terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

UMA QUESTÃO NECESSÁRIA - José Eduardo Agualusa



José Eduardo Agualusa – Rede Angola, opinião

Há poucos dias, numa visita a Frankfurt, fui entrevistado por Nádia Issufo, simpática e competente jornalista moçambicana que trabalha para os serviços em português da Rádio Deutsche Welle. Ainda no início da entrevista, Nádia disse-me que gostaria de fazer uma pergunta, talvez um pouco incómoda, mas que no seu país tem estado no centro, desde há muito tempo, de uma certa polémica literária: “porque é que os escritores com maior reconhecimento internacional, quer em Moçambique, quer em Angola, são quase todos brancos e mulatos?”

A verdade é que esta é uma pergunta que me fazem com alguma frequência e que também entre nós, em Angola, costuma dar origem a animados debates. A entrevista que Nádia me fez foi, aliás, bastante citada nas redes sociais. Não tenho receio de perguntas difíceis. Gosto de perguntas difíceis. Perguntas difíceis são, quase sempre, perguntas necessárias. Sou apaixonado por um bom debate e fico sinceramente feliz quando argumentos contrários me levam a rever ideias que tinha como seguras. Só não me agrada, como aconteceu com alguns dos comentários que li nas redes sociais, que distorçam o meu pensamento.

Assim, aproveito este espaço para responder com mais pormenor e tranquilidade à questão que me colocou Nádia Issufo.

Num país onde noventa e oito por cento da população é negra, os melhores escritores, aqueles com maior reconhecimento internacional, deveriam ser negros. Sem qualquer dúvida. Se isto não acontece é porque persistem no nosso pais, quarenta anos após a independência, uma série de graves distorções sociais. Mas não só.

Por um lado, é forçoso reconhecer que os angolanos de ascendência europeia beneficiaram de inúmeros previlégios durante a época colonial, e, desde logo, de um mais fácil acesso ao livro. Um escritor é, antes de mais, um grande leitor. Podemos ter – e temos – uma tradição de contadores de histórias. Contamos com excelentes contadores de histórias (todos nós conhecemos uma mão cheia deles) e temos histórias para contar. Isso, contudo, não basta para fazer um escritor. É preciso que esses potenciais escritores possam ter livre acesso à grande literatura universal, e é imprescindível que possuam uma intimidade profunda com o idioma que usam como ferramenta literária.

Isto não tem apenas a ver com a origem social do escritor. José Saramago nasceu numa família de agricultores. Foi serralheiro mecânico. Nunca frequentou uma universidade. Teve, contudo, acesso a livros. O pai de Luiz Ruffato, um dos melhores escritores brasileiros da actualidade, vendia pipocas na rua. Luiz passou por inúmeras dificuldades em criança. Contudo, teve acesso a livros.

Num país como o nosso, com pouquíssimas bibliotecas públicas e não mais de uma dúzia de livrarias, todas elas muito fracas, quem não nasce no seio de uma família com algumas possibilidades económicas e interesse pela leitura  irá sentir inevitavelmente enormes dificuldades para construir uma carreira literária.

Como escreveu algures Fernando Pessoa, “o êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito. Condições de palácio tem qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se não o fizerem ali?”

Há uma outra resposta possível, e, a meu ver, mais interessante: comunidades em situação minoritária tendem a procurar na cultura, e na literatura em particular, uma forma de se integrarem no corpo maioritário. A literatura pode servir tanto de demanda quanto de afirmação identitária. De uma forma geral, a minoria anseia pela dissolução. Há escritores em que isso é muito claro, como Luandino Vieira e Mia Couto. O esforço destes escritores na procura de uma linguagem inequivocamente angolana, no primeiro caso, e moçambicana, no segundo, tem muito a ver com esta demanda e esse processo de afirmação e integração.

Nos últimos anos assistimos à afirmação internacional de uma série de jovens escritores negros africanos. A maioria, nigerianos radicados nos Estados Unidos. O sucesso destes escritores tem a ver com a qualidade, a sofisticação e o cosmopolitismo da sua obra. Têm a ver também com uma certa curiosidade do mundo relativamente à nova África que se começa agora a desenhar. Um escritor africano negro dispõe à partida de um capital de autoridade que um colega seu, também africano mas de ascendência europeia, não possui. Sempre que falo para audiências estrangeiras, na Europa ou nos Estados Unidos, posso sentir a perplexidade, por vezes mesmo uma mal disfarçada hostilidade. Sou, afinal, obrigado a responder a questões semelhantes àquela que Nádia colocou. Evidentemente, a partir do momento em que um escritor se afirma, a sua raça desaparece, a sua nacionalidade deixa de ser relevante e ele passa a ser aceite apenas pelo valor da obra que produz.

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