Roger
Godwin – Jornal de Angola, opinião
Conforme
se temia, apesar das palavras em contrário expressas pelo presidente Yahya
Jammeh, a Gâmbia, aos poucos, vai forçando de forma quase natural a imposição
da lei islâmica, no que ela tem de mais radical, sem sequer esperar pela
anunciada alteração da Constituição, o que já está a levantar alguns problemas
no seio da sociedade.
Depois
de ter proclamado o país como uma “República Islâmica”, o presidente Jammeh tem
sido fortemente pressionado por líderes religiosos internos e externos para
aceitar alguns dos preceitos estipulados na Sharia, a temida e discriminatória
lei que rege a aplicação prática da leitura que uma parte dos muçulmanos fazem
do Corão.
Para começo da imposição de uma vasta lista de medidas constantes dessa avaliação, a Gâmbia, sem qualquer intervenção do governo, decidiu já tornar obrigatório o uso de véu na cabeça das mulheres que trabalhem na função pública.
Trata-se de uma imposição que resulta directamente da forte pressão que os clérigos radicais estão a exercer sobre o presidente da República levando este, com alguma relutância, a não interceder pela salvaguarda da lei deixando nas mãos da religião a aplicação de uma medida não oficial mas que poucos ousarão contrariar.
A esposa do presidente Jammeh, numa excepção que certamente confirmará a regra, foi das primeiras a reagir e a desafiar esta imposição, tendo mesmo feito questão de visitar diversas instituições públicas com a cabeça descoberta, opção que já lhe valeram fortes críticas por parte de algumas facções religiosas mais radicais.
De acordo com a constituição da Gâmbia, a esposa do presidente da República pertence também ao quadro de funcionários públicos e está, por via disso, obrigada a respeitar o seu código de conduta.
Na altura da declaração da criação desta nova “República Islâmica”, o presidente Jammeh havia garantido, entre outras coisas, que não seria imposto nenhum código de conduta especialmente rigoroso, sobretudo relacionado com o modo das pessoas se vestirem.
Acontece que, como muitos na altura temiam, a força da religião mostrou-se mais forte que o poder do próprio presidente, o que já faz levantar algumas dúvidas sobre se, de facto, vai efectivamente haver uma alteração constitucional sujeita a referendo popular.
Aqueles que na altura discordaram da proclamação da Gâmbia como “República Islâmica” são os mesmos que agora receiam que os líderes religiosos do país imponham, sem qualquer possibilidade de discussão, a Sharia, e passem a ser eles, na prática, a mandar no país.
Esses receios baseiam-se no facto da Gâmbia ser um país extremamente pobre e que vive essencialmente do turismo, uma indústria que não tem qualquer tipo de conciliação possível com restrições às liberdades.
Com as suas famosas praias, a Gâmbia oferece ao visitante preços baratos, lugares tranquilos e a afabilidade das suas gentes que já estão habituadas a conviver e a viver com milhares de pessoas que mergulham nas suas águas, despidas de qualquer tipo de preconceitos.
Ora, esses milhares de pessoas, certamente que não aceitarão passar a conviver com leis que as impedem de usar fato de banho, de beber cerveja nos bares dos hotéis e nas discotecas e, muito menos, de não poderem contactar livremente com a população autóctone.
Temos, pois, um flagrante choque de interesses entre aquilo que pode ser a razão dos 90 por cento de gambianos que são muçulmanos, uns mais radicais que outros, e a força que resulta da necessidade do país não poder viver sem as divisas deixadas durante quase todo o ano pelos visitantes estrangeiros.
Um outro choque que se está a sublinhar é o que resulta do facto de, aos poucos, o poder de Yahya Jammeh estar a escapar para as mãos dos líderes religiosos podendo, a breve prazo, vir a declarar-se um inconciliável conflito de interesses com todos os perigos daí resultantes.
Aliás, o próprio presidente Jammeh, ao longo do seu tempo de permanência no poder, tem evidenciado, pelo seu comportamento, algumas hesitações em relação ao modo de conciliar a convicção religiosa de 90 por cento da população, onde ele próprio se inclui, com as necessidades práticas do país.
Em 2013, por exemplo, decidiu que o seu país deveria abandonar a Commonwealth, organização que congrega os países de língua inglesa, por considerá-la “neo-colonial”.
Porém, em Novembro do ano passado proibiu a circuncisão das mulheres, declarando que essa prática tradicional não se enquadrava no espírito e na letra do Corão.
Acontece que, nas “repúblicas islâmicas”, como a Gâmbia anunciou agora ser, a prática da circuncisão feminina é quase obrigatória e é seguida com devoção na maioria dos países muçulmanos.
A Gâmbia, por tudo isto, parece estar a preparar-se para um incontornável debate em redor da aplicação ou não dos mais rigorosos preceitos islâmicos que resultam desta recente transformação.
Para já, a discussão está aberta entre os que defendem a nova “república islâmica” com tudo o que ela encerra e os que continuam a achar que essa opção acabará por afastar os turistas e tornar o país uma presa demasiado fácil para engrossar as fileiras dos radicais.
O que se espera é que essa discussão seja serena e salvaguarde os direitos que todos têm a ser felizes na sua própria nação.
Se possível, sem a perda da sua própria dignidade.
Sem comentários:
Enviar um comentário