Pedro
Bacelar de Vasconcelos – Jornal de Notícias, opinião
Entre
a Hungria e a Polónia, inscreve-se o perigoso caminho que a construção europeia
vem trilhando ao longo da última década. Uma deriva encetada com a recusa da
ratificação da "Constituição para a Europa", no referendo francês de
maio de 2005, e que culmina com a fracassada tentativa de expulsão da Grécia da
União Monetária, em 2015. A Polónia, agora governada por forças políticas da
extrema-direita nacionalista e xenófoba, decidiu seguir o exemplo da Hungria. O
Parlamento Europeu tinha aprovado há cerca de dois anos um relatório alarmante
de Rui Tavares que denunciava as graves violações de direitos fundamentais e
restrições à democracia praticadas pelo Governo húngaro. Porém, nenhuma medida
séria foi tomada pelas instituições europeias e criou-se uma expectativa de
impunidade que não só estimulou as autoridades húngaras a persistir e a alargar
tais práticas - de que é marco simbólico a construção de uma muralha para
barrar o caminho aos refugiados! - como inspirou outros governos a adotar
idênticas condutas, tal como agora ocorre com os polacos.
Os
governantes franceses, por seu lado, parecem menos preocupados em apressar o
fim do "estado de exceção" - decretado em consequência dos atentados
terroristas de 13 de novembro, em Paris - do que na discussão das alterações
legislativas propostas para retirar a cidadania francesa, como medida punitiva,
a titulares de dupla nacionalidade. Até na fronteira entre a Suécia e a
Dinamarca, a crise dos refugiados serve para justificar a multiplicação de
limitações à liberdade de circulação entre os estados da União. O antigo
Alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados, António Guterres, declara
numa entrevista ontem concedida ao jornal "Público", que
"vivemos num Mundo caótico" e já prevê, para "depois do inverno",
a possibilidade de "colapso do regime europeu de asilo".
Com
mágoa, dou-me conta da surpreendente atualidade de numerosos trechos de uma
intervenção que fiz na Gulbenkian, no verão de 2007, numa conferência dedicada
à ratificação do Tratado de Lisboa, essa máscara fúnebre de uma Constituição
falhada... Continua por fazer quase tudo o que então ali recomendava:
"permanece no quadro das reformas políticas da União o objetivo
estratégico de melhorar as garantias dos direitos dos cidadãos europeus de forma
adequada (1) a uma dimensão territorial expansiva, (2) a um pluralismo cultural
acentuado pelos fluxos migratórios permanentes e (3) aos poderes reforçados das
instituições comuns". E concluía que só assim, "a Europa promoverá a
afirmação dos Direitos Humanos num Mundo globalizado que exige das democracias
uma resposta cabal à hegemonia da globalização económica e financeira, à ameaça
do terrorismo, às tentações da guerra preventiva e à degradação que impende
sobre valores inscritos na nossa matriz identitária de que são hoje exemplo
alarmante as concessões inadmissíveis em sede de garantias do processo penal e
recurso à tortura".
Eram
já bem patentes as consequências perversas da guerra "contra o
horror" lançada por George W. Bush, ao que se iria somar a crise
financeira internacional que rebentou nos Estados Unidos da América ainda nesse
ano. Os anos seguintes iriam encarregar-se de demonstrar "a importância
crucial da construção política europeia no processo de reestruturação da
comunidade mundial" e, sobretudo, a necessidade de assegurar que a Europa
continue a ser "uma experiência exemplar para o estímulo e desenvolvimento
dos espaços de integração supranacionais emergentes". Torna-se por isso
ainda mais premente, nos dias que correm, "reconduzir os valores da
dignidade humana ao centro do projeto político europeu, subordinar os
progressos nas políticas de defesa e segurança às garantias dos cidadãos e
reforçar a coerência entre as políticas de direitos humanos no interior da
União e nas relações entre a Europa e o Mundo".
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