Segundo
um dos maiores juristas do país, o PSDB conseguiu aparelhar um sistema de
controle sobre a Assembleia Legislativa, as Polícias, o Judiciário e o MP
Tatiana
Carlotti – Carta Maior
Garantindo
que não desistirá de denunciar “a impostura política que prevalece neste país
sob a forma constitucional”, o jurista Fábio Konder Comparato, uma das maiores
autoridades do mundo Jurídico do país, analisa a fragilidade da democracia
brasileira, a corrupção endêmica no país e, também, a sistemática blindagem dos
escândalos que envolvem o tucanato em São Paulo.
Em
diálogo com a reportagem Operação
Abafa: como os tucanos se mantêm no poder, o jurista avalia que o PSDB
“conseguiu aparelhar um sistema de controle, ou pelo menos de influência
dominante, sobre a Assembleia Legislativa, as Polícias e também, em grande
parte, o Judiciário e o Ministério Público”. Além de “montar igualmente um esquema
de controle do eleitorado, esquema esse, aliás, vinculado à corrupção”.
Konder
Comparato também recupera as origens e as características da corrupção
brasileira, um “mal endêmico” desde os tempos coloniais, denunciando “o costume
da privatização do dinheiro público, usado pelos oligarcas como uma espécie de
patrimônio pessoal”. Vale destacar que, atenta a esse “costume”, a Carta Maior
vem recuperando uma série de escândalos de corrupção que, na prática, não deram
em nada. Leiam também: Tucano
bom é tucano solto e A
Sociologia da Honestidade de FHC.
Nesta
entrevista, o professor Konder Comparato alerta sobre a inexistência de uma
verdadeira democracia em nosso país: “O povo jamais teve qualquer espécie de
poder político no Brasil”. Um exemplo? A própria Constituição brasileira que
determina ser da competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar
referendo e convocar plebiscito. “Somente os mandatários do povo tem poder para
autorizar as manifestações de vontade deste!”, denuncia.
Confiram
a entrevista:
A
corrupção dos órgãos oficiais do Estado de São Paulo
Como
é possível avançar no combate à corrupção, apesar do bloqueio e das manobras
sistemáticas que impedem, por exemplo, investigações e CPIs no Estado de São
Paulo?
Fábio
Konder Comparato - O PSDB acha-se no governo do Estado há mais de um quarto de
século. Durante esse tempo, conseguiu aparelhar um sistema de controle, ou pelo
menos de influência dominante, sobre a Assembleia Legislativa, as Polícias e
também, em grande parte, o Judiciário e o Ministério Público. O partido
conseguiu, além disso, montar igualmente um esquema de controle do eleitorado,
esquema esse, aliás, vinculado à corrupção.
A
eliminação dessa máquina de poder partidário somente ocorrerá quando tivermos
introduzido em nossa organização constitucional algumas medidas, como a eleição
do chefe do Ministério Público estadual pelos seus pares, e a autonomia da
Polícia Judiciária em relação à chefia do Poder Executivo.
Enquanto
tais medidas não existirem, é preciso usar dos poucos recursos disponíveis
pelos cidadãos, como a ação popular e outras ações judiciais, bem como
representações junto ao Ministério Público, ou até mesmo o Conselho Nacional de
Justiça ou o Conselho Nacional do Ministério Público, em Brasília. Como se
percebe, não é um jogo fácil.
A
corrupção no Brasil, como um mal endêmico
O
sr. vem alertando que a corrupção é um mal endêmico no Brasil. Tivemos algum
avanço?
Konder
Comparato - Denomina-se endemia uma doença infecciosa que ocorre
habitualmente e com incidência significativa numa determinada população. Pois
bem, falando simbolicamente, a corrupção dos órgãos públicos no Brasil é uma
endemia cujas primeiras manifestações irromperam já no primeiro século da
colonização. Assinale-se que, quando em 1549 aqui chegou Tomé de Souza, o
primeiro Governador-Geral do Brasil, ele trazia consigo um Ouvidor-Geral, ou
seja, chefe dos serviços de Justiça e Polícia, e um Provedor-Mor, ou seja, o
encarregado de dirigir os assuntos econômicos da colônia. Pois bem, ambos
haviam sido acusados de desviar dinheiro do Tesouro Régio, quando ainda estavam
em Portugal. Ao aqui chegar, o Ouvidor-Geral enviou um ofício enviado ao Rei de
Portugal, para declarar que o quadro geral da colônia configurava “uma pública
ladroíce e grande malícia”.
Note-se
que, à época, os administradores para cá enviados pela metrópole haviam
comprado seus cargos públicos, costume já consolidado em Portugal. Aqui
chegando, a fim de amortizar o valor da compra de seus cargos e para compensar
o sacrifício de viver nesta colônia atrasada e distante, tais administradores
procuravam de qualquer maneira ganhar dinheiro. Para tanto, associavam-se aos
senhores de engenho e grandes fazendeiros, participando de seus negócios; quando
não se tornavam, eles próprios, senhores de engenho ou proprietários de
fazendas.
A
partir de então, institucionalizou-se a associação permanente dos potentados
econômicos privados com os grandes agentes estatais, formando o grupo
oligárquico que até hoje comanda este país. Estabeleceu-se desde então o
costume da privatização do dinheiro público, usado pelos oligarcas como uma
espécie de patrimônio pessoal. Ou seja, corruptos são apenas os que se vendem
por dois tostões de mel coado. É o tema do conto de Machado de Assis, Suje-se
gordo!
Sem
dúvida, a operação Lava Jato parece ter sido o começo de uma mudança nessa
longa tradição. Mas é preciso dizer que tal operação tem sido ostensivamente
seletiva, pois deixa de lado todas as ladroíces cometidas nos governos
anteriores ao PT no poder, abusando do vício dos dois pesos e duas medidas.
Democracia
inexistente
Quais
os entraves e caminhos que ainda precisamos percorrer para que o poder,
efetivamente, “emane do povo”?
Konder
Comparato - Para resumir o assunto, o povo jamais teve qualquer espécie de
poder político no Brasil. Fala-se habitualmente em reconquista da democracia
com o término do regime de exceção empresarial-militar instalado em 1964, e o
restabelecimento das eleições. Mas nestas, a vontade popular é sistematicamente
falseada pela influência do poder econômico dos oligarcas e as práticas
ardilosas dos políticos profissionais.
Pior
ainda: na nossa política, desde os tempos coloniais temos tido uma tradição de
dissimulação do poder oligárquico por meio de belas instituições oficiais
ocultando a realidade. Nossas Constituições, por exemplo, desde a primeira de
1824, são peças puramente retóricas, incapazes de enfraquecer e, menos ainda,
de extinguir o regime oligárquico.
A
atual “Constituição Cidadã”, por exemplo, declara em seu art. 14 que a
soberania popular é exercida, além do sufrágio eleitoral, pelo plebiscito, o
referendo e a iniciativa popular legislativa. Mais adiante, porém, o art. 49,
inciso XV vem precisar que “é da competência exclusiva do Congresso Nacional
autorizar referendo e convocar plebiscito”. Ou seja, trocando em miúdos,
somente os mandatários do povo tem poder para autorizar as manifestações de
vontade deste! É, literalmente, a submissão do mandante à autoridade do
mandatário.
E
quanto à iniciativa popular, a direção da Câmara dos Deputados já fixou, desde
o início de vigência da Constituição, que os milhares de assinaturas
necessárias à apresentação de um projeto de lei de iniciativa popular devem ser
reconhecidas, uma a uma, pelos funcionários daquela Casa do Congresso Nacional.
É exatamente por isso que até hoje nenhum projeto dessa natureza foi votado e
aprovado pelo Congresso Nacional.
Revoltado
contra esse embuste jurídico oficial, tentei atuar. Em 2004, em nome do
Conselho Federal da OAB, apresentei à Comissão de Legislação Participativa da
Câmara dos Deputados um projeto de lei de regulamentação do art. 14 da
Constituição, para eliminar a interpretação de que o Congresso Nacional tem
poderes acima do povo soberano, em matéria de plebiscitos e referendos. O
projeto ainda não foi votado em plenário na Câmara, mas já um substitutivo
apresentado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania por um deputado do
PT veio reafirmar, com outras palavras, que somente o Congresso Nacional tem o
poder de autorizar o povo soberano a votar em plebiscitos e referendos.
Em
2005, apresentei a dois Senadores um anteprojeto de Proposta de Emenda Constitucional,
introduzindo em nosso país o instituto de recall; isto é, do referendo revocatório
de mandatos políticos. O povo elege e pode, portanto, destituir o representante
eleito. Obviamente, após nove anos de tramitação, a proposta foi desaprovada em
plenário.
Mas
saibam que não desistirei de denunciar a impostura política que prevalece neste
país sob a forma constitucional.
Créditos
da foto: Reprodução
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