José
Eduardo Agualusa – Rede Angola, opinião
Há
poucos dias, numa visita a Frankfurt, fui entrevistado por Nádia Issufo,
simpática e competente jornalista moçambicana que trabalha para os serviços em
português da Rádio Deutsche Welle. Ainda no início da entrevista, Nádia
disse-me que gostaria de fazer uma pergunta, talvez um pouco incómoda, mas que
no seu país tem estado no centro, desde há muito tempo, de uma certa polémica
literária: “porque é que os escritores com maior reconhecimento internacional,
quer em Moçambique, quer em Angola, são quase todos brancos e mulatos?”
A
verdade é que esta é uma pergunta que me fazem com alguma frequência e que
também entre nós, em Angola, costuma dar origem a animados debates. A
entrevista que Nádia me fez foi, aliás, bastante citada nas redes sociais. Não
tenho receio de perguntas difíceis. Gosto de perguntas difíceis. Perguntas
difíceis são, quase sempre, perguntas necessárias. Sou apaixonado por um bom
debate e fico sinceramente feliz quando argumentos contrários me levam a rever
ideias que tinha como seguras. Só não me agrada, como aconteceu com alguns dos
comentários que li nas redes sociais, que distorçam o meu pensamento.
Assim,
aproveito este espaço para responder com mais pormenor e tranquilidade à
questão que me colocou Nádia Issufo.
Num
país onde noventa e oito por cento da população é negra, os melhores
escritores, aqueles com maior reconhecimento internacional, deveriam ser
negros. Sem qualquer dúvida. Se isto não acontece é porque persistem no nosso
pais, quarenta anos após a independência, uma série de graves distorções
sociais. Mas não só.
Por
um lado, é forçoso reconhecer que os angolanos de ascendência europeia
beneficiaram de inúmeros previlégios durante a época colonial, e, desde logo,
de um mais fácil acesso ao livro. Um escritor é, antes de mais, um grande
leitor. Podemos ter – e temos – uma tradição de contadores de histórias.
Contamos com excelentes contadores de histórias (todos nós conhecemos uma mão
cheia deles) e temos histórias para contar. Isso, contudo, não basta para fazer
um escritor. É preciso que esses potenciais escritores possam ter livre acesso
à grande literatura universal, e é imprescindível que possuam uma intimidade
profunda com o idioma que usam como ferramenta literária.
Isto
não tem apenas a ver com a origem social do escritor. José Saramago nasceu numa
família de agricultores. Foi serralheiro mecânico. Nunca frequentou uma
universidade. Teve, contudo, acesso a livros. O pai de Luiz Ruffato, um dos
melhores escritores brasileiros da actualidade, vendia pipocas na rua. Luiz passou
por inúmeras dificuldades em criança. Contudo, teve acesso a livros.
Num
país como o nosso, com pouquíssimas bibliotecas públicas e não mais de uma
dúzia de livrarias, todas elas muito fracas, quem não nasce no seio de uma
família com algumas possibilidades económicas e interesse pela leitura
irá sentir inevitavelmente enormes dificuldades para construir uma
carreira literária.
Como
escreveu algures Fernando Pessoa, “o êxito está em ter êxito, e não em ter
condições de êxito. Condições de palácio tem qualquer terra larga, mas onde
estará o palácio se não o fizerem ali?”
Há
uma outra resposta possível, e, a meu ver, mais interessante: comunidades em
situação minoritária tendem a procurar na cultura, e na literatura em
particular, uma forma de se integrarem no corpo maioritário. A literatura pode
servir tanto de demanda quanto de afirmação identitária. De uma forma geral, a
minoria anseia pela dissolução. Há escritores em que isso é muito claro, como
Luandino Vieira e Mia Couto. O esforço destes escritores na procura de uma
linguagem inequivocamente angolana, no primeiro caso, e moçambicana, no
segundo, tem muito a ver com esta demanda e esse processo de afirmação e
integração.
Nos
últimos anos assistimos à afirmação internacional de uma série de jovens escritores
negros africanos. A maioria, nigerianos radicados nos Estados Unidos. O sucesso
destes escritores tem a ver com a qualidade, a sofisticação e o cosmopolitismo
da sua obra. Têm a ver também com uma certa curiosidade do mundo relativamente
à nova África que se começa agora a desenhar. Um escritor africano negro dispõe
à partida de um capital de autoridade que um colega seu, também africano mas de
ascendência europeia, não possui. Sempre que falo para audiências estrangeiras,
na Europa ou nos Estados Unidos, posso sentir a perplexidade, por vezes mesmo
uma mal disfarçada hostilidade. Sou, afinal, obrigado a responder a questões
semelhantes àquela que Nádia colocou. Evidentemente, a partir do momento em que
um escritor se afirma, a sua raça desaparece, a sua nacionalidade deixa de ser
relevante e ele passa a ser aceite apenas pelo valor da obra que produz.
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