domingo, 25 de outubro de 2015

METAMORFOSEANDO OS DIREITOS HUMANOS



Rui Peralta*, Luanda

Nascemos, todos nós, “livres e iguais em dignidade e em direitos”. Temos, todos, “direito á vida, á liberdade e á segurança pessoal”. Nenhum de nós pode ser “submetido a tortura ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”. Nenhum de nós pode ser “arbitrariamente preso, detido ou exilado”. Todos nós, Humanidade, temos direito a ser julgados por um “tribunal independente e imparcial” que decida dos nossos direitos e obrigações. Todos somos inocentes até que a nossa eventual culpabilidade “fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas”. Temos, todos nós humanos, “direito á liberdade de opinião e de expressão”, ou seja, não podemos ser incomodados por pensarmos e por difundirmos os nossos pensamentos, ideias e opiniões e de lermos, ouvirmos e vermos obras e ideias dos outros. Temos também, em todos os cantos do mundo, “direito á liberdade de reunião e associação pacíficas”. Por fim, entre outros direitos e obrigações, temos todos nós, indivíduos, “deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade” e no exercício dos direitos e gozo das liberdades estamos apenas sujeitos “às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral e da ordem publica e do bem-estar numa sociedade democrática”.

Todos estes princípios, direitos, liberdades, garantias e deveres (entre muitos outros) são conteúdo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, adoptada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, na sua Resolução 217A (III) de 10 de Dezembro de 1948. E por muito estranho que pareça a alguns, a República de Angola efectiva este documento, estabelecido no espírito da sua Constituição e proclamado no artigo 2º (Estado Democrático de Direito), §2, que reza assim: “A República de Angola promove e defende os direitos e liberdades fundamentais do Homem, quer como indivíduo quer como membro de grupos sociais organizados, e assegura o respeito e a garantia da sua efectivação pelos poderes legislativo, executivo e judicial, seus órgãos e instituições, bem como por todas as pessoas singulares e colectivas.”. Ou seja Angola não se limita a proclamar, mas a garantir a efectivação destes direitos, liberdades e garantias. E nesse sentido é realizado um esforço colectivo que mobiliza a sociedade angolana para efectivar estes princípios.

O nosso primeiro presidente e fundador da Nação, o Camarada Presidente Agostinho Neto, foi, em 1961, durante a luta de libertação nacional contra o colonial-fascismo, considerado o preso político do ano (com mais 5 prisioneiros políticos: Constantin Noica, filósofo romeno; Reverendo Ashton Jones, activista norte-americano dos direitos cívicos; o Arcebispo Beran, de Praga, detido durante a Primavera de Praga; Toni Ambatielos, comunista e sindicalista grego; e o Cardeal Mindszenty,  da Hungria, detido durante a revolta húngara) pela Amnistia Internacional, organização que todos nós angolanos muito prezamos, fundada nesse mesmo ano pelo advogado britânico Peter Benenson, com o objectivo de defender os direitos humanos. Durante toda a luta de libertação nacional a Amnistia Internacional e os organismos das Nações Unidas para os Direitos Humanos acompanharam os prisioneiros políticos e os guerrilheiros quando estes eram detidos e isso é algo que a Nação angolana nunca irá esquecer.

É pois, com estranheza que em Angola tomamos conhecimento das declarações de Michel Forst, Relator Especial das Nações Unidas para os Defensores de Direitos Humanos, que instou  o Governo angolano a libertar os 15 cidadãos angolanos detidos desde Junho, numa declaração co-assinada pelo Relator Especial para a Liberdade de Expressão e de Reunião, Maina Kiai,  pelo Relator Especial para a Promoção e Protecção da Liberdade de Expressão, David Kaye, pelo Relator Especial para a Tortura, Juan Mendez e pelo Presidente do Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias, Seong-Phil Hong. Estranheza porque aguardamos, desde o ano passado (ainda os 15 cidadãos não tinham sido detidos) pela visita ao país do Relator Especial para a Liberdade de Expressão, que nunca se dignou a vir, depois do Governo Angolano ter aceitado uma recomendação para a sua visita. Estranheza por não nos visitarem e fazerem recomendações á distância, sem se debruçarem convenientemente pelos processos e sem ouvirem uma das partes: os órgãos de soberania angolanos e em particular o Poder Judicial da República de Angola, Estado Democrático de Direito.

É estranho que assim seja…ou talvez não. Porque a nós, angolanos, não nos parece que estes senhores andem assim tão preocupados com os nossos cidadãos detidos. Estão é apenas preocupados em se aproveitarem deles, para melhor ingerirem nos nossos assuntos internos. E isso, caros senhores, escrevam e leiam – para melhor aprenderem – nunca iremos tolerar.

*Rui Peralta / Evy Eden Batista Martins

DEMOCRACIA ATACADA EM ANGOLA, MOÇAMBIQUE E GUINÉ-BISSAU



Marcolino Moco* - Africa Monitor, opinião

1. Uma saudação à atitude, algo inesperada, da Senhora Angela Merkel, sempre vista como a “capataz” da “Europa imperialista”, mas que, à volta dos fugidos das guerras do Médio Oriente, foi capaz de reavivar, com forte simbolismo, a ideia de que a Europa tem grande responsabilidade no regresso ao primado da dignidade humana, se quisermos preservar o nosso planeta, em tantas ameaças envolto.

2. Se a consideração da dignidade humana e dos direitos humanos são o eixo da salvação do gênero humano como, a contrario sensu, o demostraram a I e a II guerras mundiais e todos os outros conflitos sangrentos entre grupos humanos, então, uma saudação deve ir para o gesto de Barack Obama na sua tentativa de colocar os Estados Unidos na liderança das batalhas mais directas para poupar o ambiente terráqueo do que poderão ser as últimas machadadas contra a esperança de vida digna e completa para os nossos filhos e netos, e, quem sabe, mesmo para nós próprios nos dias que ainda nos restam?

3. Já mais perto da minha seara histórico-linguística, não posso deixar de saudar a ainda que tardia e meia emenda do actual Presidente da República da Guiné-Bissau, que depois de nos ter dado uma triste lição de interpretação tão estrita e mesquinhamente legal e formalista (positivista?) de uma Constituição, abrindo no seu país uma crise absolutamente desnecessária, só para (quiçá) fazer jus à sua condição (formal) de “primeiro magistrado da Nação”; vá lá, aceitou o veredito da suprema instância judicial do país. Esperemos que não seja apenas uma cedência transitória para novos assaltos demolidores contra a tão necessária estabilidade institucional no país irmão. Seja como for, deu-se mais uma comprovação de afirmações anteriores minhas, de que quanto a certo “sentido de vergonha”, não há, entre os países africanos de língua portuguesa, pior do que a actual situação da “justiça angolana”, agora (com a saída do Dr. Cristiano André da presidência do Tribunal Supremo) superior e totalmente entregue a assessores do Presidente da República e abertamente dependente de suas “ordens superiores”.

4. Já o fiz no FB, mas volto a fazê-lo aqui. Na margem Índica do Continente, Moçambique, muito mais perto ainda da “minha seara”, lá onde se voltam a adensar nuvens agoirentas (assassinatos ainda não explicitados e quase a queima-roupa de figuras como o professor Gilles Cistac ou, mais recentemente, do jornalista Paulo Machava, em simultâneo com reajuntamentos de tropas dos antigos “dois lados” – para novos confrontos?!), saudação a Mia Couto que “sem papas na palavra”, não tremeu para dizer aos que mandam que, hoje por hoje, é preciso saber ouvir o “não” dos outros. Necessária esta saudação a partir desta margem atlântica, em que de gargantas do mesmo peso, idade e talento que Mia Couto, enrolam-se as palavras de fora para dentro, onde são bem deglutidas depois de engolidas. Na verdade, o caso não é para menos.

5. Finalmente, a “foice” dentro da “minha própria seara” e quem sabe se isso não são derradeiros sinais da aproximação da “vez de todos” (ainda Mia Couto):

5.1. Graças a persistência de almas como a eurodeputada Ana Gomes e do activista dos direitos humanos Rafael Marques, o Parlamento Europeu reconhece – até que em fim! – e de forma inequívoca, que antes do petróleo e outros minerais está a dignidade humana, no caso dos angolanos e, especialmente, da sua juventude que quer romper com as péssimas práticas do passado, porque merece um futuro melhor.

5.2. E no momento que escrevo estas linhas estará a decorrer um encontro de apoio aos presos políticos – vergonha no século XXI e num país “democrático e de direito” –, se ao menos for permitida esta forma de manifestação. Como não saudar esta forma criativa de contornar legitimidades ”ilegitimadas”? 

5.3. Finalmente, mas não menos importante, saudar a acção coordenada de todos os grupos da oposição na Assembleia Nacional (AN), reunidos pela primeira vez em jornada parlamentar conjunta, com a presença de partidos não representados na AN, presentes todos os líderes partidários de Angola e figuras importantes da sociedade civil; e com intervenções e conclusões à altura da situação grave que o país vive já há algum tempo, no essencial artificialmente criada no plano jurídico-institucional, e que se vai tornando um tanto quanto explosiva na sua combinação com a irresponsabilidade com que se gere a administração do Estado e dos seus recursos.

A hora é grave mas ao mesmo tempo é mais uma oportunidade que se nos oferece para se resolver, de vez, o problema fundamental de uma nação que já por si se constrói com dificuldades naturais, para que, especialmente, partidos políticos não venham a “furar” (como alguma vezes já aconteceu) compromissos solenes a troco de bagatelas e outras efemeridades, para quem se incumbiu de representar sectores importantes de populações e regiões que constituem a nação em construção.

E seria inusitado se, mais uma vez (mesmo quando já quase ninguém acredita) que o Presidente José Eduardo dos Santos aproveitasse esta vaga para rever (sem pensar que se inferioriza) com seus parceiros do panorama político angolano, o caminho errado que escolheu e que pessoalmente tenho criticado com sentido positivo, particularmente, depois do fim da guerra civil?

Como gosta de dizer, com certa graça, um apresentador desportivo na televisão sul-africana, “a ver vamos”. Seguiremos os passos encetados e contribuiremos com ideias para estas iniciativas de indiscutível importância e pertinência, caminhando sempre por veredas da moderação e do realismo possíveis.

*Marcolino Moco é ex-primeiro ministro de Angola e ex-secretário executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa

“DEPOIS DO QUE FIZEMOS PELO PAÍS, ESTAMOS DESILUDIDOS COM OS ANGOLANOS”



Alto responsável da Antex lamenta o tratamento que tem sido dado aos cubanos.

Os profissionais cubanos em Angola estão “desiludidos” com o tratamento que têm recebido no país, confessou um alto responsável da Antex em declarações ao semanário português Expresso.

“Depois do que fizemos pelo país, estamos desiludidos com os angolanos”, disse, sob anonimato, o profissional daquela empresa responsável pela cooperação cubana.

Num texto intitulado A Baía das Sombras, o semanário faz um retrato do actual estado do país, falando da crise económica e das implicações que isso poderá trazer para uma crise social e política.

A saída dos profissionais cubanos de Angola tem sido um tema delicado, tendo forçado o governo a aprovar um crédito de USD 53,3 milhões em Agosto para o pagamento de contratos com a empresa Antex.

Segundo aquele semanário, os médicos e professores, em serviço no interior do país, saem de Angola com o pretexto de irem de férias e não regressam por alegada falta de pagamento dos serviços.

Uma fonte garantiu ao semanário Nova Gazeta que as primeiras dificuldades começaram a ser sentidas em 2013, mas agravaram-se no final do ano passado com a quebra das receitas com a exportação de petróleo, que terá levado o governo a atrasar o pagamento de USD 300 milhões pelos serviços de mais de quatro mil profissionais na saúde e educação.

Enquanto isso, crianças estão em risco nas zonas do interior do país por falta de assistência médica e desidratação. “A situação começa a assumir proporções dramáticas”, afirmou ao Expresso o médico J. Malanda, da clínica Multiperfil.

O governo, citado pela Lusa, diz que 42 por cento dos médicos e 70 por cento dos profissionais de saúde no país são cubanos.

Rede Angola – foto João Gomes/JAImagens

MULHERES DE MANICA APELAM À PAZ EM MOÇAMBIQUE



Em encontro com a primeira-dama da República de Moçambique, em Chimoio, grupo pede maior participação feminina nos processos de paz.

As mulheres da província de Manica, no centro de Moçambique, pediram nesta sexta-feira (23.10) maior espaço e protagonismo na agenda nacional pela paz, bem como equilíbrio de género nos cargos de direcção, chefia e confiança durante encontro com a primeira-dama da República, Isaura Nyusi, em Chimoio.

As mulheres de Manica consideram que a paz é condição fundamental para o desenvolvimento e a promoção do investimento nacional e estrangeiro.

"Gostaríamos de pedir aos intervenientes um envolvimento da mulher nos vários processos com vista a se garantir a manutenção deste bem precioso conquistado há mais de 20 anos", disse uma das discursantes.

Reagindo à mensagem das mulheres de Manica, Isaura Nyusi apelou para a necessidade de vigilância no seio das comunidades, visando denunciar aqueles que atentam a paz e procuram criar distúrbios no seio das populações.

"Direta ou indiretamente nós todos contribuímos para que a paz seja mesmo efetiva. O diálogo é chave para tudo. Pedimos para que haja diálogo. Queremos a paz e penso que em algum momento as pessoas vão entender que de facto é uma preocupação que todos temos", afirmou a primeira-dama.

Isaura Nyusi reiterou a necessidade de defesa e consolidação da unidade nacional, para evitar situações de ódio e intolerância entre os moçambicanos.

A primeira-dama da República, para além de orientar um comício popular, visitou projetos diversos, na sua maioria conduzidos por mulheres.

Bernardo Jequete (Chimoio) – Deutsche Welle

BISSAU: O PROCESSO DE ZAMORA INDUTA



Jorge Heitor* - O Máximo

O contra-almirante guineense José Zamora Induta é actualmente acusado de vários crimes, entre os quais o de terrorismo, por alegadamente ter procurado contrariar o golpe de Abril de 2012, dado pelo general António Indjai, que anteriormente o afastara de Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. 

“Parece que se estava à procura de fazer uma coleção de todos os crimes que se encontram na lei penal. Infelizmente foi isso que aconteceu", disse José Paulo Semedo, advogado de defesa de Zamora Induta, que nestes último meses regressara a Bissau, ido de Portugal, onde se encontrava exilado. No dia 21 de Outubro de 2012, a cidade de Bissau foi palco de mais um acontecimento, de contornos mal definidos, apresentado como uma tentativa de golpe contra os golpistas que em Abril se haviam apossado do poder e colocado com Presidente de Transição Manuel Serifo Nhamadjo. António Indjai, o Presidente e o Governo de Transição por ele patrocinados acusaram um grupo de militares, alegadamente a soldo do contra-almirante José Zamora Induta, de haverem preparado uma intentona, possivelmente com o intuito de colocarem as coisas no ponto em que estavam antes de Abril, com o primeiro-ministro de então, Carlos Gomes Júnior, em vias de vir a ser eleito Presidente da República. O grupo de operacionais acusado pelo duo golpista Indjai-Nhamadjo era comandado pelo capitão Pansau Intchama, que estivera a frequentar um curso em Mafra e que atacou o quartel dos pára-comandos, em Bissalanca, nas imediações do aeroporto de Bissau, com o alegado intuito de recolocar as coisas no pé em que estavam uns sete meses antes. Segundo o entender de António Indjai, de Manuel Serifo Nhamadjo e do Governo golpista por eles instalado, Pansau Intchama teria sido enviado de Lisboa pelo contra-almirante Zamora Induta, com o apoio de Carlos Gomes Júnior, de Portugal e de outros países da CPLP. Em sintonia com Indjai e com o renegado Nhamadjo, também o Partido da Renovação Social (PRS) denunciou então o que seriam as manobras de Zamora Induta e dos seus amigos lusófonos para anular o golpe de estado de Abril, que tão nocivo tinha sido para a Guiné-Bissau. Uma equipa de seis advogados está a preparar a contra argumentação de Zamora Induta às acusações de que é alvo e que o tornam susceptível de mais de 20 anos de cadeia, num país onde reina a impunidade e onde ninguém tem sido condenado por tantos crimes cometidos desde os tempos da luta armada e dos primeiros anos da independência. José Zamora Induta é atualmente o único acusado no caso da alegada tentativa de golpe de estado de 21 de outubro de 2012, dado que outras pessoas, entre as quais o líder do ataque ao quartel dos "bóinas vermelhas" em Bissau, o referido capitão Pansau N'Tchama, seu antigo guarda-costas, beneficiaram o ano passado de um indulto presidencial. Ainda nunca ninguém julgou os assassinos de uma série de personalidades guineenses, mas parece que se quer julgar alguém cujo principal crime poderia ter sido acabar com o Governo colocado em funções pelos golpistas que impediram a segunda volta das eleições presidenciais de 2012, que quase de certeza iriam ser ganhas por Carlos Gomes Júnior. António Indjai e Manuel Serifo Nhamadjo estão a viver tranquilamente a sua vida, depois de todo o mal que causaram ao país, e Zamora Induta serve de arma entre o tão controverso Presidente actual, José Mário Vaz, e o líder do PAIGC, Domingos Simões Pereira, que foi afastado de primeiro-ministro, num conluio com o PRS. Vaz, visto por alguns como uma espécie de ditador na linha de João Bernardo Vieira, "Nino", deu a entender que Zamora Induta teria voltado a Bissau para ajudar Domingos Simões Pereira a reforçar-se como primeiro-ministro e a fazer-lhe sombra. Agora, o país da grande impunidade, onde ainda nem sequer se sabe com todos os pormenores as circunstâncias em que morreram Amílcar Cabral e Francisco Mendes, "Chico Té", tem nas mãos aquele que poderá ser um bode expiatório de muita coisa, um contra-almirante que não é bem visto pelo general António Indjai, que chegou a ser seu adjunto. No dia 1 de Abril de 2010, o então Chefe do Estado-Maior Adjunto, Indjai, deteve Zamora Induta e, também, o primeiro-ministro Carlos Gomes Júnior, que inclusive ameaçou de mandar fuzilar, só não o tendo feito por a reacção popular haver sido muito forte. Carlos Gomes Júnior voltou então a exercer funções, para definitivamente vir a ser derrubado dois anos depois, por esse mesmo António Indjai que deveria estar agora a responder perante os tribunais, pelo muito mal que já fez à Guiné-Bissau. No entanto, em vez de Indjai quem vai aparecer no banco dos réus é José Zamora Induta, possivelmente acusado, entre muitas outras coisas, de ter feito conluio com Carlos Gomes Júnior para matar um seu antecessor como Chefe do Estado-Maior General, Tagme Na Waie, e inclusive Nino Vieira. Alegação esta que chegou a ser feita, a dada altura, pelo antigo primeiro-ministro Francisco José Fadul. O mesmo Fadul acusou Zamora Induta de haver eliminado o general Ansumane Mané, que fora líder da Junta Militar que em 1999 derrotou Nino Vieira, obrigando-o a exilar-se em Portugal. Enfim, uma Guiné-Bissau onde tudo é possível, incluindo os crimes mais torpes e as mais violentas acusações.

*Jornalista

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PORQUE QUER A FRANÇA DERRUBAR A REPÚBLICA ÁRABE DA SÍRIA?



Thierry Meyssan*

Voltando à história da colonização francesa da Síria e comparando-a com a ação dos presidentes Sarkozy e Hollande, Thierry Meyssan põe em evidência a vontade de recolonizar o país por parte de certos dirigentes franceses actuais. Uma posição anacrónica e criminosa que faz a França do presente um estado cada vez mais odiado no mundo.

A França é, hoje em dia, o principal poder apelando ao derrube da República Árabe da Síria. Enquanto a Casa Branca e o Kremlin negoceiam, em segredo, o modo de se livrarem dos jiadistas, Paris persiste em acusar o " regime de Bashar" (sic) de ter criado o Daesh (E. I. -ndT), e em declarar que após a eliminação do Emirado Islâmico convirá derrubar a «ditadura Alauíta» (re-sic). A França é publicamente apoiada pela Turquia e Arábia Saudita, e às escondidas por Israel.

Como explicar este posicionamento de perdedor, quando a França não tem nenhum interesse económico ou político nesta cruzada, quando os Estados Unidos deixaram de treinar combatentes contra a República, e quando a Rússia está em vias de reduzir a cinzas os grupos jiadistas?

A maior parte dos comentadores sublinharam, com razão, os laços pessoais do presidente Nicolas Sarkozy com o Catar, patrocinador da Irmandade Muçulmana, e os do presidente François Hollande igualmente com o Catar, e, também, com a Arábia Saudita. Os dois presidentes financiaram, ilegalmente, uma parte das suas campanhas eleitorais com estes estados, e tem beneficiado de toda a espécie de facilidades oferecidas por esses mesmos Estados. Além disso, a Arábia Saudita detêm, agora, uma parte não negligenciável das empresas do CAC40, de modo que o seu desinvestimento brutal causaria graves prejuízos económicos à França

Eu gostaria de evocar, aqui, uma outra hipótese explicativa: os interesses coloniais de certos dirigentes franceses. Para tal, é necessário um regresso ao passado.

O tratado Sykes-Picot

Durante a Primeira Guerra Mundial, os Impérios Britânico, Francês e Russo acordaram, secretamente, em dividir as colónias dos impérios Austro-Húngaro, Alemão e Otomano, assim que estes fossem derrotados. Na sequência de negociações secretas em Downing Street, o conselheiro do Ministro da Guerra e superior de «Lawrence da Arábia», Sir Mark Sykes, e o enviado especial do Quai d’Orsay, François Georges-Picot, decidem partilhar a província otomana da Grande Síria entre eles e disso informam o Czar.

Os Britânicos, cujo império era comercial, apropriam-se das zonas petrolíferas conhecidas à época, e da Palestina, para aí instalar uma colónia de povoamento judaico. O seu território estendia-se por sobre o do Estado da Palestina, de Israel, da Jordânia, do Iraque e do Koweit actuais. Paris, que estava dividida entre os partidários e adversários da colonização, admitia, por si, uma colonização ao mesmo tempo económica, cultural e política. Apropriou-se, pois, dos territórios do Líbano e da Pequena Síria, actuais, dos quais quase metade da população à época era cristã, e da qual ela se declarava a «protectora» desde o rei Francisco Iº. Finalmente, os lugares santos de Jerusalém e de São João de Acre deviam ser internacionalizados. Mas, na realidade, esses acordos nunca foram plenamente aplicados, quer porque os Britânicos haviam assumido compromissos contraditórios como, sobretudo, porque entendiam criar um Estado judeu para prosseguir a sua expansão colonial.

Jamais as «democracias» britânica e francesa debateram públicamente estes acordos. Teriam chocado o Povo britânico, e teriam sido rejeitados pelo Povo francês. O Acordo Sykes-Picot foi revelado pelos revolucionários bolcheviques que os descobrem nos arquivos do Czar. Eles provocam a fúria dos Árabes, mas os Britânicos e os Franceses não reagiram perante as ações dos seus governos.

A ideia colonial francesa

A colonização francesa começou no reinado de Charles X com a conquista sangrenta da Argélia. Era uma questão de prestígio, que nunca foi apoiada pelos franceses e levou à revolução de julho de 1830.

Mas, a idéia colonial apareceu em França após a queda do Segundo Império e a perda da Alsácia-Mosela. Dois homens de esquerda, Gambetta e Jules Ferry, propõem a conquista de novos territórios em África e na Ásia na impossibilidade de poder libertar a Alsácia e a Mosela, ocupadas pelo Reich alemão. Eles juntaram-se aos interesses económicos da direita ligados à exploração da Argélia.

Como a motivação pela derivação, em relação à libertação do território nacional, não é muito gloriosa, os amigos de Gambetta e de Ferry vão embrulhá-la num discurso mobilizador. Não se trata de satisfazer apetites expansionistas ou económicos, mas, sim, de «libertar povos oprimidos» (sic) e de os «emancipar» de culturas «inferiores» (re-sic). O que era muito mais nobre.

Na Assembleia Nacional e no Senado, os partidários da colonização tinham criado um lóbi para defender os seus apetites: o «Partido Colonial». O termo «partido» não deve aqui induzir em erro, ele não designava uma formação política, mas, antes, uma corrente de pensamento trans-partidário, reunindo uma centena de parlamentares de direita e de esquerda. Eles juntaram-se a poderosos homens de negócios, militares, geógrafos e altos-funcionários, como François Georges-Picot. Se muito poucos Franceses se interessavam pela colonização, antes da Primeira Guerra Mundial, já eram muito mais numerosos no período Entre-as-duas-Guerras... quer dizer, após a restituição da Alsácia e da Mosela. O Partido Colonial, que já não era mais, agora, senão o do capitalismo cego, enroupado de direitos-do-homem, tentou convencer a população através de grandes eventos como a sinistra Exposição Colonial de 1931, e atingiu o seu apogeu com a Frente Popular de Léon Blum, em 1936.

A colonização da Pequena Síria

Na sequência da Guerra e da queda do Império Otomano, o Sherife Hussein das duas mesquitas de Meca e de Medina proclamou a independência dos Árabes. Em conformidade com as promessas de «Lawrence da Arábia» ele proclamou-se «rei dos Árabes», mas é chamado à ordem pela «pérfida Albion».

Em 1918, o seu filho, o Emir Faisal, proclama um governo árabe provisório em Damasco, enquanto os britânicos ocupam a Palestina e os Franceses a costa Mediterrânica. Os Árabes tentam criar um Estado unitário, multiconfessional, democrático e independente.

O presidente dos E.U.A, Woodrow Wilson, reconciliou o seu país com o Reino Unido em torno do projecto comum de criação de um Estado judeu, mas, ele opõe-se à ideia de colonizar o resto da região. Retirando-se da conferência de Versalhes, a França faz-se atribuir um mandato, pelo Conselho Supremo Inter-aliados, para administrar a sua zona de influência, aquando da conferência de San Remo. A colonização tinha encontrado um álibi legal: era preciso ajudar os Levantinos a organizarem-se após a queda dos otomanos.

As primeiras eleições democráticas são organizadas na Síria pelo governo árabe provisório. Elas dão a maioria, do Congresso Geral sírio, a caciques sem verdadeira cor política, mas a assembleia é dominada pelas figuras da minoria nacionalista. Ela adopta uma Constituição monárquica e bi-camarária (cameral-br). Ao anúncio do mandato francês, o Povo revolta-se contra o Emir Faisal, que havia decidido colaborar com os Franceses e os Maronitas do Líbano, que o apoiam. Paris envia a tropa sob o comando do General Gouraud, um dos membros do «Partido Colonial». Os nacionalistas sírios dão-lhe combate em Marjayoun, onde eles são esmagados. Começa a colonização.

O General Gouraud separa primeiro o Líbano ---onde ele dispõe do apoio dos Maronitas--- do resto da Síria, que ele se esforça por governar dividindo, e opondo entre si, os grupos religiosos. A capital da «Síria» é transferida para Homs, uma pequena cidade sunita, antes de regressar a Damasco, mas o poder colonial permanece baseado no Líbano, em Beirute. É conferida uma bandeira à colônia, em 1932, que é composta por três bandas horizontais representando as dinastias Fatímidas (verde), Omíadas (branca) e Abássidas (preta), símbolo para os muçulmanos xiitas quanto à primeira, e para os sunitas quanto às duas seguintes. As três estrelas vermelhas representando as três minorias, cristã, drusa e alauíta.

A França pensa fazer do Líbano um Estado maronita, já que os Maronitas são cristãos que reconhecem a autoridade do papa, e da Síria um Estado muçulmano. Ela não parará de combater os cristãos da Síria Pequena já que eles são maioritáriamente ortodoxos.

Em 1936, a esquerda acede ao poder em França, com o governo da Frente Popular. Ele aceita negociar com os nacionalistas árabes e promete-lhes a independência. O sub-secretário de Estado para os protectorados do Magrebe e dos mandatos do Médio-Oriente, Pierre Viénot, negoceia a independência do Líbano e da Síria (tal como ele havia tentado fazer para a Tunísia). O Tratado é ratificado, por unanimidade, pelo Parlamento sírio, mas, jamais será apresentado por Léon Blum ---membro do «Partido Colonial»--- ao Senado.

No mesmo período, o governo da Frente Popular decide separar a cidade de Antioquia da Pequena Síria e propõe juntá-la à Turquia, o que será feito em 1939. Desta forma, Léon Blum entende livrar-se dos cristãos ortodoxos, cujo patriarca é o titular do Patriarcado de Antioquia, e que os Turcos não deixarão de reprimir.

Por fim, é a divisão da França durante a Segunda Guerra Mundial, que porá termo à colonização. O governo legal de Philippe Pétain tenta manter o mandato, enquanto o governo legítimo de Charles de Gaulle proclama a independência do Líbano e da Síria, em 1941.
No fim da II Guerra Mundial, o Governo Provisório da República põe em acção o programa do Conselho Nacional de Resistência. No entanto, o «Partido Colonial» opõe-se às independências dos povos colonizados. A 8 de maio de 1945 dá-se o massacre de Setif (Argélia), sob o comando do general Raymond Duval, a 29 de maio o de Damasco sob o comando do general Fernand Olive. A cidade é bombardeada pela Força Aérea Francesa durante dois dias. Uma grande parte do "souk" histórico é destruído. A Assembleia do Congresso do Povo Sírio é, ela própria, bombardeada.

As ambições coloniais da França na Síria desde 2011

Enquanto o presidente Nicolas Sarkozy convidava o seu homólogo sírio, Bashar al-Assad, para as cerimónias do "14 de julho", de 2008, nos Campos Elísios, celebrando com isso os seus avanços democráticos, ele negoceia com os E.U. e o Reino Unido a remodelagem do «Médio-Oriente Alargado», em 2009-10. A Secretária de Estado, Hillary Clinton, convence-o a relançar o projecto colonial franco-britânico sob orientação norte-americana, ou seja a teoria da «liderança nos bastidores».

A 2 de novembro de 2010 –-isto é, antes da «Primavera Árabe»---, a França e o Reino Unido assinam uma série de documentos conhecidos como os acordos de Lancaster House. Se a parte pública indica que os dois Estados juntarão as suas forças de projeção (quer dizer, as suas forças coloniais), a parte conservada secreta previa atacar a Líbia e a Síria, a 21 de março de 2011. Sabe-se que a Líbia será atacada dois dias mais cedo pela França, provocando a cólera do Reino Unido que foi assim ultrapassado pelo seu aliado. O ataque contra a Síria, pelo contrário, jamais terá lugar porque o comanditário, os Estados Unidos, mudarão de opinião.

Os Acordos de Lancaster House foram negociados, por parte da França, por Alain Juppé e pelo general Benoît Puga, um partidário ferrenho(fanático-br) da colonização.

Em 29 de julho de 2011, a França criou o Exército Sírio Livre (os «moderados»). Contráriamente à propaganda oficial sobre o seu chefe, o coronel Riyadh al-Asaad, os seus primeiros elementos não são sírios, mas, sim, Líbios da al-Qaida. Riyadh al-Asaad não é mais que uma cobertura destinada a dar o verniz sírio. Ele foi escolhido por causa da sua homonímia com o presidente Bashar al-Assad, com o qual não tem nenhum laço de parentesco. No entanto, ignorando que os dois nomes não se escrevem da mesma maneira em árabe, a imprensa atlantista vê nele o sinal da «primeira defecção no seio do regime».

O Exército Sírio Livre (ESL) é enquadrado por legionários franceses, destacados das suas unidades e colocados à disposição do Eliseu e do general Benoît Puga, o chefe do Estado-maior privativo do presidente Sarkozy. O ESL recebe como estandarte a bandeira da colonização francesa.

Actualmente, o ESL não constitui mais um exército permanente. Mas, a sua marca é usada, pontualmente, para operações imaginadas pelo Eliseu e realizadas por mercenários de outros grupos armados. A França persiste em distinguir jiadistas em «moderados» e, outros, «extremistas». Não existe, no entanto, diferença em termos de pessoal ou de comportamento entre os dois grupos. Foi o ESL que começou as execuções de homossexuais, precipitando-os do alto a partir dos telhados dos edifícios. Foi igualmente o ESL que difundiu um vídeo de um de seus dirigentes, canibal, comendo o coração e o fígado de um soldado sírio. A única diferença, entre moderados e extremistas, é a sua bandeira : ou, a da colonização francesa, ou a da jiade.

No início de 2012, os legionários franceses escoltam 3.000 combatentes do ESL para Homs, a antiga capital da colonização francesa, para fazer dela a «capital da revolução». Eles entricheiram-se no quarteirão novo de Baba Amr e proclamam um Emirado Islâmico. Um tribunal revolucionário condena à morte mais de 150 moradores que permaneceram no quarteirão e fá-los degolar em público. O ESL aguentou um cerco de um mês protegido por posições de tiro com mísseis anti-tanque Milan, colocados à disposição pela França.

Quando o presidente François Hollande relança a guerra contra a Síria, em julho de 2012, ele conserva –—facto único na história da França--- o chefe de Estado-maior privado do seu antecessor, o general Benoît Puga. Este retoma a retórica e a pose colonial. Assim, ele declara que a República Árabe Síria é uma «ditadura sanguinária» (é preciso, pois, «libertar um povo oprimido»), e que o poder é confiscado pela minoria Alauíta (é preciso, pois, «emancipar» os sírios desta seita horrível). Ele consegue interditar a participação nas eleições, que se realizam no seu próprio país, aos refugiados sírios na Europa, e decide em seu lugar que o Conselho Nacional Sírio –-não eleito–- é o seu legítimo representante. O seu ministro dos Negócios Estrangeiros (Relações Exteriores-br), Laurent Fabius, declara que o presidente democraticamente eleito, Bashar al-Assad «não merece estar sobre a Terra».

As declarações de Valéry Giscard d’Estaing

A 27 de setembro passado, o antigo Presidente Valéry Giscard d’Estaing deu uma entrevista, de uma página, ao diário «Le Parisien / Aujourd’hui en France» a propósito dos refugiados e da intervenção russa contra os terroristas na Síria. Ele declarou : «Eu interrogo-me quanto à possibilidade de criar um mandato da ONU sobre a Síria, por um período de cinco anos».

Jamais, desde a sua criação, a Onu concedeu "mandato". Esta simples palavra reenvia-nos para os horrores da colonização. Nunca, jamais, havia um líder francês evocado assim, publicamente, as ambições coloniais francesas desde a independência da Argélia, há 53 anos.

Importa aqui lembrar que Geneviève, a irmã de François Georges-Picot (o do Acordo Sykes-Picot), se casou com o senador Jacques Bardoux ---membro do «Partido Colonial»---. A sua filha, May Bardoux, desposou, por sua vez, o presidente da Sociedade Financeira Francesa e Colonial, Edmond Giscard d’Estaing, o pai do antigo presidente francês (Valéry Giscard d’Estaing- ndT).

Assim, a solução do problema sírio, segundo o sobrinho-neto do homem que negociou com os Britânicos o mandato francês sobre a Síria, é recolonizar o país.

Thierry Meyssan* - Tradução Alva - Voltaire.net

*Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación(Monte Ávila Editores, 2008).

RÚSSIA SURPREENDE EM TODA A LINHA



Martinho Júnior, Luanda 

1 – A corrente iniciativa da Rússia na Síria, está a surpreender os Estados Unidos e seus aliados-vassalos da NATO e do ANZUS, assim como os respectivos “parceiros” ao redor do mundo, demonstrando de forma inequívoca que todos eles têm agora muitas lições a receber e aprender.

Os avanços são de al ordem, que alguns analistas experientes e bem fundamentados, estão a chegar à conclusão de que acabou finalmente o período da hegemonia unipolar que se sucedeu à “Guerra Fria”, tendo-se entrado já no universo multipolar!

Os Estados Unidos não estavam à espera que a Rússia, em toda a linha, desde as iniciativas político-diplomáticas, à economia, às finanças, aos serviços de inteligência, à logística, ao poder de manobra, ao poder de fogo e ao poder geo estratégico militar, fosse capaz de ir tão longe e, em alguns aspectos, claramente tão fora de alcance!

Nos estudos comparativos do poder no espaço, poder terrestre, poder aéreo e poder naval, os Estados Unidos e a NATO estão “ofuscados” por aquilo que está a ser demonstrado na Síria, funcionando todas as disciplinas de mando ao dispor de Putin, como um relógio de superior afinação… como um Ómega!

Isso é efectivamente a um conjunto de qualidades cujo produto final, neste caso a ofensiva russa, é um processo refinado e com capacidade humana que conta com patriotas esclarecidos, inteligentes e decididos, que nada têm a ver com a panóplia de mercenários a que os Estados Unidos nos vêm habituando a observar particularmente desde a “doutrina Bush”, mercenários esses que abrangem também sectores importantes das próprias Forças Armadas norte-americanas…

O “Trident Juncture 2015”, que era uma manobra demonstrativa e de propaganda do músculo da NATO, desapareceu das atenções internacionais em amplos sectores da opinião pública, o que é sintomático de sua ridícula pretensão face às iniciativas russas que têm fulcro e projecção mais evidente na Síria.

2 – Do conjunto de iniciativas desencadeadas a partir de Putin, um dos aspectos mais surpreendentes é a demonstração feita com o uso da pequena flotilha de navios russos no Mar Cáspio, um mar fechado e interior, onde nenhum vaso de guerra ocidental circula e é a última das prioridades para os sensores de inteligência e militares dos Estados Unidos e da NATO.

A Rússia na ofensiva que preparou na Síria, fez desfilar fisicamente uma parte do seu poder naval no Mar Negro e no Mediterrâneo, aliando-se à China nesse aspecto, chamando todas as atenções sobre o Mediterrâneo Oriental, sobre os Dardanelos, sobre o Suez e sobre Tartus, com manobras e exercícios conjugados com o desenrolar dos acontecimentos, atraindo as atenções dos sensores“ocidentais” a oeste dos alvos…

De repente e quando de Tartus a Rússia alargou sua implantação integrando no núcleo duro o aeroporto de Latakia, um dos golpes mais surpreendentes sobre o Estado Islâmico na Síria é feito a partir do Mar Cáspio, precisamente a nordeste dos alvos, a partir de aparentemente pouco poderosos vasos navais que constituem o grosso do poder da pequena flotilha russa que circula naquele mar.

A surpreendente demonstração foi feita com precisão cirúrgica, dando a conhecer as iniciativas de forma oportuna e em tempo real, evidenciando a eficácia tecnológica conseguida com os mísseis que foram empregues, assim como os resultados sobre os alvos e colocando praticamente sem recursos qualquer tipo de propaganda, ou contrapropaganda, que os Estados Unidos e a NATO quisessem a propósito fazer.

O poder dissuasor demonstrado sob os pontos de vista geo estratégico e geo político, foi acompanhado pela demonstração da eficácia do poder naval russo, a partir da sua mais pequena e despercebida força-tarefa naval!

 3 – A experiência da flotilha do Mar Cáspio é resultado de desenvolvimentos anteriores na região:

- A primeira guerra na Chechénia, ocorrida entre 1994 e 1996 (derrota de Boris Yeltsin);

- A segunda guerra na Chechénia entre 1999 e 2009 (vitória de Vladimir Putin);

- Ataques no âmbito da Frente do Cáucaso (Emirato do Cáucaso), entre 2004 e 2007 (neutralizado por Vladimir Putin, podem haver tentativas para ressurgir);

- Crise entre a Geórgia (“Revolução Rosa”) e a Rússia, entre 2008 e 2010 (fortalecida a posição de Vladimir Putin, que destruiu parte das Forças Armadas da Geórgia e reconheceu a Abkásia e a Ossétia do Sul como estados independentes).

No início do século o armamento russo estava praticamente ao nível de todos os outros estados surgidos com a dissolução da União Soviética e do Pacto de Varsóvia… quinze anos depois o“salto” científico e tecnológico é por demais evidente e as Forças Armadas Russas exprimem esse“salto”, mantendo um elevado grau de patriotismo, profissionalismo e competência.

Se nos conflitos na Chechénia e na Geórgia as coisas ainda não estavam suficientemente evidentes, na Síria a Rússia está a dar provas em todos os sectores das Forças Armadas e, no que toca às Frotas navais, alcançaram-se padrões que nunca antes tiveram expressão igual.

Os pequenos navios russos, disseminados nas frotas do Báltico e Mar Negro, assim como na flotilha do Cáspio, concebidos desde os primeiros anos do século XXI, possuem um potencial tecnológico e de fogo equiparável aos “destroyers” e “fragatas” alinhadas pela NATO, podendo superá-los em suas capacidades “inter-armas” e no seu poder de manobra, deitando por terra toda a propaganda de que o poder naval russo representava a decadência ou mesmo um colapso em resultado do desaparecido poder naval soviético.

Os mais pequenos desses navios, da classe Buyan e correspondentes a corvetas, têm 62 metros de comprimento e deslocam vazios cerca de 500 toneladas… o seu potencial de fogo permite a implantação modular com emprego de armas de tiro tenso e mísseis com várias funções, possui radares de navegação e de tiro e estão equipadas para guerra electrónica.

Este tipo de navios é excelente para combinações desde a intersecção antiterrorista e a contra tráficos, riscos que o AFRICOM não se cansa em apregoar como existentes na vasta região do Golfo da Guiné… sem que os Estados Unidos possam apresentar melhores e mais baratas soluções do que estas.

Se a intervenção dos vasos de guerra no Mar Negro, foram importantes para as vantagens russas em relação à Abkásia e Ossétia do Sul (na Geórgia), impedindo qualquer manobra de reforço com injecção directa de logística a partir da base de Poti, desta feita a flotilha do Mar Cáspio provou sua notável eficiência, enquadrando-se na ofensiva da Rússia na Síria, numa experiência que a NATO não poderá mais desvalorizar!

Imagens: 
- 1 – Quadro representativo do poder naval russo;
- 2 – Manobra naval russa em torno da costa síria, impedindo qualquer ataque proveniente do Mediterrâneo;
- 3 – Ataque de mísseis a partir das pequenas corvetas russas que integram a flotilha do Cáspio;
- 4 – Corveta da classe Buyan, lançadora de mísseis (que integra a flotilha do Mar Cáspio).

A consultar:  
- OTAN lanza sus mayores ejercícios bélicos desde 2002 –
- “Trident Juncture 2015”, aspectos gerais – http://www.operacional.pt/trident-juncture-2015-aspectos-gerais/ 
- Doutrina Bush: Guerra contra o terrorismo e o “eixo do mal” – http://educacao.uol.com.br/disciplinas/geografia/doutrina-bush-guerra-contra-o-terrorismo-e-o-eixo-do-mal.htm 
- 1999 Russian bombing of Chechnya – http://en.wikipedia.org/wiki/1999_Russian_bombing_of_Chechnya 
- Russia Georgia War – http://en.wikipedia.org/wiki/2008_South_Ossetia_war        

OS ESTADOS UNIDOS E A SUA NEGAÇÃO DA AGRESSÃO GLOBAL



Os EUA levantaram ao seu redor uma fortaleza solipsista capitalismo corrupto e enlouquecido que se apoia na produção de valores fictícios

Norman Pollack – Counterpunch - Carta Maior

Seria necessária toda uma psiquiatria social para compreender o gigantesco mecanismo de defesa através do qual os EUA comodamente escondem, sobretudo de si mesmos, a deslealdade e a baixeza com que atuam no cenário mundial.

A amnésia conveniente de sua beligerância e de suas irregularidades alcançou seu apogeu na administração Obama, que se mostrou ainda pior do que Clinton, se é que isso é possível, ambos arquitetos de um Império Americano do Capitalismo Monopolista. Uma questão: nos é contado que um iminente declínio financeiro no mundo seria exclusivamente culpa da China e da sua incapacidade de manter as mesmas taxas de crescimento em uma economia globalizada. O fardo de carregar a prosperidade mundial recai apenas sobre os ombros da China. Não faz sentido.

Os EUA, reforçados por suas tropas de choque, o Banco Mundial, o FMI e a OMC, levantaram ao seu redor uma fortaleza solipsista de justeza política que, no entanto, esconde o crescimento desenfreado de um capitalismo corrupto e enlouquecido e se engrena na produção de valores fictícios ao invés de, como se presume, produzir para o mercado. Até para padrões marxistas o capitalismo americano declinou. As consequências esperadas de alienação e maximização dos lucros, ruins o suficiente se avaliadas por uma ótica humana de progresso social, degringolaram em uma versão infernal de guerra financeira que cumpre a tarefa de manutenção da supremacia global unilateral. Tudo isso na tentativa de se salvar de uma depressão catastrófica que afeta, antes de qualquer um, os próprios EUA.

Esse auto-revestimento em um excepcionalismo mítico se assemelha a distúrbios mentais, na medida em que só pode se sustentar sobre um estado autoritário de deslocamento do ego. No seu lugar, projeta inimigos dos quais deve se resguardar, inimigos que perpetuam o mal e toda sorte de inadequações. É exatamente onde nos encontramos: a China e (em uma menor extensão atualmente) a Rússia requerem a postura beligerante dos EUA. Intervenções, atividades secretas, mudanças de regime, tudo e qualquer coisa que a mente do tirano consegue imaginar. Tudo que possa blindar o auto-reconhecimento das guerras criminosas que engendra internacionalmente e da degeneração de sua democracia interna.

Aparentemente pequenas coisas importam, pois revelam os ingredientes dessa receita criminosa. E o ingrediente nesse caso é a Parceria Transpacífico (PTP), a cereja no bolo do Obama e sua forma de definir o modelo de globalização americano, uma trama insidiosa para assegurar a penetração do mercado americano, de uma maneira mais sutil do que o antigo grande porrete. Vemos a imperialismo do livre-mercado de Gallagher e Robinson em sua avançada forma moderna. De forma despercebida (já que os termos ainda não chegaram a público e as deliberações foram tomadas a toque de caixa como só se espera dos regimes mais antidemocráticos), nós assistimos a Câmara de Comércio dos EUA pressionando para eliminar as leis anti-tabaco entre os países signatários. Ou ainda John Castellani, presidente da Pharmaceutical Research and Manufacturers of America, fazendo lobby para garantir a extensão das leis de patente, em detrimento da saúde coletiva. A PTP representa tão-somente os interesses do capital - ou também o direito norteamericano de impor seus produtos, à custa de doenças pulmonares e da restrição de genéricos para a população global.

A coisa piora quanto as regulações domésticas de estabilização da moeda ou qualquer arranjo unilateral que possa beneficiar os EUA. Nós ainda nem começamos a calcular as negociatas que envolvem os objetivos geopolíticos (leia-se: anti-China) e redefinem a estrutura econômica mundial para prevenir o declínio norteamericano. O capitalismo dos EUA é multifacetado: avança com seus objetivos financeiro-comerciais e simultaneamente militariza um cerco sobre a China no cenário global. O confronto bélico substitui o crescimento econômico. São faces inseparáveis da mesma lógica de expansão, força vital do capitalismo norte-americano, dada a sua confecção de subconsumo e degradação de trabalho em seus estágios formativos de desenvolvimento industrial, que fosse de outra forma teria resultado em recessão endêmica. E esse cenário sempre tem sido acompanhado pela ameaça ou utilização de recursos militares. Para a América, a rivalidade comercial tem sido tanto causa como consequência da guerra, condição enraizada no próprio capitalismo.

Nós jogamos bem o jogo do imperialismo porque reconhecemos bastante cedo que apenas o colonialismo não valia a pena e, fomos mais longe, porque valorizamos o unilateralismo na política e na economia internacional. E cá estamos: o gigantismo nos negócios está no final de suas forças e busca bodes expiatórios para justificar seu desempenho problemático na contemporaneidade, do ponto de vista não só de crescimento, de distribuição de riqueza, de provimento de seguridade social e de melhoria em infra-estrutura , porém também, ainda mais importante, em termos de direitos humanos no país e no exterior. Simbolicamente, o recorde de assassinatos com drones de Obama dialoga com a falência moral do capitalismo militar, uma prática amplamente suprimida na psique americana. E se uma nação pode se safar impunemente quando faz a morte reinar nos céus (e bombardeia uma zona hospitalar claramente demarcada), o seu comportamento no cenário maior (assassinatos com drone são apenas uma proverbial ponta de iceberg) não deverá nos surpreender.

A Cortina de Ferro da Guerra Fria deu lugar a uma nova e mais permeável Nova Guerra Fria. Em relação à China, principalmente, mas também à Rússia, já reduzida a um status de segunda classe. (Não é assim, é claro, exceto na mentalidade arrogante de líderes políticos e militares norte-americanos). Ironicamente, porém, as características psicanalíticos do Velha Guerra Fria foram agora dirigidas para dentro. Talvez a enormidade dos crimes de guerra promova uma íntima negação que apaga todos os rastros de conduta ilícita, como quando falamos de danos colaterais (um eufemismo para explicar ações deliberadas à distância que levam ao assassinato de pessoas inocentes - por exemplo, alvejando festas de casamento, entre outros). Seja no Iraque ou no Afeganistão - a presença militar global dos Estados Unidos pode ser encontrada ad-infinitum - ou na contenção a longo prazo da Rússia, que se traduz em uma perigosa política de cerco cujas tendências antidemocráticas e pró-guerra na sociedade americana estão tomando seu pedágio psicológico: mais xenofobia, mais hostilidade reprimida, mais etnocentrismo, delírios de grandeza, todos se refestelando à beira de uma enorme explosão.

E agora a China. Nela se focalizam todos os descontentamentos, como um alvo imputado a receber agressões que, como um espelho, refletem os próprios sentimentos dos EUA, suas necessidades e concepção do futuro. A Parceria Transpacífico sem a China é um indicativo da agressão, primeiro através de comércio e, em seguida, como com a UE e a OTAN, a sua conversão para um sistema de aliança militar, sendo os EUA, como em outros casos, o chefe do arranjo. Vale citar o artigo do New York Times (por Neil Gough) intitulado "China e suas Mensagens Financeiras Divergentes reforçam o Mal-Estar Global” (20 de outubro), que revela um novo sentido ao que a PTP acarreta. Como seu título indica, a China seria a culpada pelas preocupações financeiras globais. E a principal razão, lendo nas entrelinhas, não seria uma desaceleração da taxa de crescimento, mas um fracasso para proceder rápida e completamente com as privatizações.

Gough escreve que o "problemático mercado de ações da China representa um revés significativo para suas longas décadas de esforços no sentido de construir um sistema financeiro moderno", Circunlóquios explicitam, ao longo do artigo, que o sistema financeiro não deve incluir outra coisa senão privatizaçôes. Suas queixas sobre a desvalorização da moeda (que a PTP pretende evitar, embora de forma não declarada) são menos importantes do que a agenda de privatizações: "Um pacote de reformas para expansão de companhias estatais quebrou as expectativas de que a China se posicionasse a fim de privatizar essas empresas”. Em vez de reduzir suas participações, o Partido Comunista afirmou que aumentaria seu controle sobre essas empresas. Existe um equivalente econômico à frase "Melhor morto do que o vermelho", pro que parece ser o pensamento prevalente entre os americanos, talvez o bastante, quem sabe, para ir pra guerra. Essas empresas não devem ser arrancadas das garras do Partido Comunista?

Pobre China; para Gough, ela está praticamente caindo aos pedaços, resultante do seu fracasso em adotar o capitalismo em toda sua extensão. (Por sinal, o capitalismo não está satisfeito a menos que seja completamente totalizado, através de elementos mistos, como de fato já existe na China, o que é inaceitável para os EUA e sua classe de investidores).

Assim, ele continua: "Para muitos políticos e investidores globais, a série de surpresas da China [isto é, favorecer e/ou proteger empresas estatais] é conduzida pela necessidade de colocar a economia de volta aos trilhos". Uma taxa de crescimento de 6,9% no terceiro trimestre, conforme relatado em 19 de outubro, que ainda inveja países ocidentais. Ele prossegue: "Enquanto o presidente Xi Jinping diz estar o país comprometido com a reforma financeira, as medidas passam a mensagem de que a China está recuando nesses esforços. É uma paisagem nova que dificulta a navegação para o restante do mundo".

A título de ilustração, Gough cita Fraser Howie, banqueiro de longa data na Ásia e co-autor do livro "Capitalismo Vermelho: A Fundação Financeira Frágil da extraordinária ascensão Chinesa", que coloca a questão de forma sucinta: "As pessoas dizem que a reforma está chegando, mas estão abrindo mão das reformas. Fere o propósito; ou você aceita o mercado ou não”. (Grifo meu) Assim, entramos no mundo codificado da semântica FMI-Banco Mundial, em que os mercados se abraçando podem ter apenas uma referência capitalista, isto é, baseando-se nas multinacionais americanas e em um sistema de comércio semelhante ao americano. Além disso, a China passa dos limites. Seus tecnocratas e agências concorrentes buscam um "resultado coletivo" que torna "difícil de discernir" sobre "exatamente o que está acontecendo na China". As autoridades estão pensando para trás, bem como semeando confusão entre os investidores. "Do lado de fora", observa Gough, "funcionários parecem estar mudando o curso de planos de longa data que são amplamente considerados críticos para a saúde da economia".

Capitalismo sem dúvida, mas um capitalismo sem compromisso com a perspectiva dos EUA. E a admissão da China à PTP teria que esperar até o inferno congelar. O mercado de ações da China caiu com a assistência planejada do seu ministro das Finanças para start-ups corporativos (com o que já voltou atrás), provocando essa reação de Matthew Goodman, especialista em comércio asiático, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais: "O resgate do mercado reanimou dúvidas sobre o compromisso da liderança com liberalização econômica e se esse é mesmo o que a administração entende por reforma. É bem claro que as coisas não estão indo de acordo com o plano". Ou talvez estejam. Talvez a China esteja repensando a totalização capitalista. Andrew Batson, de GaveKal Dragonomics, uma empresa de consultoria financeira em Beijing, parece pensar que Xi Jinping está tomando maior controle da economia, em detrimento de uma filosofia capitalista fincada no mercado: "O foco na centralização de autoridade tem sido um grande tema do Xi e também este ambiente mais politizado e nacionalista que ele inaugurou teve efeitos muito claros sobre o progresso da reforma econômica. Isso não é necessariamente negativo. Mas certamente não é a agenda de reformas pró-mercado que algumas pessoas estavam esperando.

Certamente não é a reforma que Barack Obama esperava. Os EUA podem apenas admitir um modelo de reforma financeira. Mas para aqueles (e aqui me incluo) que valorizam a economia socialista e uma sociedade pelo seu potencial de justiça redistributiva, por sua perspectiva moral do humanismo, por seu enfrentamento com a alienação do capitalismo mercantil e por conceder ao capital um papel secundário na organização da economia política, da cultura e da alocação de recursos, ou seja, sendo sua democratização critério para manutenção em funcionamento. Para aqueles que assim concebem o mundo, é crucial se livrar de ilusões a respeito China.

Por isso, até agora a China ofereceu mais ao capitalismo e ao seu quadro institucional do que eu gostaria de ver, a fim de vislumbrar o socialismo enquanto padrão mundial vital e viável de desenvolvimento. A China, como a Rússia, pode muito bem estar em um ponto de inflexão (no caso da Rússia, talvez no limite). Não porque uma economia mista deva ser evitada, mas porque a superposição de riqueza e poder concentrado em uma ordem política hierárquica e unificada, como eu concebo o capitalismo, renuncia as perspectivas progressistas do futuro global.

A China, sob Xi, parece viver o processo de desmantelamento do socialismo, uma tendência que é difícil de reverter uma vez iniciada. A postura de confrontação dos EUA, realizada para além da PTP e do avanço militar sobre o Pacífico, poderia talvez obrigar o retorno da China ao socialismo, à luz da ordem mundial hostil que a aguarda, mas simplesmente não há garantias de que o capitalismo seria preso na China. Gough relata que o primeiro-ministro Li Keqiang "reuniu-se com os líderes de alguns dos maiores bancos da China na sexta-feira [16 de outubro] e emitiu uma promessa ampla de apoio a empresas com problemas financeiros". O primeiro-ministro afirma que a China “não vai cortar ou retirar empréstimos das empresas com dificuldades que tenham boas perspectivas de mercado". E ele fornecerá "o apoio necessário para empresas passando por falência ou reagrupamento”. Ainda assim, tendo em mente a equação americana de reforma e privatização, há alguma perspectiva de reversão, como testemunha o Comitê Central do Partido Comunista que sem rodeios “pretende dirigir a flexibilização do aperto do partido sobre as empresas estatais." Esta liderança do partido "é vital para garantir a direção socialista do desenvolvimento".

Segue meu comentário do New York Times sobre o artigo do Gough:

"Reforma financeira" = privatização. Nada menos irá satisfazer o Ocidente e os investidores em geral. O crescimento de 6,9%, dado restante do desempenho global, deve ser ridicularizado? Nada no artigo indica estar a dívida corporativa das economias desenvolvidas no coração da atual crise financeira. A China pode lidar com seus problemas de dívida entre Estado e empresas estatais. Ela não é causa da iminente recessão, mas a China faz um bode expiatório conveniente para os EUA e outras empresas que estão muito endividados e procedem com operações financeiras questionáveis.

É muito cedo para proclamar o triunfo do capitalismo, ou pelo menos do tipo de capitalismo baseada na ganância, que se comporta como um canhão solto. O The Times enfatiza caos e confusão na China, mas sem o setor estatal se veria um dano muito maior para a economia mundial.

Tradução por Allan Brum - Créditos da foto: Chad J. McNeeley

ASSIM FUNCIONAM OS TRIBUNAIS DE EXCEÇÃO DO CAPITAL



Reportagem investiga ponto cego da globalização: os tribunais paralelos em que corporações processam Estados, quando estes ousam ampliar direitos e questionar lógica do lucro máximo

Claire Provost e Matt Kennard  - Outras Palavras - Tradução: Inês Castilho - Imagem: Rubem Grilo

Cinquenta anos atrás, um sistema legal internacional foi criado para proteger os direitos de investidores estrangeiros. Hoje, conforme companhias ganham bilhões de dólares em danos, os iniciados dizem que isso tornou-se perigosamente fora de controle.

O escritório de Luis Parada fica a apenas quatro quarteirões da Casa Branca, no coração da Rua K, onde está instalada a longa fila de escritórios de lobistas de Washington – um trecho de edifícios de aço e vidro certa vez apelidado de “caminho para os ricos” (road to riches), quando o tráfico de influência começou a crescer nos Estados Unidos. Parada, um homem de El Salvador com 55 anos e fala mansa, é um entre o punhado de advogados globais que se especializou em defender Estados soberanos contra ações judiciais apresentadas por corporações multinacionais. Ele é advogado de defesa num campo obscuro mas cada vez mais poderoso do direito internacional, por meio do qual investidores estrangeiros podem processar governos em bilhões de dólares, numa rede de tribunais.

Quinze anos atrás, o serviço de Parada era um nicho desimportante até mesmo dentro da advocacia. Mas desde 2000, centenas de investidores estrangeiros processaram mais de metade dos países do mundo, reclamando danos supostamente causados por um amplo leque de ações governamentais, que eles dizem ter ameaçado seus lucros. Em 2006, o Equador cancelou um contrato de exploração de petróleo com a Occidental Petroleum, sediada em Houston (Texas, EUA); em 2012, depois que a Occidental entrou com uma ação diante de um tribunal internacional de investimentos, o Equador recebeu ordem de pagar o valor recorde de US $ 1,8 bilhão — mais ou menos igual ao orçamento de saúde do país por um ano. (Quito apresentou um pedido para que a decisão seja anulada.)

O primeiro caso de Parada foi defender a Argentina no final dos anos 1990 contra o conglomerado francês Vivendi, que processou a província argentina de Tucumán depois que ela a tomou iniciativa de limitar o preço que cobrava de pessoas para os serviços de água e esgoto. A certa altura, a Argentina perdeu e foi condenada a pagar à empresa mais de US$ 100 milhões. Agora, em seu maior caso desde então, Parada faz parte da equipe que defende El Salvador de um processo de milhões de dólares apresentado por uma empresa de mineração multinacional após o pequeno país da América Central recusar-se a permitir que ele escavasse ouro.

O processo foi aberto em 2009 por uma empresa canadense, Pacific Rim — mais tarde comprada por uma empresa de mineração australiana, OceanaGold — que disse ter sido encorajada pelo governo de El Salvador a gastar “dezenas de milhões de dólares para iniciar atividades de exploração mineral”. Mas a empresa alegou que, quando foram descobertos depósitos valiosos de ouro e prata, o governo, por razões políticas, reteve as licenças necessárias para começar a escavação. A indenização reivindicada pela companhia, que em certo ponto ultrapassou 300 milhões de dólares, foi depois reduzida para 284 milhões — ainda assim mais que o montante da ajuda externa que El Salvador recebeu no ano passado. El Salvador argumentou que a empresa não só carecia de licenças ambientais, como também não conseguiu provar que tinha obtido os direitos para escavação na maioria das terras abrangidas pelo seu pedido: muitos agricultores da região norte de Cabañas, onde a empresa queria cavar, haviam se recusado a vender sua terra.

Todo ano, no dia 15 de setembro, milhares de salvadorenhos celebram a data em que a América Central conquistou a independência da Espanha. Estouram-se fogos de artifício e bandas desfilam pelas vilas em todo o país. Mas, ano passado, na cidade de San Isidro, em Cabañas, as festividades tiveram um tom marcadamente diferente. Centenas de pessoas reuniram-se para protestar contra a mina. Minas de ouro costumam usar cianureto para separar o ouro do minério, e uma preocupação generalizada sobre a contaminação da água, já grave em El Salvador, ajudou a alimentar um forte movimento, que propõe manter os minerais do país no solo. Na praça central, foram penduradas bandeiras coloridas convidando a OceanaGold a desistir do caso contra o país e deixar a área. Muitos carregavam o slogan “Não à Mineração, Sim à vida”.

No mesmo dia, em Washington DC, Parada reuniu suas notas e foi para um conjunto de salas de reunião no Prédio J do Banco Mundial, em frente à sua sede principal, na Pennsylvania Avenue. Este é o Centro Internacional para a Resolução de Disputas sobre Investimentos (ICSID, na sigla em inglês) – a principal instituição para lidar com casos de empresas contra Estados soberanos. (O ICSID não é o único local para tais casos, há fóruns semelhantes em Londres, Paris, Hong Kong e Haia, entre outros.) O dia da audiência não foi uma coincidência, disse Parada. O caso foi visto, em El Salvador, como um teste sobre a soberania do país no século 21, e o advogado sugeriu que deveria ser ouvido no Dia da Independência. “A questão fundamental neste caso”, disse ele, “é saber se um investidor estrangeiro pode forçar um governo a mudar suas leis para agradar o investidor, ao invés do investidor cumprir as leis existentes no país.”

A maioria dos tratados internacionais sobre investimento e acordos de livre comércio garante a investidores estrangeiros o direito a ativar esse sistema, conhecido como Solução de Controvérsias entre Investidor e Estado (Investor-State Dispute Settlemente, ou ISDS, em inglês), se querem contestar decisões que afetam seus investimentos. Na Europa, o sistema tornou-se um ponto de discórdia nas negociações sobre o controverso Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP, na sigla em inglês), proposto entre a União Europeia e os EUA. Tanto a França como a Alemanha disseram que querem ter acesso à resolução de litígios entre investidores e Estados, ítem removido do tratado TTIP atualmente em discussão.

Os investidores têm usado esse sistema não apenas para entrar com ações judiciais por indenizações, diante de alegada expropriação de terra e fábricas, mas também com relação a um amplo leque de medidas governamentais, inclusive regulações ambiental e social, que ele dizem infringir seus direitos. Multinacionais entraram com ação para recuperar dinheiro que já tinham investido, mas também por alegados lucros perdidos e pela “expectativa de lucros futuros”. O número de ações contra países no ICSID está agora em torno de 500 – e esse número está crescendo à média de um caso por semana. As quantias concedidas em danos são tão grandes que os fundos de investimento têm tomado conhecimento: reivindicações das corporações contra os Estados são agora vistas como ativos para investimentos ou para servir como garantia para garantir empréstimos multimilionários. Cada vez mais, as empresas estão usando a ameaça de uma ação judicial no ICSID para exercer pressão sobre os governos.

“Não tinha absolutamente ideia de que isso aconteceria”, disse Parada. Sentado numa sala de reuniões com paredes de vidro em seu escritório de advocacia Foley Hoag, ele fez uma pausa, procurando a palavra certa para descrever o que aconteceu na sua área. “Desonesto”, decidiu, finalmente. “Acho que o sistema de arbitragem investidor-Estado foi criado com boas intenções, mas na prática tornou-se completamente desonesto.”
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A calma cidade de Moorburg, na Alemanha, encontra-se logo do outro lado do rio, a partir de Hamburgo. Passando a igreja do século XVI e prados cobertos de flores silvestres, duas chaminés enormes vomitam um fluxo constante de fumaça cinza e espessa no céu. Trata-se da Kraftwerk Moorburg, uma nova usina de energia movida a carvão – o controverso vizinho de porta da aldeia. Em 2009, ela foi objeto de uma ação investidor-Estado no valor de 1,4 bilhão de euros pela Vattenfall, a gigante energética sueca, contra a República Federal da Alemanha. É um exemplo original de como esse poderoso sistema legal internacional, pensado para proteger investidores estrangeiros em países em desenvolvimento, está agora sendo usado também para desafiar ações de governos europeus.

Desde os anos 1980, investidores alemães processaram dezenas de países, inclusive Gana, Ucrânia e Filipinas, na corte do Banco Mundial em Washington. Mas, com o caso Vattenfall, a Alemanha viu-se no banco dos réus pela primeira vez. A ironia não passou despercebida àqueles que consideravam a Alemanha a avó da arbitragem investidor-Estado: foi um grupo de empresários alemães, no final dos anos 1950, quem primeiro concebeu uma maneira de proteger os seus investimentos no exterior, à medida em que uma série de países em desenvolvimento conquistava a independência das potências coloniais europeias. Liderados pelo presidente do Deutsche Bank, Hermann Abs, chamaram a sua proposta de uma “carta magna internacional” para os investidores privados.

Nos anos 1960, a ideia foi assumida pelo Banco Mundial, para o qual esse sistema poderia ajudar os países mais pobres do mundo a atrair capital estrangeiro. “Estou convencido”, disse à época o presidente do Banco Mundial, George Woods, “de que aqueles …. que adotarem como política nacional um [ambiente] amigável para o investimento internacional – e isso significa, para não mudar nenhuma palavra, dar aos investidores estrangeiros uma oportunidade justa de obter lucros atraentes – vão atingir seus objetivos de desenvolvimento mais rapidamente do que aqueles que não o fizerem”.

No encontro anual do Banco Mundial em Tóquio, em 1964, aprovou-se uma resolução para montar um mecanismo para lidar com casos de investidores contra o Estado. A primeira linha do preâmbulo da Convenção do ICSID define seu objetivo como de “cooperação internacional para desenvolvimento econômico”. Havia oposição acirrada a esse sistema desde o começo, com um bloco de países em desenvolvimento alertando que poderia sabotar sua soberania. Um grupo de 21 países – quase todas as nações latino-americanas, mais Iraque e Filipinas – votou contra a proposta em Tóquio. Mas, a despeito disso, o Banco Mundial seguiu adiante. Andreas Lowenfeld, um acadêmico de direito norte-americano que esteve envolvido em algumas dessas primeiras discussões, afirmou mais tarde: “Acredito que essa foi a primeira vez que uma grande resolução do Banco Mundial foi forçada, apesar de tanta oposição.”

Desenvolvimento global continua a ser a meta afirmada pelo ICSID. “A ideia”, disse a atual secretária-geral da instituição, Meg Kinnear, “é que, quando os investidores sentem que há um mecanismo justo e imparcial, eles nunca entram em disputa – então, terão muito mais confiança, o que ajudará a promover investimento … e quando você investe numa país obviamente leva emprego, renda, tecnologia e assim por diante.”

Mas agora os governos estão descobrindo, muito tarde, o verdadeiro preço dessa confiança. A instalação da Kraftwerk Moorburg foi polêmica muito antes de o caso ser arquivado. Durante anos, os moradores locais e os grupos ambientalistas se opuseram à sua construção, em meio à crescente preocupação com as mudanças climáticas e o impacto que o projeto teria sobre o rio Elba. Em 2008, a Vattenfall recebeu garantia de uso de água para seu projeto de Moorburg. Mas, em resposta à pressão local, as autoridades impuseram condições ambientais estritas para limitar o uso da água e seu impacto sobre os peixes.

A Vattenfall processou Hamburgo na corte local. Mas, como investor estrangeiro, ela tinha também direito a entrar com o caso no ICSID. Essas medidas ambientais, ela disse, eram tão estritas que constituíam uma violação dos direitos garantidos pelo Tratado de Escritura de Energia, um acordo multilateral de investimento assinado por mais de 50 países, incluindo a Suécia e a Alemanha. A empresa alegava que as condições ambientais firmadas na permissão eram tão severas que tornaram a usina anti-econômica e constituíram atos de expropriação indireta.

“Foi uma surpresa completa para nós”, disse rindo o líder do Partido Verde local, Jens Kerstan, numa reunião em seu ensolarado escritório em Hamburgo no ano passado. “Tanto quanto eu saiba, havia alguns [tratados] para proteger empresas alemãs no mundo em desenvolvimento ou em ditaduras — mas que uma companhia europeia possa processar a Alemanha, isso foi uma total surpresa para mim.”

O caso Vattenfall versus Alemanha acabou num acordo em 2011, depois que a empresa venceu o caso num tribunal local e recebeu uma nova permissão de uso de água para suas instalações em Moorburg. Foram rebaixados significativamente os padrões ambientais antes impostos, de acordo com especialistas legais, permitindo o uso de mais água do rio e enfraquecendo medidas para proteger os peixes. A Comissão Europeia entrou no caso, levando a Alemanha à Corte de Justiça da UE sob a alegação de que a usina de carvão Moorburg violou as leis ambientais da UE ao não fazer mais exigências para reduzir o risco e proteger as espécies animais, inclusive salmão, que passam perto da usina ao migrar do Mar do Norte.

Um ano depois que o caso Moorburg foi encerrado, a Vattenfall entrou com outra queixa contra a Alemanha, desta vez sobre a decisão do governo federal de eliminar progressivamente o uso da energia nuclear. Este segundo processo – do qual há muito pouca informação disponível de domínio público, a despeito de relatos de que a companhia está tentando tirar 4,7 bilhões de euros dos contribuintes alemães – ainda está correndo. Cerca de um terço de todos os casos encerrados no ICSID são considerados como “acordos”, o que – como mostra a disputa do Moorburg – pode ser muito lucrativo para investidores, embora seus termos sejam raramente revelados.

Há agora milhares de acordos de investimento internacional e leis de livre comércio, assinados pelos Estados, que dão a companhias estrangeiras acesso ao sistema de disputas investidor-Estado, no caso de decidirem desafiar decisões governamentais. As disputas em geral são resolvidas por painéis de três árbitros. Cada lado seleciona um, e o terceiro é definido em acordo entre as partes. As decisões são tomadas por maioria de votos, e são soberanas e irrecorríveis. Não há processo de apelação – apenas uma possibilidade de anulação que pode ser usada em termos muito limitados. Se os estados não pagam após a decisão, os seus ativos ficam sujeitos a apreensão em quase todos os países do mundo (a empresa pode entrar nos tribunais locais com uma ordem de execução). Embora um tribunal não possa forçar um país a mudar suas leis, ou dar autorização a uma empresa, o risco de danos maciços pode, em alguns casos, ser suficiente para persuadir um governo a reconsiderar suas ações. A possibilidade de processos de arbitragem pode ser usada para encorajar os Estados a entrar em negociações para acordos relevantes.

Na Guatemala, documentos internos do governo obtidos por meio da Lei de Liberdade de Informação do país mostram como o risco de um desses casos pesou significativamente numa decisão estatal de não desafiar uma controversa mina de ouro, a despeito de protestos de seus cidadãos e uma recomendação de Comissão Interamericana de Direitos Humanos para que ela fosse fechada. Tal ação, os documentos alertavam, poderia provocar a companhia, propriedade da gigante mineradora canadense Goldcorp, a acionar o ICSID ou invocar cláusulas do Acordo de Livre Comércio Centro-Americano (Cafta) a ganhar “acesso à arbitragem internacional e subsequente reivindicação de danos contra o Estado”. A mina teve permissão de continuar aberta.

À medida em que as reivindicações feitas pelas empresas crescem, parece cada vez mais provável que os enormes riscos financeiros associados com a arbitragem investidor-Estado irão efetivamente garantir a investidores estrangeiros um veto sobre as decisões governamentais.
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Mesmo quando as empresas fracassam, em suas ações contra Estados, há outras vantagens a ser buscadas. Em 2004, passou a valer, na África do Sul pós-apartheid, a nova Lei de Desenvolvimento de Recursos Minerais e de Petróleo (MPRDA, na sigla em inglês). Junto com uma nova carta de mineração, a lei procurou corrigir as desigualdades históricas no setor de mineração, em parte ao obrigar as empresas a fazer parceira com cidadãos que sofreram sob o regime do apartheid. O novo sistema rescindiu todos os direitos anteriormente detidos pela mineração e obrigou as empresas a solicitar uma nova licença, para continuar suas operações. Também instituiu uma participação obrigatória para negros sul-africanos, de 26%, nas ações de empresas de mineração do país. Dois anos depois, um grupo de investidores italianos, que juntos controlam a maioria da indústria sul-africana de granito, entrou com uma queixa no marco de disputas investidor-Estado contra a África do Sul. O novo regime de mineração do país, argumentaram, havia expropriado ilegalmente seus investimentos e os tratou injustamente. Demandavam uma indenização de 350 milhões de dólares.

O caso foi apresentado por membros das famílias Foresti e Conti, proeminentes industriais da Toscana, e pela Finstone, uma holding sediada em Luxemburgo. Eles citaram dois tratados bilaterais de investimento, ambos assinados no fim dos anos 1990, durante a presidência de Nelson Mandela. Jason Brickhill, advogado do Centro de Recursos Jurídicos com sede em Johannesburgo, disse que o governo pós-apartheid parecia ver esses acordos “mais como atos de boa vontade diplomática do que compromissos jurídicos sérios, com consequências econômicas de longo alcance potencialmente graves”.

Durante aquele tempo, funcionários eram convidados para reuniões na Europa, disse ele, “e havia todo tipo de discussão sobre a direção comercial e econômica [da África do Sul]. Parte disso devia-se à expectativa de que se estava celebrando um tratado de investimento – mas os sul-africanos não tinham entendimento real do que estavam convertendo em lei”. Peter Draper, ex-funcionário do Departamento de Comércio e Indústria Sul-Africano, apresenta os fatos mais duramente: “Estávamos essencialmente entregando os pontos, sem fazer qualquer pergunta, ou proteger o espaço político crucial.”

O caso da empresa contra a África do Sul arrastou-se por quatro anos, antes de terminar abruptamente quando o grupo italiano desistiu de suas reivindicações e o tribunal ordenou que contribuíssem com 400 mil euros para as custas da África do Sul. Na época, um comunicado de imprensa do governo celebrou o ocorrido como “final bem sucedido” – apesar de que a África do Sul ainda teve 5 milhões de euros de taxas jurídicas não reembolsadas. Mas os investidores clamavam por uma vitória mais significativa: a pressão do caso, disseram, permitiu que fizessem um negócio sem precedentes com o governo da África do Sul. Isso possibilitou a suas empresas transferir apenas 5% da propriedade para sul-africanos negros – ao invés dos 26% determinados pela autoridade estatal de mineração. “Nenhuma outra empresa de mineração na África do Sul foi tratada tão generosamente desde o advento do [novo regime de mineração]”, gabou-se então Peter Leon, um dos advogados dos investidores.

O governo parece ter concordado com esse acordo, que vai contra o espírito das reparações pós-apartheid na África do Sul, para prevenir uma enchente de outras queixas contra si. “Se o mérito do caso fosse decidido contra o governo, pensaram, ‘não tem jeito, vamos nos afundar’. E penso que é por isso que aceitaram concordar com aquela resolução”, disse Jonathan Veeran, outro advogado da empresa, numa entrevista em seu escritório de Joanesburgo. Seus clientes, disse, “estavam muito felizes com o resultado”.
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Um pequeno número de países está agora tentando desembaraçar-se das amarras do sistema de litígio entre investidores e Estados. Um deles é a Bolívia, onde milhares de pessoas tomaram as ruas da terceira maior cidade do país, Cochabamba, em 2000, para protestar contra um aumento dramático nas tarifas de água por uma empresa privada de propriedade da Bechtel — uma corporação de engenharia civil dos EUA. Durante as manifestações, o governo boliviano resolveu por fim à concessão dada à companhia. Ela então entrou com uma ação de 50 milhões de dólares contra a Bolívia no ICSID. Em 2006, depois de uma campanha pelo arquivamento do caso, a empresa concordou em aceitar um pagamento simbólico de menos de um dólar.

Após esse caso, a Bolívia cancelou acordos internacionais que havia assinado com outros Estados, quando davam acesso a esses tribunais para seus investidores. Mas sair do sistema não é coisa fácil. A maioria desses acordos internacionais têm cláusulas de caducidade, sob as quais suas disposições permanecem em vigor por mais 10 ou mesmo 20 anos, mesmo que os próprios tratados sejam cancelados.

Em 2010, o presidente boliviano, Evo Morales, nacionalizou o maior fornecedor de energia do país, a Empresa Elétrica Guaracachi. A investidora em energia inglesa Rurelec, que indiretamente detinha 50,001% das ações da companhia, levou a Bolívia para a corte permanente de arbitragem em Haia, pedindo 100 milhões de dólares em compensação. Ano passado, foi determinado que a Bolívia pagasse 35 milhões de dólares à Rurelec; depois de meses de negociações, os dois lados acordaram num pagamento de pouco mais de 31 milhões de dólares, em maio de 2014. A Rurelec, que recusou-se a comentar o assunto para este artigo, celebrou o prêmio com uma série de press releases em seu site. “Minha única tristeza é que tenha demorado tanto para chegar ao acordo”, disso o CEO do fundo, em uma de suas declarações. “Tudo o que queríamos era uma negociação amigável e um aperto de mão do presidente Morales”.

Até mesmo Estados que inicialmente rejeitaram a introdução do sistema de disputa investidor-Estado na reunião do Banco Mundial em 1964 assinaram, de lá para cá, dezenas de acordos que expandem seu alcance. Com o rápido crescimento desses tratados – há hoje mais de 3 mil em vigor – desenvolveu-se uma indústria de especialistas em aconselhar as empresas sobre como explorar melhor os tratados que dão acesso ao sistema de resolução de disputas, e como estruturar seu negocio para tirar vantagem das diferentes proteções oferecidas. É um setor lucrativo: só os honorários são, em média, de 8 milhões de dólares por caso, mas já chegaram a mais de 30 milhões de dólares em algumas disputas. Os honorários de advogados começam em 3 mil dólares por dia, mais despesas. Embora não haja nada equivalente a uma ajuda legal para Estados que estão tentando se defender nesses processos, as corporações têm acesso a um crescente grupo de financiadores de terceiros, interessados em oferecer recursos para seus casos contra os Estados, geralmente em troca de uma parte de eventual ganho.

Cada vez mais, essas ações estão se tornando valiosas mesmo antes que as queixas tenham um resultado. Depois de entrar na justiça contra a Bolívia, a Rurelec levou seu caso ao mercado e garantiu um empréstimo corporativo de milhões de dólares, usando sua disputa com a Bolívia como garantia, expandindo seus negócios. Ao longo dos últimos dez anos, e particularmente desde a crise financeira global, um número crescente de fundos de investimento especializados passou a levantar dinheiro através desses casos, tratando as reclamações multimilionárias das empresas contra os Estados como uma nova “classe de ativos”.

Um dos maiores, entre estes fundos que se especializaram em apoiar as ações de corporações contra governos, a Burford Capital, tem sua sede a apenas alguns quarteirões da estação de trem East Croydon, Londres, no quinto andar de um edifício de tijolo vermelho comum. As empresas raramente informam quando seus casos estão sendo financiados por um desses investidores, mas no caso da Rurelec contra a Bolívia a Burford divulgou um press release triunfante celebrando seu envolvimento “inovador”. Tipicamente, patrocinador deste tipo concordam em dar respaldo a queixas das companhias contra Estados em troca de participação em qualquer recompensa eventual. Nesse caso, a Burford deu à Rurelec um empréstimo de 15 milhões de dólares, usando a queixa contra a Bolívia como garantia.

“A Rurelec não precisa de capital para pagar seus advogados. Ao contrário, precisa de capital para ampliar seu negócio”, disse Burford numa declaração. “Essa é uma boa demonstração de que os benefícios de financiar litígio vão bem além de simplesmente ajudar a pagar taxas legais”, acrescentou o executivo-chefe, “e em vários casos podem oferecer um método alternativo efetivo de financiamento para ajudar as empresas a alcançar suas metas estratégicas”. Foi altamente gratificante também para a Burford: ela anunciou ter obtido, com a disputa, um lucro líquido de 11 milhões de dólares.

Um porta-voz da Burford explicou depois: “a Burford não financiou a queixa de arbitragem da Rurelec, que já corria havia mais de dois anos, antes do nosso envolvimento com a companhia. Antes, nós fornecemos uma linha de crédito corporativo para permitir à Rurelec expandir suas operações na América do Sul, mas nós contamos com o pedido de arbitragem (um ativo contingente) para ajudar no pagamento do empréstimo”.

Desde o início, parte da justificativa para o sistema internacional de disputa investidor-Estado foi criar um “forum neutro” para a resolução de conflitos, com os investidores desistindo do direito de procurar apoio diplomático em seus países de origem quando apresentam casos como esse. Mas documentos obtidos em resposta a um pedido baseado em leis de acesso à informação revelam que a Rurelec também pôde confiar no governo britânico, que interveio ativamente para apoiar seu caso.

O relatório do caso, de 44 páginas, inclui dezenas de emails e briefings internos produzidos de maio de 2010 a junho de 2014. Vários destes referem-se explicitamente ao lobby britânico em favor da companhia. Um email ao embaixador britânico da Bolívia, Ross Denny, afirma: “Nosso constante lobby de alto nível, em benefício da Rurelec, ajudou a demonstrar a seriedade com que cuidamos dos interesses de nossas companhias”. Um outro registra, simplesmente: “A Rurelec necessita da nossa ajuda.”

Parece que a embaixada britânica sabia que o sistema de arbitragem deve ser imparcial. Um email, aparentemente sobre como responder a uma pergunta de uma pessoa do público, estabelece: “Se todas as coisas são iguais, nossa linha seria que o governo britânico não se envolvesse em processo judicial, como querem os tratados de investimento que assinamos.” A mensagem continua: “Se o ministério dos Negócios Estrangeiros e da Commonwealth [FCO, Foreign and Commonwealth Office] teve um diálogo permanente com a empresa sobre este tema, provavelmente seria mais adequado responder com algumas linhas genéricas sobre nós e os benefícios dos tratados de investimento.”
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El Salvador já gastou mais de 12 milhões de dólares defendendo-se contra a Pacific Rim, mas apesar de ter derrotado a companhia numa ação de 284 milhões de dólares, nunca se recuperará esse valor. Durante anos, grupos de protesto salvadorenhos apelaram ao Banco Mundial para iniciar uma revisão aberta e pública do ICSID. Até agora, tal estudo não começou. Nos últimos anos, uma série de ideias têm sido debatidas para reformar o sistema internacional de controvérsias investidor-Estado – a adoção de “o perdedor paga os custos”, por exemplo, ou mais transparência. A solução pode estar na criação de um sistema de recursos, de modo que os julgamentos controversos possam ser revistos.

No ano passado, David Morales, ouvidor de direitos humanos de El Salvador (um cargo estatal criado como parte do processo de paz depois da guerra civil do país, que durou entre 1979 a 1992) colocou um anúncio de página inteira no jornal nacional La Prensa Gráfica,convocando o governo a rever todos os tratados de investimento internacional que assinou, com vistas a renegociá-los ou cancelá-los. Luis Parada, representante de El Salvador em sua disputa com a Pacific Rim, concorda que esse seria um passo inteligente: “Eu pessoalmente não penso que, nesses tratados, os países tenha mais vantagens que riscos, ao submeterem-se a arbitragem internacional.”

Outros países já decidiram reduzir suas perdas, e tentam sair desses tratados. Pouco tempo depois de ter resolvido o processo das empresas de mineração estrangeiras contra suas novas regras pós-apartheid, a África do Sul começou a rever muitos de seus próprios acordos de investimento.

“O que era preocupante para nós era que você poderia ter uma arbitragem internacional – três indivíduos tomando uma decisão – com riscos de anular o que era um projeto legislativo na África do Sul, adotado democraticamente. De alguma forma, esse painel de arbitragem podia levantou a questão”, disse Xavier Carim, um ex-deputado que era diretor geral do departamento de Comércio e Indústria da África do Sul. “Estava muito, muito claro que esses tratados são abertos para amplas interpretações pelos paineis, ou por investidores procurando desafiar qualquer medida governamental, com a possibilidade de um pagamento significativo no final”, disse Carim, que é agora representante da África do Sul na Organização Mundial do Comércio. “O fato cru é que esses tratados dão muito poucos benefícios e só trazem riscos.”

Antes de agir para rever seus tratados, o governo sul-africano encomendou um estudo interno para ajudar a determinar se estes compromissos de fato ajudaram a aumentar os investimentos estrangeiros. “Não havia relação entre assinar tratados e receber investimentos”, explicou Carim. “Tivemos grandes investimentos dos EUA, Japão, Índia e diversos outros países com quem não temos tratados de investimentos. As companhias não investem ou deixa de investir num país porque ele tem ou não tem um tratado bilateral de investimento. Eles investem se há retorno a ser obtido.”

O Brasil nunca assinou nada desse sistema [1] – não entrou num único tratado que inclua provisões para disputas investidor-Estado – e apesar disso não tem tido problemas para atrair investimento estrangeiro.

Parada disse que é necessário “um amplo consenso de determinados Estados” para rever verdadeiramente nesse sistema. “Os Estados que criaram o sistema são os únicos que podem consertá-lo”, disse. “Não vi, até hoje, um número suficiente de países dispostos a isso… menos ainda, um amplo consenso a favor da mudança. Mas ainda espero que aconteça”.
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[1] No entanto, algumas das propostas apresentadas ao acordo de “livre” comércio entre Mercosul e União Europeia, em fase de negociação, preveem mecanismos de solução de controvérsias entre empresas e Estados semelhantes aos mencionados neste artigo. Para informações mais completas, leia texto da Rebrip — Rede Brasileira pela Integração entre os Povos. [Nota de “Outras Palavras”]

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