sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

BRUXELAS ENREDA-SE NA TEIA QUE CRIOU




A Comissão Europeia decidiu colocar pela primeira vez em movimento os procedimentos previstos no Tratado de Lisboa contra suspeitas de alegadas violações do Estado de Direito cometidas pelos Estados membros. O alvo escolhido é a Polónia, na sequência de decisões recentes do governo de extrema-direita que atingem a independência da Justiça e da Comunicação Social através de medidas de controlo do Tribunal Constitucional e dos média públicos.

Independentemente das razões para lançamento desde processo que, no limite, poderia conduzir à aplicação de sanções a Varsóvia, existe um contexto intrigante que não escapa aos bastidores de Bruxelas, onde se sabe que as relações entre a Comissão e a Presidência do Conselho, a cargo do polaco Donald Tusk, não são as melhores. Numerosos são os eurocratas para quem a abertura deste procedimento poderá conduzir a uma “argumentação de troca de culpas e acusações” sobre o comportamento padrão da União Europeia em matéria de Estado de Direito e diretos humanos, argumentação essa que acabará por enredar e diluir o processo.

“Dá-se enfase ao facto de esta ser a abertura do primeiro procedimento quando, na verdade, já é tardia e acabará enovelada na burocrática teia de interesses e contradições em que vive a União”, considera um funcionário da Comissão familiarizado com as questões que levaram o comissário Frans Timmermans a lançar o processo. O que o funcionário pretende dizer é que não faltaram à Comissão desde Março de 2014 – altura em que o mecanismo foi regulamentado - muitas razões para abrir processos contra outros Estados Membros relacionados com atitudes susceptíveis de desrespeitar o Estado de Direito. É o caso, por exemplo, da situação de ditadura política vigente na Hungria; das práticas de segregação de minorias linguísticas existentes na Estónia e na Letónia – idênticas à praticada pelo governo fascista da Ucrânia -; de numerosas medidas austeritárias contra populações indefesas aceites por governos às ordens das troikas, e até largamente excedidas, como aconteceu nos casos de Portugal e da Grécia; da discriminação de comunidades étnicas na Croácia; ou ainda da declaração do estado de excepção em França violando direitos elementares dos cidadãos. Sem esquecer o modo autoritário como a Alemanha utiliza as estruturas da União e a moeda única em proveito próprio.

O que se reconhece nas instituições europeias é que antes da Polónia outros governos deveriam ter ser alvo de procedimentos para avaliação de atitudes passíveis de violar o Estado de Direito. Sendo certo também, como lembra o mesmo funcionário, que as instituições europeias têm estado prioritariamente focadas nas “violações do direito dos mercados, assim confundido com o Estado de Direito, pelo que esta medida surge fora do contexto habitual”.

A primeira fase do processo relativo à Polónia, aberta no dia 13, é a de “avaliação e diálogo” entre Bruxelas e Varsóvia sobre as polémicas medidas que governamentalizam o Tribunal Constitucional e a comunicação social na Polónia, o que, neste caso, significa a implantação da censura. Depois seguir-se-á uma fase de “recomendações”, no caso de Bruxelas entender que existe incumprimento. Só depois se avaliará se haverá razões ou não para a aplicação de sanções.

O Partido da Lei e da Justiça, entidade da extrema-direita nacionalista que domina com maioria absoluta o panorama político polaco, reagiu com surpresa e acrimónia à atitude de Bruxelas, por não ser este o tom habitual usado pelas instituições europeias perante abusos de poder em Estados Membros. Segundo o governo de Varsóvia, trata-se apenas de um processo de informação “baseado em especulações surgidas na Europa Ocidental”. Para o ministro da Justiça polaco, Zbigniew Ziobro, governamentalizar o Tribunal Constitucional e os meios de comunicação social é “uma acusação injustificada e uma conclusão injusta”.

A Polónia é a 6ª economia da União Europeia e um pivot do rearmamento da NATO e do apoio à ditadura ucraniana num cenário geral e prioritariamente estratégico de pressão sobre a Rússia. “Este processo contra o governo de Varsóvia é completamente deslocado no tempo e nas realidades”, queixa-se um diplomata da NATO em Bruxelas.

O ambiente de polémica que envolve o procedimento, enquanto outras agressões ao Estado de Direito passam em claro, é o prenúncio de que, mais tarde ou mais cedo, a iniciativa dará em nada. Ao mesmo tempo que envolve a União Europeia na teia de contradições e de agressões a princípios democráticos que tem vindo a tolerar, o seu fracasso deixará campo ainda mais aberto para a anarquia absoluta na Europa em matéria de respeito pelo Estado de Direito. Se o caso polaco for o único sob a alçada de Bruxelas, o mais certo é terminar com vantagem para Varsóvia devido a uma espécie de jurisprudência tácita: por quê a Polónia e não os outros? Assim se criarão as condições para que o Estado de Direito venha a ser espezinhado no que resta da União Europeia porque, como revela o exemplo polaco, o que está a acontecer e estará para vir é ainda bem pior ainda do que o que ficou para trás.

A única atitude corajosa de Bruxelas, reconhecem experientes quadros das instituições europeias, seria abrir processos contra os múltiplos casos de violações do Estado de Direito em vigência na União, e não apenas contra a Polónia de Kaczinsky. Ora isso não passa pela cabeça de Timmermans ou qualquer outro membro da Comissão, a começar por Jean-Claude Juncker, porque até agora o seu forte e o dos seus antecessores tem sido a coragem contra os mais fracos, isto é, contra os povos e não contra os governos. A Polónia será apenas uma frágil excepção que virá confirmar a regra: a manipulação do conceito de Estado de Direito à medida de conveniências, interesse e circunstâncias. 

*Mundo Cão

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