sábado, 9 de janeiro de 2016

A FALÁCIA IBÉRICA DOS TECNOCRATAS CONTRA A MERITOCRACIA



Luis Alberto Ferreira* - Jornal de Angola, opinião

As circunstâncias que enluvaram o nascimento do Partido Socialista de Mário Soares ou Mário Sottomayor Cardia distinguem-se muito das que marcaram a fundação do Partido Socialista Operário Espanhol de Felipe González ou José María Maravall.

O PS nasceu, em Abril de 1973, entre almofadas cariciosas: na cidade alemã-federal de Bad Munstereifel, hospedado na Fundação Friedrich Ebert, próxima do Partido Social-Democrata e do poder político influencial de Willy Brandt, dois anos antes distinguido com a atribuição do Nobel da Paz. Os fundadores do PS eram militantes “mãos de anéis” da Acção Socialista, obrigados ao exílio pela mão de ferro expedita de Oliveira Salazar. Alguns ou talvez muitos deles, por mérito próprio ou por deliberação de Mário Soares, figurariam depois nos primeiros governos socialistas – posteriores ao 25 de Abril.

Diferentes, em mais de um aspecto, foram a criação, implantação, crescimento e afirmação em Espanha do PSOE. Para começar: em vez de 1973, que é data à mão de semear, a arriscada aventura dos socialistas espanhóis raiou em 2 de Maio do distante ano de 1879. No meio de severo secretismo, reunidos na então chamada “Casa Labra”, em Madrid, o tipógrafo Pablo Iglesias, outros trabalhadores e alguns intelectuais desenharam e criaram, naquela data, o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE). Seriam umas 25 pessoas: 16 tipógrafos, quatro médicos, um doutor em ciências médicas, dois joalheiros, um marmorista e um sapateiro. Relembro: em 1879. Logo, nem Felipe González, tão pouco José María Maravall, colocaram quaisquer “ladrillos” na edificação do partido. Isso não retira mérito a um dos referentes mais assinaláveis da biografia política de Felipe González: 13 anos e meio na presidência do governo, o mais longo mandato de um líder governamental na história moderna e de toda a democracia em Espanha. Tal como não invalida a real importância política e social do projecto de Lei Orgânica do Direito à Educação (LODE), elaborado pelo ministro José María Maravall depois das eleições gerais de 1982 ganhas pelo PSOE. 

Aqui, um ponto fulcral mais naquilo que, desde sempre, distingue o PSOE do PS português: Mário Sottomayor Cardia, ministro da Educação e Investigação, cumprindo a rigor a ideologia do seu chefe de governo, Mário Soares, em vez de uma LODE propôs o “lodo” das prioridades burocráticas. Desenhou um modelo de gestão do ensino superior e outro do ensino básico e secundário. Quer dizer, pouca república, pouco socialismo, escasso humanismo igualitário a partir da instrução primária. É de supor que o seu colega espanhol (Maravall), animado de outras convicções, ter-se-á disponibilizado para um acercamento dos postulados dos grande pedagogos dos séculos XIX e XX em Espanha: Rafael Altamira y Crevea (1866-1951), autor de obras como “A Educação do Operário” e “Problemas Urgentes do Ensino Primário”, Menéndez Morán (1840-1917), um dos criadores e reitor, em Espanha, da Instituição Livre do Ensino (ILE), Barnés Salinas (1879-1941) director do Museu Pedagógico e proponente de uma deslumbrante e arrebatadora “Carta Mínima de Educação Internacional”. Ou Rufino Blanco y Sánchez (1861-1936), que foi em Espanha membro da Junta para a Extinção do Analfabetismo e defendeu na escola primária a ideia da escola graduada – “com um mínimo esforço conseguir-se-ia um máximo rendimento”. E ainda Margarita Camps (1897-1972), pugnaz na defesa da condição feminina. Uma das primeiras mulheres espanholas que conseguiram a licenciatura e o doutoramento em Ciências Naturais.

John Maynard Keynes (1883-1946), que começou por desconfiar da aclamada eficácia dos “mercados livres” na criação de empregos, talvez tenha desconcertado, apressado ou confundido os tecnocratas que, em Espanha como em Portugal, esqueceram ou minimizaram rasgos como o da ideia da “Carta Mínima de Educação Internacional”, cujo sugeridor, Barnés Salinas, nasceu no ano da fundação do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE). O homólogo PS, em Portugal, num repente engavetou o “socialismo”– e Mário Soares, em 1976, para satisfação do seu ministro da Educação, que exigia “a retirada do cunho marxista do programa do PS”, fez de um homem da CIA travestido de embaixador norte-americano (Frank Carlucci) seu dilecto confidente para a “caça aos comunistas”. Com os cravos vermelhos a disfarçarem a fusquidão da democracia sem democratas de acção revolucionária ao leme, o PS de Soares fez, num ápice, o que o PSOE jamais admitiu fazer: coligações com a direita mais adversária da meritocracia na Europa. E, contudo, era no PS que refulgiam os clangores da República e do Socialismo. 

Havia também em Portugal, como em Espanha, um passado de apostas e sementeiras cognitivas – a herança de um tesouro de exemplaridades humanísticas. No primeiro governo de Mário Soares, o ministro de Estado era o professor Henrique de Barros (1904-2000). Flagrante aviso moral à navegação: Henrique de Barros era filho de João de Barros (1881-1960), pedagogo de assinalável estatura moral. João de Barros distinguiu-se, em particular, como animador do movimento da “Escola Nova”. Mas o que dele mais se aprecia é o exemplo da construção da sua carreira – de reflexão obrigatória ou recomendável aos tecnocratas que depois de 25 de Abril de 1974 em Portugal baniram a meritocracia e a solidariedade social das suas preocupações mais elementares. Os escritórios de advogados jamais substituirão, como norma, modelos autotéticos – republicanos e socialistas – como o da carreira do pedagogo João de Barros: alto funcionário do Ministério da Instrução Pública, desempenhou a partir de 1910, sucessivamente, as funções de chefe de repartição, director-geral do Ensino Primário, director-geral do Ensino Secundário, secretário-geral do ministério e, por último, ministro dos Negócios Estrangeiros num dos governos da Primeira República. 

O tema, numa perspectiva ibérica e europeia, oferece uma insólita margem de trabalho analítico. Retomá-lo-ei. 

(*) Luis Alberto Ferreira é o mais antigo jornalista angolano no activo

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