No
Brasil a raiva e o rancor histórico foi acrescido depois das eleições de 2014,
houve quem não aceitou a derrota
Leonardo
Boff – do Rio de Janeiro – Correio do Brasil, opinião
É
fato inegável: há muito ódio, raiva, rancor, discriminação e repulsa na
sociedade brasileira. Ela sempre existiu de alguma forma. Ou alguém acha que os
milhões de escravos humilhados e feitos “peças” e as mulheres à disposição da
volúpia sexual dos patrões e de seus filhos, não provocava surdo rancor e
profundo ódio? É o que explica os centenas e centenas de quilombos por todas as
partes no Brasil. E o ódio dos patrões que com o chibata castigavam seus
escravos desobedientes no pelourinho?
O
ódio pertence à zona do de mistério. A própria Bíblia não sabe
explica-lo e o vê já presente desde o começo, no jardim do Éden; o primeiro
crime ocorreu com Caim que por inveja, que produz ódio, matou a seu irmão Abel.
O mandamento era claro: ”Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo”(Levítico
19,18; Mateus 5,43). O ódio é inimigo dos homens e de Deus e ele semeia a
cizânia na terra (Mt 13,19).
Mas
eis que vem Jesus e reverte a lógica do ódio: ”Amai vossos inimigos e orai
pelos que vos perseguem”(Mt 5, 44). Ele mesmo sucumbiu ao ódio de seus inimigos
mas, aceitando livremente a morte, “venceu a morte pela morte” e assim
derrubou “o muro da inimizade que dividia a humanidade”(Ef 2,14-16). Prega e
vive o amor incondicional para amigos e inimigos. Inaugurou assim uma nova
etapa de nossa humanização.
Mas
esse ideal nunca se transformou em cultura nos países cristianizados. Estamos
ainda no Velho Testamento do “olho por olho, dente por dente”.
No
Brasil a raiva e o rancor histórico foi acrescido depois das eleições de 2014.
Houve quem não aceitou a derrota e deslanchou um torrente de raiva
e de ódio que contaminou não apenas o partido vencedor, mas toda a
sociedade. Inegavelmente criou-se um consenso ideológico-político de alguns
meios de comunicação que, com total desfaçatez, difundem esse sentimento. O
que leva um radialista da Rádio Atlântica FM, ligada à RBS gaúcha,
conclamar a população a “cuspir na cara do ex-Presidente Lula” senão um ódio
explícito e incontido? A verdadeira perseguição judicial que Lula está
sofrendo, tentando enquadrá-lo em algum crime, é movida não tanto pela fome e
sede de justiça, mas pela vontade de punir, de desfigurar seu carisma e
liquidar sua liderança. Grassa um maniqueísmo avassalador que amargura
toda a vida social. Bem dizia Bernard Shaw:”o ódio é a vingança dos covardes”.
Mas
tentando ir um pouco mais a fundo na questão do ódio, precisamos reconhecer que
ele se enraíza em nossa própria condição humana, um feixe de contradições.
Somos, por natureza, e não por desvio de construção, seres contraditórios,
compostos de ódios e de amores, de abraços e de rejeições. É a escolha que
fizermos que irá dar rumo à nossa vida: ou a benquerença ou a aversão.
Mesmo escolhendo o amor, o ódio nos acompanha como uma sombra sinistra.
Se não cuidamos dele, ele invade nossa consciência e produz sua obra nefasta.
Esse
realismo o encontramos na Bíblia. Mas também num pensador como Bertrand Russel
que observou com acerto: ”o coração humano tal como a civilização moderna o
modelou, está mais inclinado para o ódio do que pra a fraternidade”. Lógico, se
ela colocou como eixo estruturador a concorrência e não a colaboração e a luta
de todos contra todos em vista da acumulação privada, entende-se que predomine
a tensão, a raiva, a inveja a ponto de o lema de Wall Street ser :”greed is
good”: a cobiça é boa.
Mas
há um ponto que precisa ser referido, observado já por F. Engels quando
escreveu uma introdução ao livro de Marx sobre “A luta de classes na França”:
”Se houver alguma possibilidade de as massas trabalhadoras chegarem ao poder, a
burguesia não admitirá a democracia sendo até capaz de golpeá-la”. Ora, através
de Lula, o PT e seus aliados, vindo das massas trabalhadoras, chegaram ao
poder. Isso é inadmissível pelos “donos do poder”(R. Faoro). Estes
procuram inviabilizar o governo de cunho popular, desconsiderando o bem comum.
Aqui
valem as palavras sábias do velho do Restelo de Camões: “Ó glória de mandar, o
vã cobiça/Desta vaidade a quem chamamos fama./Ó fraudulento gosto, que se
atiça/Com uma aura popular que honra se chama” (Cântico IV, versos 94- 95). Por
detrás da busca ”da glória de mandar” e do poder, revestido de raiva e de
ódio, se esconde, atualmente, a vontade daqueles que sempre o
detiveram e que agora o perderam e fazem de tudo para recuperá-lo por todos os
meios possíveis.
Leonardo
Boff, é articulista do JB on line e escreveu:Virtudes por um outro mundo
possível(3 vol.),Vozes 2005.
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