso que os Tribunais e os órgãos de justiça funcionem com celeridade e eficácia”, defendeu o magistrado.

Mota Liz afirmou que a legislação que vigora no país é muito antiga, desactualizada e desajustada da realidade nacional. Foi nessa perspectiva que o Estado concebeu a reforma da justiça, para desburocratizá-la, de modo a aproximá-la da sociedade e torná-la eficaz na resolução dos conflitos que vão surgindo, frisou. “Constatou-se que o sistema de organização dos tribunais e o sistema judicial do país é muito antigo e inadequado à realidade actual”, explicou.

De acordo com o procurador, os níveis de analfabetismo no país estão a reduzir substancialmente e o impulso que se tem dado à formação dos jovens, com a criação de escolas de todos os níveis de ensino, levam o país a contar com cidadãos instruídos que conhecem os seus direitos, aumentando assim a exigência da intervenção dos tribunais.

Em função disso, sublinhou Mota Liz, o Estado angolano iniciou uma reforma judicial e do Direito, que resultou na Lei de Organização dos Tribunais de Jurisdição Comum, com criação dos novos modelos de tribunais e a eliminação dos actuais tribunais provinciais e municipais. O Tribunal Supremo – recordou – vai continuar a ser a instância máxima de recurso, mas não fará os recursos de facto, apenas do direito.

Com a reforma e a implantação da nova organização judicial, vai aumentar o número de Tribunais em todo o país e ser assegurada uma maior distribuição territorial e aproximação com a sociedade, garantindo maior celeridade na resposta aos processos. A reforma prevê o surgimento de Tribunais de Relação, que vão apreciar em primeira instância os recursos de matéria de facto e de direito, e a substituição dos actuais Tribunais Provinciais e Municipais por Tribunais de Comarca, que em todo o país serão um total de 60.

Para o efeito, disse, foram constituídos cinco Tribunais de Relação, que correspondem ao mesmo número de regiões judiciais, que vão atender em primeira instância os recursos apresentados pelas comarcas da respectiva região. As províncias da Lunda Norte, Lunda Sul e Moxico vão pertencer à 5ª Região Judicial, com sede em Saurimo. A Lunda Norte, no quadro da reforma, vai contar com dois Tribunais de Comarca nos municípios do Chitato e do Cuango.

Sobre a situação protagonizada pela seita religiosa “A Luz do Mundo”, liderada por Kalupeteka, Mota Liz disse que isso demonstra que os seus autores não sabem como deve ser exercida a liberdade religiosa e quais são os seus limites. Mota Liz referiu que a ignorância da lei leva à desordem e ao fanatismo e que o virar das costas à lei leva a uma situação de instabilidade muito grave. “A lei é igual para todos, independentemente da condição social”, lembrou o magistrado.


Foto: Kindala Manuel

A INEXPLICÁVEL PRESSÃO DO OCIDENTE SOBRE O SUDÃO



Roger Godwin - Jornal de Angola, opinião

Dando de si a patética imagem de criança amuada por não lhe terem feito uma vontade, o ocidente igmorou por completo o sucesso sobre a forma como decorreu o recente processo eleitoral no Sudão e insiste agora em manter sobre este país uma inexplicável e inaceitável pressão política com o nítido objectivo de marginalizar  e assim minimizar o seu presidente, Omar al-Bashir.

De acordo com relatos que contêm uma unanimidade inquestionável, as eleições parlamentares e presidenciais que tiveram lugar entre os dias 13 e 15 de Abril decorreram sem qualquer tipo de ocorrência que possa ser apontada como castradora da liberdade como o povo se expressou e nem sobre a forma como os escrutinadores realizaram o apuramento dos resultados finais.

Para as grandes potências ocidentais, especialmente para os Estados Unidos, essa realidade é totalmente ignorada com um enorme descaramento e sob pretextos que têm tanto de ridículos como de inconsequentes. Para levantarem o véu da suspeita sobre as eleições no Sudão, os Estados Unidos apontam o facto do pleito ter decorrido em três dias quando uma das “exigências” da comunidade internacional era que ele fosse feito num só dia.

Ignorando o facto da Comissão Eleitoral do Sudão ter organizado as eleições para decorrerem em três dias de modo a que as pessoas pudessem votar de forma mais tranquila e sem as anteriores aglomerações junto das urnas, os Estados Unidos dizem que essa decisão faz desconfiar de qualquer intenção menos clara por parte de quem assim decidiu. Curiosamente, nenhum dos outros 14 candidatos que as disputaram e já admitem que  perderam para Omar al-Bashir um novo mandato de cinco anos, viu no facto das eleições decorrerem em três dias qualquer outra intenção que não fosse a de permitir que o acto fosse mais amplamente participado e escrutinado.

Embora ainda não hajam resultados oficiais que possam dizer, com absoluta certeza, quem foi o vencedor, todos as forças da oposição aceitam como certo que al-Bashir continuará a ser presidente do Sudão e dizem que, pela primeira vez ao longo de muitos anos, participaram numas eleições sem qualquer tipo de constrangimento ou de pressão a que não fosse as que resultam do próprio acto em si, Estranha-se, por isso, que o ocidente teime em pressionar o Sudão usando argumentos que, como neste caso, dão de si a sensação de se estar perante uma obstinada intenção em não aceitar aquilo que tem sido a vontade expressa pelos sudaneses em actos eleitorais de irrepreensível lisura.

A teimosia dos Estados Unidos é mais estranha se atendermos ao facto dela agora ocorrer numa altura em que o próprio Sudão se tem vindo a empenhar nalgumas missões práticas que interessam ao ocidente.

O Sudão acaba de participar na investida que a Arábia Saudita fez sobre o Yemen para atacar os rebeldes Houthi, que apoiados pelo Irão ameaçavam a estabilidade dos países do Golfo Pérsico.

Este  Sudão aliou-se ao Egipto e a alguns países do Golfo para apoiarem uma facção militar do exército líbio que luta contra as milícias armadas, de modo a conseguir alguma estabilidade que permita uma governação pacífica. Uma explicação, um pouco forçada, para justificar a continuada pressão do ocidente sobre Omar al-Bashir pode advir do facto dele não ter aceite comparecer perante o Tribunal Penal Internacional nem os países africanos terem acatado a emissão do mandato de captura que sobre ele na altura foi emitido.

O “desplante” de um presidente africano, com o apoio quase unânime de todo o continente, “desrespeitar” uma decisão que o ocidente tomou de forma discriminatória e legalmente pouco sustentada, é uma “espinha” atravessada na garganta das grandes potências que tardam em perdoar a quem não lhes presta a vassalagem a que elas julgam ter direito. Contudo, no caso do Sudão, a situação começa a ganhar foros anedóticos e começa a mexer com a coesão que o ocidente tenta encontrar quando se trata de lidar com aquilo que julga ser a defesa dos seus interesses.

Neste caso concreto já há países, como a França, que acham ter chegada a altura de abrir as portas do diálogo a Omar al-Bashir pois, bem ou mal, ele tem o inequívoco apoio da sua população e do próprio continente africano. Alguns diplomatas ocidentais consideram ser chegada a altura de abrir as portas do diálogo com Kartum de modo a que sejam encontrados entendimentos sobre assuntos que se prendem com a segurança e a estabilidade na região, objectivo para o qual o Sudão é um parceiro considerado “incontornável”.

Quem assim pensa baseia-se na convicção de que é melhor ter Omar al-Bashir enquadrado nos esforços globais para encontrar soluções para a região, do que isolá-lo correndo o risco de assim perder uma inegável mais-valia que tem a extrema vantagem de conhecer e perceber o que se passa no terreno e que, ainda por cima, acaba de conseguir a legitimidade democrática para ficar mais cinco anos no poder num país com a importância do Sudão.

Um outro valor acrescido que Omar al-Bashir tem jogado com extrema mestria tem sido a forma como tem sabido lidar com o problema interno do vizinho Sudão do Sul tendo sempre resistido à fácil tentação de apoiar um ou outro dos beligerantes que se digladiam pelo poder.


Isso, quer uns queiram ou não, é um trunfo que o ocidente pode a qualquer altura jogar a seu favor para a defesa dos seus interesses económicos naquele que é o mais jovem país do mundo.

LIBIA: O PONTÃO DA MORTE




Libertada pelos civilizadores da selvageria de Kadafi, a Líbia ilustra em ponto pequeno o oceano de hipocrisia e indiferença por trás da fuga sem fim.

Carta Maior

Corpos rígidos de negros jovens, corpos velhos, corpos de crianças, de mulheres grávidas. Cinquenta, setenta, cem, cento e cinquenta, duzentos, duzentos cinquenta, quatrocentos, setecentos... podem passar de 900 desta vez. Ou mais.

Ninguém sabe ao certo. A contabilidade da morte é opaca quando o cemitério é o mar e o esquife é a noite.

O Mediterrâneo se transformou no grande sepulcro da vergonha em nosso tempo.

Barcos clandestinos cortam suas águas atulhados de desespero e desolação e naufragam sob o peso da devastação colonial que faz da África hoje o único lugar no mundo onde a fome só cresce, as guerras não tem nome e a barbárie étnica apaga com sangue as fronteiras traçadas pela geometria do europeu branco e predador.

Esse horizonte funesto ganhou um porto à altura do seu desalento: a Líbia.

‘Libertada’ pelo Ocidente, em 2011, é de lá que partem dois de cada três futuros náufragos do Mediterrâneo, a buscar uma redenção renegada pela xenofobia dominante na terra de seus antigos algozes.

A chegada irregular de imigrantes provenientes do pontão líbio triplicou em 2014. Mais de 170.000 pessoas. Da Líbia provinham também as duas últimas embarcações naufragadas a assoalhar o fundo do canal da Sicília nos últimos dias.

O pesqueiro de 20 a 30 metros de comprimento que submergiu a 70 milhas das costas da Líbia, a 120 milhas da Ilha de Lampedusa no último dia 18, trazia mais de 900 integrantes dessa diáspora fúnebre.

Embarcaram para o seu fim em um porto vizinho a Trípoli, a capital líbia hoje fracionada entre milícias adversárias.

Apenas 28 sobreviveram para narrar a devastação.

Foi a maior tragédia da história da migração no Mediterrâneo. Está longe de ser a última.

Quatro dias antes, outras 400 pessoas saíram da Líbia, rumo à Sicília, para o afogamento no meio da travessia.

Só este ano, 1500 imigrantes encontraram a morte quando buscavam um espaço para a sua vida nas costas europeias.

O cais líbio sintetiza o caos humano na África e no Oriente Médio.

A correnteza imigrante que o personifica, amarrotada em pedaços cascos clandestinos que quase nunca chegam ao seu destino, condensa a metáfora de um pedaço da humanidade que não encontra o seu lugar no jogo de xadrez montado pelas grandes potências ocidentais.

Libertada pelos civilizadores da selvageria de Kadafi, a Líbia ilustra em ponto pequeno o oceano de hipocrisia e indiferença por trás da fuga sem fim.

A construção desse estirão por aqueles cujos antepassados libertaram também a África de sua autonomia tribal, foi tema de uma análise perfurante do professor e colunista de Carta Maior, Jose Luís Fiori, em 2011, quando a obra estava em fase de festejos pela mídia não menos cínica.

Vale a pena ler de novo.

A LÍBIA, A OTAN E O “GRANDE MÉDIO ORIENTE”
 
José Luís Fiori                  

“Se aqui e no exterior todos perceberem que estamos prontos para a guerra a qualquer momento, com todas as unidades das nossas forças na linha de frente prontas para entrar em combate e ferir o inimigo no ventre, pisoteando-o quando estiver no chão, para ferver seus prisioneiros em azeite e torturar suas mulheres e filhos, então ninguém se atreverá no nosso caminho”.

John Arbuthnot  Fisher, Primeiro Lord do Almirantado da Marinha Real Britânica,  (cit. in Norman Angell, A Grande Ilusão, Editora UNB, 2002, p: 275)          

É preciso ser muito ingênuo ou mal informado, para seguir pensando que a “Guerra da Líbia”, foi feita em nome dos “direitos humanos” e da “democracia”. E ainda por cima, acreditar que o governo de Muamar Kadafi foi derrotado pelos “rebeldes” que aparecem nos jornais, em poses publicitárias. Tudo isto, enquanto a aviação inglesa comanda o ataque final das forças da OTAN,  à cidade de Sirta, depois de ter conquistado a cidade de Trípoli. Até o momento, a "primavera árabe" não produziu nenhuma mudança  de regime na região, mesmo na Tunísia e no Egito,  e não há nenhuma garantia de que os novos governos sejam mais democráticos, liberais ou humanitários que seus antecessores. Até porque, quase todos os seus líderes ocuparam posições de destaque nos governos que ajudaram a derrubar, com o apoio de uma multidão heterogênea e desorganizada. Sendo que, no caso da Líbia, não se pode nem mesmo falar de algo parecido a uma "mobilização massiva e democrática" da oposição, porque se trata de fato de uma guerra selvagem e sem quartel, entre regiões e tribos inimigas, que foram mobilizadas e "pacificadas" transitoriamente, pelas forças militares da OTAN.
 
Segundo Lord Ismay, que foi o primeiro Secretário Geral da OTAN, o  objetivo da  aliança militar criada pelo Tratado do Atlântico Norte, assinado em 1949, era "manter os russos fora, os americanos dentro e os alemães para baixo". E este objetivo foi cumprido plenamente, durante todo o período da Guerra Fria.  Mas depois de 1991, a OTAN passou por um período de "crise de identidade" e redefinição do seu papel dentro sistema internacional. Num primeiro momento, a organização militar se voltou para o Leste e para a ocupação/incorporação de alguns países da Europa Central que haviam pertencido ao Pacto de Varsóvia. Além disto decidiu participar diretamente das Guerras do Kosovo e da Sérvia. E ao mesmo tampo, lançou, em 1994, um projeto de intercambio militar  e de segurança, com os países árabes do norte da África, o chamado “Diálogo Mediterrâneo”.  Dez anos depois, na sua reunião de cúpula de 2004, em Istambul, os dirigentes da OTAN decidiram expandir o seu projeto de segurança e criaram a "Iniciativa de Cooperação de Istambul" (ICI), voltada para os países do Oriente Médio. Além disto, neste mesmo período, a OTAN, que não havia apoiado as guerras do Afeganistão e do Iraque, decidiu aderir e colocar-se ao lado das tropas anglo-americanas, instalando suas forças também na Ásia Central.
 
Foram os ingleses que cunharam o termo "Oriente Médio",  para referir-se aos territórios situados no meio do seu caminho, entre a Inglaterra e a Índia, e que  pertenciam ou estavam sob a tutela do Império Otomano. Incluindo os territórios que foram retalhados e divididos depois do fim da 1º Guerra Mundial, sendo transformados em “protetorados” da Inglaterra e da França, que já eram, naquele momento, as duas maiores potências imperiais da Europa, tendo submetido e colonizado a maior parte da África Sub-Sahariana, e todos os países árabes do norte do continente, hoje incluídos no “Diálogo Mediterrâneo” da OTAN. Mas foi o presidente norte-americano, George Bush, quem cunhou o termo “Grande Médio Oriente”, apresentado pela primeira vez na reunião do G8, realizada em Sea Islands, nos EUA, em junho de 2004. A ideia era definir e unificar um novo espaço de intervenção geopolítica, que iria do Marrocos até o Paquistão, e deveria ser objeto da preocupação prioritária das Grandes Potências, na sua guerra contra o “terrorismo islâmico”, e a favor da “democracia” e dos “direitos humanos”. Desta  perspectiva, se pode compreender melhor o significado geo-estratégico da “primavera árabe”, e da Guerra da Líbia.  
 
Assim mesmo, o que se deve esperar que ocorra depois da guerra? Na Líbia, haverá um longo período de caos, seguido da formação de um governo de coalizão tribal, instável e autoritário, sob o patrocínio e a tutela militar da OTAN.  Ao mesmo tempo, estará dado um passo decisivo na construção de uma força de intervenção “ocidental”, capaz de projetar seu poder militar sobre todo o território islâmico do Grande Médio Oriente, e pode estar sendo criado o primeiro “protetorado colonial” da OTAN, na África.

Junho de 2011

Créditos da foto: matteo / Flickr

A AUSTRÁLIA SECRETA TRAVA GUERRA CONTRA O SEU PRÓPRIO POVO



John Pilger

A Austrália mais uma vez declarou guerra à sua população indígena, o que recorda a brutalidade que levou à condenação universal do apartheid na África do Sul. O povo aborígene está a ser afastado das terras ancestrais onde suas comunidades viveram por milhares de ano. Na Austrália Ocidental, onde companhias de mineração ganham lucros de milhares de milhões de dólares a explorar a terra aborígene, o governo estadual diz que já não pode mais "apoiar" as terras ancestrais.

Populações vulneráveis, às quais já são negados os serviços básicos que a maior parte dos australianos consideram normais, estão sob aviso de expropriação (dispossession) sem consulta prévia e de expulsão sob a mira de armas. Ainda mais uma vez, líderes aborígenes advertiram acerca de "uma nova geração de pessoas deslocadas" e de "genocídio cultural".

Genocídio é uma palavra que os australianos odeiam ouvir. O genocídio acontece em outros países, não na sociedade "feliz" que é a segunda mais rica da terra em rendimento per capita. Quando a "lei do genocídio" foi utilizada no memorável relatório de 1997 "Bringing Them Home", o qual revelava que milhares de crianças indígenas haviam sido roubadas das suas comunidades por instituições brancas e abusadas sistematicamente, foi lançada uma campanha de negação por uma clique de extrema-direita à volta do então primeiro-ministro John Howard. Ela incluía aqueles que se auto-denominavam Galatians Group, a seguir Quadrant e depois a Bennelong Society; a imprensa de Murdoch era a sua voz.

A Geração Roubada foi exagerada, disseram eles, se chegou a acontecer de todo. A Austrália Colonial era um lugar afável; não houve massacres. Os Primeiros Australianos foram vítimas da sua própria inferioridade cultural, ou eram nobres selvagens. Eufemismos adequados eram avançados.

O governo do actual primeiro-ministro, Tony Abbott, um conservador fanático, ressuscitou este assalto ao povo que representa o carácter único da Austrália. Logo depois de chegar ao gabinete, o governo de Abbott cortou US$534 milhões nos programas sociais indígenas, incluindo US$160 milhões do seu orçamento de saúde e US$13,4 milhões do apoio legal indígena.

No relatório de 2014 "Indicadores chave para ultrapassar a desvantagem indígena" ("Overcoming Indigenous Disadvantage Key Indicators"), fica clara a devastação. O número de aborígenes hospitalizados por danos infligidos a si próprios saltou, assim como suicídio entre gente tão jovem como 11 anos. Os indicadores mostram um povo empobrecido, traumatizado e abandonado. A leitura do desmascaramento clássico do apartheid na África do Sul, The Discarded People, de Cosmas Desmond, mostrou-me que ele podia escrever um relato semelhante para a Austrália.

Tendo insultado os indígenas australianos ao declarar (no pequeno-almoço do G20 para David Cameron) que antes do homem branco não havia "nada excepto mato", Abbott anunciou que o seu governo deixaria de honrar o antigo compromisso para com terras ancestrais aborígenes. Ele disse com desprezo: "Não é tarefa dos contribuintes subsidiar opções de estilos de vida".

A arma utilizada por Abbott e seu estado brutal, bem como seus equivalentes territoriais, é a expropriação pela violência, propaganda, coerção e chantagem, assim como a sua exigência de um arrendamento por 99 anos da terra indígena no Território do Norte em troca de serviços básicos: uma tomada da terra na plena acepção da palavra. O ministro para Assuntos Indígenas, Nigel Scullion, contesta isto, afirmando que se trata "de comunidades e do que as comunidades querem". De facto, não houve qualquer consulta real, apenas a cooptação de uns poucos.

Tanto os governos conservadores como os trabalhistas já removeram o programa nacional de empregos, CDEP, das terras ancestrais, acabando com oportunidades de emprego, e proibiram o investimento em infraestrutura: habitação, geradores, saneamento básico. A poupança obtida é desprezível.

A razão é uma doutrina extremista que relembra as campanhas punitivas do "protector chefe de aborígenes" nos princípios do século XX, tal como o fanático A.O. Neville o qual decretou que os primeiros australianos fossem "assimilados" ou extintos. A campanha foi influenciada pelo mesmo movimento eugenista que inspirou os nazis, as "leis de protecção" da Queensland foram um modelo para o apartheid sul-africano. Hoje, o mesmo dogma e o mesmo racismo são instilados através da antropologia, da política, da burocracia e dos media. "Nós somos civilizados, eles não são", escreveu há duas gerações o aclamado historiador australiano Russel. O espírito permanece intacto.

Desde a década de 1960 tenho informado acerca das comunidades aborígenes e observo uma rotina sazonal pela qual a elite australiana interrompe seus maus-tratos e desprezo "normais" ao povo original da nação e passa ao ataque sem rodeios. Isto acontece quando se aproxima uma eleição, ou a avaliação de um primeiro-ministro junto à opinião pública anda baixa. Chutar negros (blackfella) é considerado popular, embora a captura à força de terras ricas em minérios através de movimentos furtivos sirva propósitos mais prosaicos. Conduzir pessoas para as favelas à margem dos "centros económicos citadinos" satisfaz a compulsão de engenharia social dos racistas.

O último ataque frontal foi em 2007 quando o primeiro-ministro Howard enviou o exército para dentro de comunidades aborígenes no Território do Norte a fim de "resgatar crianças" as quais, disse o ministro para Assuntos Indígenas, Mal Brough, estavam a ser abusadas por gangs pedófilas em "números impensáveis".

Conhecida como "a intervenção", os media desempenharam um papel vital. Em 2006, o programa nacional de actualidades da TV, o "Lateline" da ABC, divulgou uma entrevista sensacional de um homem cuja cara foi ocultada. Descrito como um "jovem trabalhador" que havia vivido na comunidade aborígene de Mutitjulu, ele fez uma série de alegações chocantes. Posteriormente revelou-se como sendo um alto responsável do governo que se reportava directamente ao ministro, suas afirmações foram desacreditadas pela Comissão Australiana do Crime, pela polícia do Território do Norte e por um relatório condenatório de médicos pediatras. A comunidade não recebeu um pedido de desculpa.

A "intervenção" de 2007 permitiu ao governo federal destruir muitos dos vestígios da auto-determinação do Território do Norte, a única parte da Austrália onde o povo aborígene havia ganho direitos de terra por legislação federal. Ali, eles haviam administrado suas terras ancestrais com a dignidade da auto-determinação e ligação à terra e à cultura – e, como relatou a Amnistia, com uma taxa de mortalidade 40 por cento mais baixa.

É esta "vida tradicional" que é um anátema para uma indústria parasitária branca de funcionários públicos, empreiteiros, advogados e consultores que controlam e muitas vezes lucram com a Austrália Aborígene, ainda que indirectamente através de estruturas corporativas impostas a organizações indígenas. As terras ancestrais são vistas como uma ameaça, pois elas exprimem um comunalismo em divergência com o neoconservadorismo que domina a Austrália. É como se a existência duradoura de um povo que sobreviveu e resistiu a mais de dois séculos de massacre e roubo colonial permanecesse um espectro sobre a Austrália branca: uma recordação de quem é realmente a terra.

O actual ataque político foi lançado pelo estado mais rico, a Austrália Ocidental. Em Outubro último, o primeiro-ministro do estado, Colin Barnett, anunciou que o seu governo não podia arcar com o orçamento de US$90 milhões para serviços básicos municipais a 282 terras ancestrais: água, energia, saneamento básico, escolas, manutenção de estradas, colecta de lixo. Era o equivalente a informar os subúrbios brancos de Perth que os seus irrigadores de relva não funcionariam mais e que as suas casas de banho já não dariam descarga e que tinham de mudar – e se recusassem, a polícia os expulsaria.

Para onde iriam os expropriados? Onde viveriam? Em seis anos, o governo Barnett construiu em áreas remotas algumas casas para indígenas. A região Kimberley, lar ancestral indígena, é uma das mais prósperas de todas, um estado reconhecido por sua riqueza evidente, campos de golfe e prisões super-lotadas com negros empobrecidos. A taxa de aprisionamento de aborígenes da Austrália Ocidental é mais de oito vezes superior à do apartheid na África do Sul. Ali há uma das mais elevadas taxas de encarceramento juvenil do mundo, quase toda constituída por indígenas, incluindo crianças mantidas em confinamento solitário em prisões de adultos, com suas mães a vigiarem do lado de fora.

Em 2013, a antiga ministra das Prisões, Margaret Quirk, contou-me que o estado estava "empilhar em prateleiras" prisioneiros aborígenes. Quando lhe perguntei o que queria dizer, ela respondeu: "É um armazém".

Em Março, Barnett alterou sua história. "Surgiu prova", disse ele, "de pavorosos maus tratamento de crianças pequenas" nas terras ancestrais. Qual a prova? Barnett afirmou que fora descoberta gonorreia em crianças com até 14 anos, a seguir admitiu que não sabia se isto acontecera nas terras ancestrais. Seu comissário de polícia, Karl O'Callaghan, corroborou que o abuso sexual de crianças era "comum". Ele mencionou um relatórios de 15 anos atrás do Australian Institute of Family Studies. O que deixou de dizer era que o estudo destacava a pobreza como a causa esmagadora do "descaso" e que o abuso sexual representava menos de 10 por cento.

O Australian Institute of Health and Welfare, uma agência federal, divulgou recentemente um relatório do que denomina o "Fardo fatal" de doenças e traumas do Terceiro Mundo arcadas pelo povo indígena que "resulta em quase 100 mil anos de vida perdida devido à morte prematura". Este "fardo fatal" é o produto da pobreza extrema imposta na Austrália Ocidental, tal como no resto da Austrália, pela negação de direitos humanos.

Na vasta e rica Austrália Ocidental de Barnett, uma escassa fracção dos rendimentos da mineração, do petróleo e do gás beneficiou comunidades o seu governo tem o dever de cuidar. Na cidade de Roeburne, no auge da mineração na região de Pibara, 80 por cento das crianças indígenas sofriam de uma infecção dos ouvidos chamada otitis media que causa surdez.

Em 2011, o governo Barnett demonstrou uma brutalidade na comunidade de Oombulgurri que as demais terras ancestrais podem aguardar. "Primeiro, o governo fechou os serviços", escreveu Tammy Solonec da Amnistia Internacional, "fechou as lojas, de modo que o povo não podia comprar alimentos nem bens essenciais. Fechou a clínica, de modo que os doentes e idosos tinham de se mudar, e as escolas de modo que famílias com filhos tinham de abandonar ou terem seus filhos delas arrancados. A esquadra de polícia foi o último serviço a fechar e a seguir a electricidade e a água foram desligados. Finalmente, os dez residentes que resolutamente permaneceram até o fim foram expulsos à força e tiveram de abandonar suas posses pessoais. A seguir, os bulldozers arrasaram Oombulgum. O governo da Austrália Ocidental literalmente escavou um buraco e enterrou o entulho das casas das pessoas e seus pertences pessoais".

Na Austrália do Sul, os governos estadual e federal lançaram um ataque semelhante a 60 remotas comunidades indígenas. A Austrália do Sul tem desde há muito estabelecido a Aboriginal Lands Trust, de modo a que as pessoas pudessem defender seus direitos – até certo ponto. Em 12 de Abril, o governo federal ofereceu US$15 milhões ao longo de cinco anos. Que uma soma tão miserável seja considerada suficiente para financiar serviços adequados na grande extensão de lares ancestrais do estado mostra o valor atribuído a vidas indígenas pelos políticos brancos que gastam sem hesitar US$28 milhões por ano em armamentos e tropas. Haydn Bromley, presidente do Aboriginal Lands Trust, contou-me: "Os US$15 milhões não incluíam a maior parte das terras ancestrais e mal cobriam o essencial – electricidade e água. Desenvolvimento da comunidade? Infraestrutura? Esqueça isso".

O actual diversionismo em relação a estes segredos sujos nacionais é abordar as "celebrações" do centenário do desastre militar Edwardiano de Gallipoli , em 1915, quando 8.709 australianos e 2.779 soldados neo-zelandeses – os Anzacs – foram dizimados num fútil assalto a uma praia na Turquia. Nos últimos anos, governos de Canberra promoveram este desperdício imperial de vidas como um feito histórico a fim de mascarar o militarismo subjacente ao papel da Austrália como "vice-xerife" da América no Pacífico.

Nas livrarias, prateleiras de "não ficção australiana" estão cheias de volumes oportunistas acerca acções audaciosas em tempo de guerra, heróis e chauvinismo. Subitamente, o povo aborígene que combateu para o homem branco ficou na moda, ao passo que aqueles que combateram contra o homem branco na defesa do seu próprio país, a Austrália, estão fora da moda. Num país atulhado com memoriais Anzac, não há nem um memorial oficial para os milhares de nativos australianos que combateram e caíram defendendo a sua terra ancestral.

Isto faz parte do "grande silêncio australiano", como o denominou W.E.H. Stanner em 1968 na palestra em que descreveu um "culto do esquecimento a uma escala nacional". Referia-se ao povo indígena. Hoje, o silêncio é omnipresente. Em Sydney, a Art Gallery da Nova Gales do Sul tem actualmente uma exposição, "O fotógrafo e a Austrália", na qual a cronologia temporal deste antigo país começa, incrivelmente, com o Capitão Cook.

O mesmo silêncio encobre outra resistência épica e permanente. Extraordinárias manifestações de mulheres indígenas a protestarem contra a remoção dos seus filhos e netos pelo estado, algumas delas a ponta de bala, são ignoradas pelos jornalistas e patrocinadas pelos políticos. Mais crianças indígenas estão hoje a ser arrancadas dos seus lares e comunidades do que nos piores anos da Geração Roubada. Um recorde de 15 mil crianças está actualmente detida "sob cuidados"; muitas são dadas a famílias brancas e nunca retornarão às suas comunidades.

No ano passado, o ministro da Polícia Australiana Ocidental, Liza Harvey, compareceu a um visionamento em Perth do meu filme, Utopia o qual documentava o racismo e selvajaria da polícia para com australianos negros e as muitas mortes de jovens aborígenes sob custódia. O ministro chorou.

Sob a sua vigilância, 50 polícias armados da cidade de Perth atacaram um campo indígena ancestral em Matagarup e arrebanharam sobretudo mulheres idosas e jovens mães com filhos. As pessoas no campo consideraram-se como "refugiados... à procura de segurança no seu próprio país". Clamaram pela ajuda do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados.

Políticos australianos ficam nervosos com as Nações Unidas. A resposta de Abbott foi o insulto. Quando o Professor James Anaya, o Relator Especial da ONU sobre Povos Indígenas, descreveu o racismo da "intervenção", Abbott disse-lhe para "fazer algo útil" e "não ouvir a antigas vítimas da brigada".

O planeado encerramento de lares ancestrais indígenas infringe o Artigo 5 da Convenção Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial (ICERD) e a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas (UNDRIP). A Austrália comprometeu-se a "providenciar mecanismos eficazes para a prevenção de, e reparação para... qualquer acção que tenha o objectivo de expropriar [povos indígenas] das suas terras, territórios e recursos". A Cláusula sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais está embotada. "Expulsões forçadas" são contra a lei.

Uma pressão internacional está a acumular-se. Em 2013, o Papa Francisco instou o mundo a actuar contra o racismo em prol de "povos indígenas que estão cada vez mais isolados e abandonados". Foi o desafio da África do Sul a estes princípios básicos de direitos humanos que desencadeou o opróbrio internacional e a campanha que deitou abaixo o apartheid. A Austrália que tome cuidado. 


A FORÇA “ÁRABE” DE DEFESA COMUM



Thierry Meyssan*

Numerosos Estados, e personalidades, que haviam tomado posição no início da guerra do Iémene acabaram reconsiderando. Evitando posicionar-se automaticamente segundo a clivagem sunitas/xiitas, eles apelam ao cessar-fogo e a uma solução política. Por trás desta guerra inútil esconde-se, com efeito, o projecto de criação de uma Otan árabe… sob comando israelita.

A sua Doutrina de Segurança Nacional, publicada a 6 de fevereiro de 2015, o presidente Obama escreveu: «Uma estabilidade a longo prazo [no Médio- Oriente e Norte da África] requer mais que o uso e a presença de Forças militares norte-americanas . Ela exige parceiros que sejam capazes de se defender por si próprios. É por isso que investimos na capacidade de Israel, da Jordânia e dos nossos parceiros do Golfo em contrariar qualquer agressão, mantendo ao mesmo tempo o nosso compromisso inabalável com a segurança de Israel, nisso incluindo o seu progresso militar qualitativo» [1].

A leitura atenta do documento não deixa nenhuma dúvida. A estratégia do Pentágono consiste em criar uma versão moderna do Pacto de Bagdad, uma Otan árabe, de modo a poder retirar as suas forças militares do Médio-Oriente e Norte da África e a reposicioná-las no Extremo-Oriente (a «báscula» contra a China).

Do mesmo modo fica claro que, na sua visão, o Pentágono prevê que esta «Força árabe de Defesa comum» seja composta pelos Estados do Golfo e pela Jordânia, e que ela seja colocada sob comando israelita. Se retomarmos o exemplo do Pacto de Bagdad, recordaremos que ele fora constituído pelo Reino Unido com as suas antigas colónias. No entanto, ao fim de três anos, o seu estado-maior foi colocado sob o comando do Pentágono, muito embora os Estados Unidos não tenham jamais aderido ao Pacto.

Em novembro de 2013, o então presidente israelita(israelense-br), Shimon Peres, interveio, por vídeo-conferência, perante o Conselho de Segurança do Golfo, reunido em Abu Dhabi na presença de representantes dos principais membros da Liga Árabe e de Estados sunitas da Ásia [2]. A sua intervenção, que incidiu sobre a necessidade de um novo pacto militar face ao Irão, foi longamente aplaudida.

O SIPRI, de Estocolmo, acaba de revelar que a Arábia Saudita estaria preparada para criar a «Força árabe de Defesa comum», aumentando o seu orçamento militar em 2014 para $ 13 biliões(bilhões-br) de dólares (+17%!).

Riade tenta envolver o maior número possível de Estados neste projecto. Conseguiu, pois, assim comprar a participação do Egipto. Para o conseguir, os Estados do Golfo ofereceram 12 biliões de dólares para os projectos de investimento do Cairo, aquando da conferência económica de Sharm el-Sheikh, a 13 de março.

A Liga Árabe adoptou este projecto na sua cimeira em Sharm el-Sheikh, a 1 de Abril. Oficialmente, trata-se de aplicar o Tratado de Defesa árabe de 1950. Para lutar contra o terrorismo, a não ser que seja para satisfazer as ambições sauditas no Iémene. A guerra contra os Hutis(tas), da qual ninguém entende a necessidade, desempenha aqui o papel de um exercício em grande escala, sem que se manifeste compaixão pelo milhar de mortos e os 3.000 feridos que ela já provocou.

Desde já, segundo a Stratfor, o Estado-Maior da operação «Tempestade decisiva» não está na Arábia, mas, sim, na Somalilândia. Este país, que declarou a independência em 1960, foi depois unido à Somália na sequência de um golpe de Estado em 1969, proclamou pela segunda vez a sua independência em 1991, antes de ser reintegrado de novo na Somália, em 1994, e proclamou uma terceira vez a sua independência em 2002. Aquando das suas duas primeiras independências, Israel foi o primeiro estado a reconhecer a Somalilândia. Actualmente, este Estado não é reconhecido por ninguém, mas, desde 2010, é uma base israelita para controlar o estreito de Bab el-Mandeb, que liga o Canal de Suez e o Mar Vermelho ao Golfo de Áden e ao Oceano Índico.

Os chefes de Estado-maior da Liga Árabe vão reunir-se a 22 de abril para avaliar as unidades que poderiam colocar à disposição deste dispositivo. O Egipto, o Koweit e Marrocos –o conjunto dos três implicados nos bombardeamentos ao Iémene— apresentarão um relatório preliminar, a 1 de julho.

Tudo isto era, infelizmente, previsível. Depois de ter traído o Povo sírio, excluindo a República árabe da Síria das suas fileiras em violação dos seus estatutos, a Liga Árabe apresta-se para trair o Povo palestino, e para colocar os seus exércitos sob o comando de um Estado colonial.

Notas
1National Security Strategy, (Ing-«Estratégia de Segurança Nacional»- ndT) White House, February 6, 2015. E o nosso comentário : “Obama rearma”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 9 de Fevereiro de 2015.
[2] “O presidente de Israel falou perante o Conselho de Segurança do Golfo em fins de novembro”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 8 de Dezembro de 2013.

Na foto: Nabil el-Arabi, secretário-geral da Liga árabe, tenta explicar o projecto de Força «árabe» de Defesa comum.

*Thierry Meyssan - Tradução Alva – Rede Voltaire

*Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación(Monte Ávila Editores, 2008).

ONU. 6,6 MILHÕES DE AFETADOS PELO SISMO NO NEPAL



Cerca de 6,6 milhões de pessoas que vivem em 30 distritos foram afetadas pelo forte sismo, que sacudiu, este sábado, o Nepal, causando pelo menos 1.800 mortos, segundo estimativas divulgadas hoje pela ONU.

Em comunicado, o coordenador do gabinete das Nações Unidas para o Nepal, Jamie McGoldrick, indicou ter-se reunido com representantes do Governo nepalês para oferecer assistência e discutir as necessidades da resposta à catástrofe.

"Estamos prontos para ajudar o Governo do Nepal a responder a esta terrível tragédia", disse o coordenador da ONU em Katmandu, acrescentando que "serão envidados todos os esforços para assistir aqueles que precisam de ajuda".

Um terramoto de magnitude 7,8 na escala de Richter, com epicentro localizado cerca de 80 quilómetros da capital, destruiu inúmeros edifícios e monumentos históricos e foi sentido também noutros países da região, como Índia e China, onde também deixou vítimas.

O mais recente balanço divulgado hoje pelas autoridades informa de 1.896 mortes, 723 das quais registadas em Katmandu.

Uma equipa das Nações Unidas chegou, esta manhã, à capital para ajudar a identificar as necessidades mais imediatas dos afetados, indicou o gabinete da ONU.

"É essencial que ajamos da forma mais rápida e eficaz possível", disse o responsável, salientando ser "preciso garantir que não se perdem mais vidas e priorizar as necessidades dos mais vulneráveis", na mesma nota citada pela agência Xinhua.

Lusa, em Notícias ao Minuto

Autoridades. Já vai em dois mil o número de mortos devido a sismo no Nepal

O número de mortos na sequência do forte sismo de magnitude 7,8 na escala de Richter que sacudiu, este sábado, o Nepal, ascende a 2.000, informaram hoje fontes oficiais do Nepal e de países vizinhos.

O porta-voz da Polícia Nacional do Nepal, Kamal Singh Ban, afirmou que no Nepal o número de vítimas mortais subiu para 1.953, enquanto fontes oficiais da Índia, que também foi afetada pelo terramoto, reviram em alta o balanço de 34 para 53 mortos.

Estimativas divulgadas hoje pela ONU indicam que o sismo afetou cerca de 6,6 milhões de pessoas em 30 distritos do Nepal.

As manifestações de solidariedade para com o Nepal têm-se multiplicado, com inúmeros governos e organizações internacionais a oferecerem ajuda.

Índia e China afetadas pelo abalo telúrico -- e com o registo de 53 e 17 mortos, respetivamente -- anunciaram o envio de equipas para Katmandu, à semelhança de outros países e territórios da região, como Japão, Sri Lanka, Paquistão, Singapura ou Taiwan.

Os Estados Unidos anunciaram ainda no sábado, dia da catástrofe, o envio de uma equipa de especialistas em resposta a catástrofes, à semelhança da União Europeia, tendo Washington prometido de igual modo um milhão de dólares em ajuda para responder às primeiras necessidades pós-sismo.

Em comunicado, a União Europeia indicou estarem a caminho de Katmandu especialistas humanitários para as zonas mais afetadas. "A dimensão total das mortes e danos ainda é desconhecida, mas informações indicam ser elevada, tanto em termos de perdas humanas, feridos como ao nível do património cultural".

Alemanha, Reino Unido e Espanha também prometeram assistência, com a Noruega a anunciar que vai facultar 30 milhões de coroas (3,5 milhões de euros) em ajuda humanitária.

Hoje, Austrália e Nova Zelândia também anunciaram o envio de apoio ao Nepal, devastado por aquela que é pior tragédia da sua história recente, enquanto procuram localizar centenas de cidadãos nacionais referenciados como estando no país.

Camberra comprometeu-se com uma ajuda de 5 milhões de dólares australianos (3,6 milhões de euros), enquanto a Nova Zelândia -- que ainda se recupera do mortífero sismo de 2011 que atingiu a sua segunda maior cidade (Christchurch) -- vai canalizar 1 milhão de dólares neozelandeses (700 mil euros).

Lusa, em Notícias ao Minuto

Portugal. QUADRATURA DO CÍRCULO



Carvalho da Silva – Jornal de Notícias, opinião

O Programa de Estabilidade apresentado pelo Governo à Comissão Europeia e o documento Uma década para Portugal, elaborado por um grupo de economistas a solicitação da direção do Partido Socialista (PS), têm sido tomados por vários analistas e comentadores políticos como quase-programas de governo. Em alguns desses comentários enaltece-se o facto de as propostas estarem a surgir cedo e de serem "bem distintas", o que poderá contribuir para que "os eleitores possam fazer escolhas claras e seguras".

Respeito essas opiniões e a sua bondade democrática, mas considero que o documento do PS (docPS), podendo ser valorizado como contributo para a clarificação em vários aspetos, está muito longe de prefigurar uma verdadeira alternativa. Tendo em conta as relações de forças existentes no cenário político nacional e europeu e no interior do PS, ou surge como uma séria análise crítica que não se fique por "paradigmas" económico-financeiros e contabilísticos, ou nos próximos meses assistiremos a uma progressiva aproximação entre as duas "propostas programáticas".

O Tratado Orçamental e outros condicionalismos das políticas europeias, o peso da nossa dívida pública e os constrangimentos dela resultantes colocam-nos dentro de uma gaiola, e o docPS, no diagnóstico apresentado, faz de conta que estamos em plena liberdade, não questiona as grades que nos aprisionam e, num exercício teórico da quadratura do círculo, diz-nos que vamos conseguir cumprir os saldos orçamentais positivos que o tratado impõe e, simultaneamente, atingir taxas de crescimento muito significativas. Precisamos, sem dúvida, de apostar no crescimento e na melhoria das condições de vida dos portugueses, mas isso não se obtém com milagres. São indispensáveis mudanças estruturais que o permitam.

No que se refere às questões do trabalho e dos rendimentos diretos e indiretos dos trabalhadores, o docPS é de um silêncio arrepiante. Nada diz sobre as inúmeras maldades a que os trabalhadores foram sujeitos: perdas salariais, destruição da contratação coletiva, redução da remuneração do trabalho extraordinário e dos dias de férias e feriados, liberalização acentuada das relações laborais, aumento do horário de trabalho na Administração Púbica, entre muitas outras, donde resultou que, desde 2010, em cada ano, vão passando mais de três mil milhões de euros do fator trabalho para o fator capital.

Sobre o salário mínimo nacional não há proposta. A aparente contrapartida é a criação de um "complemento salarial anual" para as famílias que, mesmo trabalhando, estejam com rendimentos abaixo da linha da pobreza. O salário jamais pode ser mera retribuição de subsistência: o salário deve ser remuneração justa em função da riqueza produzida e tem de ser pago pelas empresas e serviços e não pelas contribuições dos cidadãos. Por outro lado, a perspetiva de se criar um "regime conciliatório" para despedimento é uma aberração, no plano conceptual e perante o existente desequilíbrio nas relações de poder entre patrão e trabalhador.

Quanto às medidas enunciadas para a redução da taxa social única (TSU) o mínimo que se pode dizer é que o PS parece querer engrossar o ataque ao sistema da Segurança Social. É verdade que se apresentam duas ideias com interesse quanto à busca de novas fontes de financiamento para o sistema, mas o avanço de propostas concretas para redução da TSU consubstanciam a conceção de um sistema de segurança social ao serviço do fator capital.

Antes do 25 de Abril é que os descontos dos trabalhadores se usaram para financiar empresas e a guerra colonial. Depois, com forte contributo do PS, construiu-se um sistema que procura dar dignidade às pessoas quando já não podem trabalhar. Não acenem aos trabalhadores com a cenoura de poderem receber agora mais uns tostões quando estão a desproteger o futuro, nem arranjem mais argumentos para as empresas não pagarem salários justos.

É de assinalar o empenho na execução dos fundos europeus, o imposto sobre as heranças ou a reposição de alguns mínimos sociais e do RSI, mas isso não chega. A quadratura do círculo só é interessante como exercício teórico.

“Quem não tem pão não tem liberdade. E há cada vez menos pão na mesa dos portugueses”



MARIA JOÃO LOPES (Texto) e ENRIC VIVES-RUBIO (Fotos) - Público

Apesar do dia cinzento, pessoas de todas as idades desceram a Avenida da Liberdade, em Lisboa. Protestou-se contra o Governo, contra a austeridade, contra o desemprego. E também houve quem lembrasse que a liberdade de imprensa é um valor de Abril.

Álvaro Faria, 68 anos, tem um cravo na lapela e um autocolante, também com um cravo, no casaco. A mulher brinca: “Só te faltou trazer um cravo testa”. O director- geral de uma multinacional, ramo de software, faz questão de sair à rua no 25 de Abril. Mas não esconde algum desencanto: “Este Governo está a recuar em relação aos valores que foram conquistados por Abril, na saúde, na educação, na liberdade. Quem não tem pão, não tem liberdade. E há cada vez menos pão na mesa dos portugueses.”

Foi um entre os “muitos milhares”, segundo a Associação 25 de Abril, que se concentraram no Marquês de Pombal para desfilar pela Avenida da Liberdade. Apesar da tarde cinzenta e de uns pequenos pingos de chuva, os cartazes mantêm-se erguidos e as músicas de intervenção misturam-se com as palavras de ordem.

Nos Restauradores, Álvaro Faria conta que viu as notícias sobre a polémica proposta, segundo a qual os órgãos de comunicação social teriam de apresentar um plano de cobertura das eleições a uma comissão mista constituída pela Comissão Nacional de Eleições e pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social. “Tudo o que seja limitativo da liberdade, sobretudo de expressão, é uma ameaça”, diz, acrescentando que as conquistas de Abril “estão vivas do ponto de vista pessoal, mas do ponto de vista político estão altamente ameaçadas”.

No desfile, há pessoas de todas as idades. João Farinha, arquitecto de 25 anos de Lisboa, também acompanhou a polémica sobre a cobertura eleitoral. Admite que o “espírito” do projecto o “incomodou”. Afasta tudo que o represente “uma ingerência no jornalismo e na independência dos meios de comunicação social”. Mas a questão que mais o preocupa, 41 anos após o 25 de Abril, é “igualdade de oportunidades que está por cumprir”: “A sociedade está cada vez mais desigual, e foi com isso que o 25 de Abril quis romper”.

Essa revolta está estampada nos cartazes contra a austeridade, nas críticas e caricaturas com o Presidente da República, o primeiro-ministro, a chanceler alemã. Grita-se: “É mesmo necessário um aumento de salário”.

“O nosso amanhecer”

Passados 40 anos sobre as eleições para a Assembleia Constituinte, a 25 de Abril de 1975, o capitão de Abril Vasco Lourenço lamenta que hoje em dia haja “muito desencanto”: “As pessoas estão desiludidas com esta política. Quem está no poder dá a sensação que está a comportar-se como os herdeiros dos que foram vencidos no 25 de Abril”, diz, acrescentando que estão “a tentar destruir tudo aquilo que tem que ver com o 25 de Abril”.

E mostrou-se espantado com a recente polémica em torno cobertura eleitoral: “É incompreensível como no Portugal de Abril, passados 41 anos, ainda há deputados que têm ideias desse tipo. Pôr essa hipótese é absolutamente incompreensível. Não se percebe”. Diz mesmo: “Deve estar tudo louco.” Também a porta-voz do BE, Catarina Martins, reage à controvérsia: “A democracia em Portugal tem sofrido muito, mas é forte o suficiente para não deixar passar nenhuma censura, era o que mais faltava.”

No desfile, o ex-reitor Sampaio da Nóvoa, que se vai candidatar à Presidência da República, diz que o que aconteceu “foi um pequeno equívoco” que espera “que seja corrigido rapidamente”: “O 25 de Abril é o dia maior da minha vida. É imprescindível que todos estejamos desse lado, do lado da liberdade.”

De manhã, o Presidente da República, Cavaco Silva, tinha defendido que o “diálogo e o consenso” permitirão alcançar compromissos “imprescindíveis” para garantir a “estabilidade política e a governabilidade do país”. Sampaio da Nóvoa não ouviu o discurso. Ainda assim, concorda que haja consensos, mas não “para deixar tudo na mesma”. O ex-reitor espera que as legislativas e presidenciais tragam um “grande momento de mudança para Portugal”.

Sampaio da Nóvoa recorda a primeira vez que votou, em 1975: “Estava na luta por essa liberdade, traduzida numa democracia que se consolida a partir desse momento.” Acredita que muitos dos valores de Abril se cumpriram, mas ainda “há muita coisa que falta fazer, sobretudo no que diz respeito à dimensão social, do desenvolvimento deste país, à dimensão cultural”.

Também o secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, insistiu que “Abril está a cumprir-se, a política de direita é que não”: “É preciso actualizar, trazer à ordem do dia os valores de Abril, que perspectivaram um outro caminho, de esperança, de confiança, de direitos, de conquistas.”

No palco montado no Rossio ainda houve tempo para discursos. Ao microfone, o militar Bargão dos Santos afirmou que “o 25 de Abril, apesar dos que o têm pretendido denegrir ou destruir, está vivo e viverá sempre”: “Foi o nosso amanhecer”, disse. E citou o conhecido poema de Sophia de Mello Breyner: “Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo”.




"Pelo menos quem tem consciência tem de votar"
  
ANA CRISTINA PEREIRA (texto) e PAULO PIMENTA (fotos) - Público

"Desfile da liberdade" no Porto fez-se debaixo de chuva, mas com memória bem viva das primeiras eleições livres de há 40 anos.

Chovia este sábado à tarde no Porto. José Ribeiro abrigava-se na entrada de um prédio, sem tirar os olhos do Largo Soares dos Reis, palco da tradicional homenagem aos resistentes antifascistas. A não ser que alguma doença lhe troque as voltas, esteja onde estiver, não deixa passar em branco o 25 de Abril.

Há 40 anos, mal conseguiu pregar olho a noite inteira. Quantos terão sentido semelhante agitação? Portugal despertava para o primeiro sufrágio livre e universal da sua História. Longas filas formavam-se frente às mesas de voto. Numa mais se viu tamanha afluência – a taxa de abstenção foi de 8,5%.

José Ribeiro nunca tinha votado. Poucos podiam votar antes do 25 de Abril de 1974. Nem percebia os critérios. “O meu falecido pai podia votar e era analfabeto. Foi militar e tinha uma credencial do Estado para votar. Eu não podia votar e tinha o ciclo preparatório e trabalhava na CP.”

Aquelas primeiras eleições serviram para eleger a Assembleia Constituinte. José Ribeiro votou em Espinho, com a mulher. No boletim de voto figuravam 14 forças políticas. Não se atrapalhou. “Votei e nunca mais deixei de votar, embora agora esteja revoltado por isto estar a voltar ao mesmo.”

Ao som da Grândola Vila Morena, de José Afonso, arrancava o chamado “Desfile da Liberdade”. Debaixo da chuva insistente, a canção-sinal depressa era substituída pelas costumeiras palavras de ordem da CGTP-IN.

– Direitos conquistados – gritava alguém.

– Não podem ser roubados – respondiam os manifestantes em coro.

– Abril de novo…

– Com a força do povo!

Havia em José Ribeiro uma indisfarcável vontade de saltar para o meio da rua do Heroísmo. Assusta-o o avanço do desemprego, da pobreza, e o recuo da protecção social. Sabe estar longe de outros tempos e é o mais longe possível que se quer manter. Mesmo num encontro fortuito, debaixo de um alpendre, enquanto o desfile passa, pode contar histórias de arrepiar, como esta: uma vez, numa deslocação do então Presidente da República, Américo Tomás, um rapaz que trabalhava na CP comentou com um colega: “É pá, tanta gente a passar fome e este aparato todo!” Não tardaram a ser ambos levados por um agente da polícia política. “Nunca mais trabalharam na CP!”

“Era um regime de terror”, enfatizava o homem, que vai nos 75 anos, está reformado há 15. “Só a liberdade das pessoas vale tudo!” A liberdade de falar, mas também a de eleger. “Pelo menos quem tem consciência, tem de votar para se defender. Se nos tirarem isso, tiram-nos tudo.”

O desfile prosseguia. Pessoas do sexo masculino, do sexo feminino, muitas envelhecidas, algumas ainda crianças, em passo lento, ainda que menos do que se o céu estivesse limpo. Muitos cravos vermelhos debaixo de guarda-chuvas, amiúde pretos, rumo à Avenida dos Aliados.

– Aos fascistas custará…

– mas Abril vencerá!

– Para nós e muito mil…

– Vivam os valores de Abril!

Entre familiares, amigos, conhecidos, desconhecidos, desfilava Maria José Oliveira Peixoto. Também ela votou há 40 anos pela primeira vez. Fê-lo no Porto. Contava 29 anos. “Fui com os meus pais e a minha irmã. Éramos da mesma mesa de voto, uma vez que residíamos na mesma casa. Fomos depois do almoço. Até à hora do almoço, havia muita gente.” Muitos iam antes ou depois da missa.

Os resultados finais tardaram dias a ser conhecidos. A vitória foi arrecadada pelo PS de Mário Soares, com 38% dos votos, seguido pelo PPD de Francisco Sá Carneiro, com 26%. O PCP ficou-se pelos 12%, o CDS pelos 7%, o MDP pelos 4%. Maria José não gostou. Filiara-se no PCP logo a seguir à revolução.

Tempos conturbados aqueles. Após a tentativa de sublevação militar liderada por António Spínola, a 11 de Março de 1975, o país viveu uma radicalização. De repente, Portugal entrou no designado Processo Revolucionário em Curso (PREC), que ficou conhecido como "Verão Quente".

 “Naquele tempo, vivíamos tudo acaloradamente”, recorda Maria José. “Havia muitos excessos. Provavelmente também os cometi, embora ache que era equilibrada.” Trabalhava numa agência de viagens, na Avenida dos Aliados, onde já então desaguavam as manifestações. “Via tudo!”

Os ânimos acalmaram-se e os cidadãos parecem estar cada vez mais afastados da política. No ano passado, no sétimo acto eleitoral destinado a eleger os representantes no Parlamento Europeu, o país registou a maior taxa de abstenção de sempre – 66,2%. Quem sabe que acontecerá nas legislativas de Setembro?

“Muita gente não vota porque está desencantada”, interpreta Maria José. “Também estou. Também estou desencantada com tudo o que está a acontecer, mas não deixo de votar. Eu voto. Eu voto sempre. Só que muita gente desencanta-se e fica em silêncios, não se dá, não participa.” E ela tem pena. Afinal, não vai há muito tempo muita gente não podia votar, por  muito que quisesse. 

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