A
Comissão Europeia decidiu colocar pela primeira vez em movimento os
procedimentos previstos no Tratado de Lisboa contra suspeitas de alegadas
violações do Estado de Direito cometidas pelos Estados membros. O alvo
escolhido é a Polónia, na sequência de decisões recentes do governo de
extrema-direita que atingem a independência da Justiça e da Comunicação Social
através de medidas de controlo do Tribunal Constitucional e dos média públicos.
Independentemente
das razões para lançamento desde processo que, no limite, poderia conduzir à
aplicação de sanções a Varsóvia, existe um contexto intrigante que não escapa
aos bastidores de Bruxelas, onde se sabe que as relações entre a Comissão e a
Presidência do Conselho, a cargo do polaco Donald Tusk, não são as melhores.
Numerosos são os eurocratas para quem a abertura deste procedimento poderá
conduzir a uma “argumentação de troca de culpas e acusações” sobre o
comportamento padrão da União Europeia em matéria de Estado de Direito e
diretos humanos, argumentação essa que acabará por enredar e diluir o processo.
“Dá-se
enfase ao facto de esta ser a abertura do primeiro procedimento quando, na
verdade, já é tardia e acabará enovelada na burocrática teia de interesses e
contradições em que vive a União”, considera um funcionário da Comissão
familiarizado com as questões que levaram o comissário Frans Timmermans a
lançar o processo. O que o funcionário pretende dizer é que não faltaram à
Comissão desde Março de 2014 – altura em que o mecanismo foi regulamentado -
muitas razões para abrir processos contra outros Estados Membros relacionados
com atitudes susceptíveis de desrespeitar o Estado de Direito. É o caso, por
exemplo, da situação de ditadura política vigente na Hungria; das práticas de
segregação de minorias linguísticas existentes na Estónia e na Letónia –
idênticas à praticada pelo governo fascista da Ucrânia -; de numerosas medidas
austeritárias contra populações indefesas aceites por governos às ordens das
troikas, e até largamente excedidas, como aconteceu nos casos de Portugal e da
Grécia; da discriminação de comunidades étnicas na Croácia; ou ainda da
declaração do estado de excepção em França violando direitos elementares dos
cidadãos. Sem esquecer o modo autoritário como a Alemanha utiliza as estruturas
da União e a moeda única em proveito próprio.
O
que se reconhece nas instituições europeias é que antes da Polónia outros
governos deveriam ter ser alvo de procedimentos para avaliação de atitudes
passíveis de violar o Estado de Direito. Sendo certo também, como lembra o
mesmo funcionário, que as instituições europeias têm estado prioritariamente
focadas nas “violações do direito dos mercados, assim confundido com o Estado
de Direito, pelo que esta medida surge fora do contexto habitual”.
A
primeira fase do processo relativo à Polónia, aberta no dia 13, é a de
“avaliação e diálogo” entre Bruxelas e Varsóvia sobre as polémicas medidas que
governamentalizam o Tribunal Constitucional e a comunicação social na Polónia,
o que, neste caso, significa a implantação da censura. Depois seguir-se-á uma
fase de “recomendações”, no caso de Bruxelas entender que existe incumprimento.
Só depois se avaliará se haverá razões ou não para a aplicação de sanções.
O
Partido da Lei e da Justiça, entidade da extrema-direita nacionalista que
domina com maioria absoluta o panorama político polaco, reagiu com surpresa e
acrimónia à atitude de Bruxelas, por não ser este o tom habitual usado pelas
instituições europeias perante abusos de poder em Estados Membros. Segundo o
governo de Varsóvia, trata-se apenas de um processo de informação “baseado em
especulações surgidas na Europa Ocidental”. Para o ministro da Justiça polaco,
Zbigniew Ziobro, governamentalizar o Tribunal Constitucional e os meios de
comunicação social é “uma acusação injustificada e uma conclusão injusta”.
A
Polónia é a 6ª economia da União Europeia e um pivot do rearmamento da NATO e
do apoio à ditadura ucraniana num cenário geral e prioritariamente estratégico
de pressão sobre a Rússia. “Este processo contra o governo de Varsóvia é
completamente deslocado no tempo e nas realidades”, queixa-se um diplomata da
NATO em Bruxelas.
O
ambiente de polémica que envolve o procedimento, enquanto outras agressões ao
Estado de Direito passam em claro, é o prenúncio de que, mais tarde ou mais
cedo, a iniciativa dará em nada. Ao mesmo tempo que envolve a União Europeia na
teia de contradições e de agressões a princípios democráticos que tem vindo a
tolerar, o seu fracasso deixará campo ainda mais aberto para a anarquia
absoluta na Europa em matéria de respeito pelo Estado de Direito. Se o caso
polaco for o único sob a alçada de Bruxelas, o mais certo é terminar com
vantagem para Varsóvia devido a uma espécie de jurisprudência tácita: por quê a
Polónia e não os outros? Assim se criarão as condições para que o Estado de
Direito venha a ser espezinhado no que resta da União Europeia porque, como
revela o exemplo polaco, o que está a acontecer e estará para vir é ainda bem
pior ainda do que o que ficou para trás.
A
única atitude corajosa de Bruxelas, reconhecem experientes quadros das
instituições europeias, seria abrir processos contra os múltiplos casos de
violações do Estado de Direito em vigência na União, e não apenas contra a
Polónia de Kaczinsky. Ora isso não passa pela cabeça de Timmermans ou qualquer
outro membro da Comissão, a começar por Jean-Claude Juncker, porque até agora o
seu forte e o dos seus antecessores tem sido a coragem contra os mais fracos,
isto é, contra os povos e não contra os governos. A Polónia será apenas uma
frágil excepção que virá confirmar a regra: a manipulação do conceito de Estado
de Direito à medida de conveniências, interesse e circunstâncias.
*Mundo
Cão
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