A
filha de José Eduardo dos Santos e o seu marido Sindika Dokolo gerem, a partir
da capital portuguesa, um universo de mais de 40 sociedades-veículo com que
controlam os seus negócios, em esquemas de cascata. Apesar de ser dona de parte
da Galp desde 2007, isso nunca apareceu em qualquer informação oficial
Micael
Pereira, texto – Carlos Pais. Infografia – Expresso
Isabel
dos Santos gosta de Lisboa. A cidade tem um pouco de Luanda. Palmeiras, luz,
água em abundância, a mesma língua. Da varanda da suite onde costuma ficar no
Ritz, o emblemático hotel de cinco estrelas construído depois da Segunda Guerra
Mundial, vê-se a praça Marquês de Pombal e a as copas da avenida da Liberdade,
onde funciona o seu escritório, a poucos minutos de distância. É numa esquina
junto ao renovado teatro Tivoli que o seu núcleo duro ocupa dois pisos de um
edifício oitocentista restaurado, onde fica a única loja da Louis Vuitton em
Portugal. Uma dezena de gestores e assessores gere os ativos no valor de
milhares de milhões de euros que a mulher mais rica de África tem concentrados
em participações de grandes empresas em Portugal e em Angola.
Não
é a típica estrutura que se poderia esperar de um grupo económico que se
estende à banca, às telecomunicações e ao sector da energia. Faz mais lembrar
um family office, uma boutique financeira especializada em tomar conta de
fortunas de família, já que não existe uma empresa-mãe a partir da qual tudo
deriva.
De
acordo com dados recolhidos numa colaboração entre o Expresso e a ANCIR (African
Network of Centers for Investigative Reporting), uma rede de centros de
jornalismo de investigação com sede na África do Sul, Isabel dos Santos e o seu
marido, Sindika Dokolo, detêm mais de 40 sociedades-veículo em várias
jurisdições, geridas a partir do escritório de Lisboa e que controlam por sua
vez participações em grandes empresa em Portugal e Angola, a par de negócios
noutros países, como a Suíça ou a Nova Zelândia, sem que se perceba nalguns
casos até onde se estendem os interesses da empresária. Mesmo nas situações de
grandes empresas cotadas em bolsa que são obrigadas a prestar informações sobre
os seus accionistas de referência.
QUANTO
MAIS COMPLEXO, MELHOR?
Um
dos exemplos de como a cadeia de interesses da filha de José Eduardo dos Santos
é complicada e opaca está na participação indirecta que possui na Galp Energia.
Segundo os dados obtidos pelo Expresso e pela ANCIR com a ajuda da Orbis, uma
base de dados da Bureau van Dijk, uma multinacional de business intelligence
com registos sobre 180 milhões de companhias, e com recurso também a outras
fontes, este foi o esquema em cascata encontrado no final de 2015:
1.
Isabel era dona, a meias com o marido, Sindika Dokolo, de uma sociedade em
Amsterdão chamada Melbourne Investments;
2.
A Melbourne Investments, por sua vez, era dona de uma companhia na Suíça de
nome Exem Holding AG;
3.
A Exem Holding AG detinha 40% de uma outra empresa, a Esperaza Holding, em
Amsterdão, enquanto os outros 60% estavam nas mãos da petrolífera estatal
angolana Sonangol;
4.
A Esperaza Holding possuía 45% da sociedade holandesa Amorim Energia BV, sendo
os restantes 55% controlados por Américo Amorim;
5.
A Amorim Energia BV tinha 38,34% da Galp Energia.
Mas
uma actualização feita agora pelo Expresso e pela ANCIR na Orbis já dava conta
de outro cenário. Isabel dos Santos e a Melbourne Investments saíram da
equação. Uma outra sociedade, a Exem Energy BV, em Amesterdão, detém 40% da
Esperaza Holding. A Exem Energy, por outro lado, é 100% detida pela Exem
Holding AG, na Suíça, que agora é totalmente detida por Sindika Dokolo, sem a
mulher. Sendo que a posição indireta de 7% na Galp mantém-se.
Até
hoje não existe nenhuma informação oficial em Portugal sobre a estrutura
accionista da Esperaza. Nem nos relatórios da Galp Energia, nem do grupo
Amorim, nem também nas informações obrigatórias que são prestadas à CMVM, a
Comissão do Mercado de Valores Imobiliários, entidade que regula as sociedades
com presença em bolsa.
O
principal colaborador de Isabel dos Santos, o português Mário Leite da Silva,
que chefia a equipa do número 190 da avenida da Liberdade, faz parte da
administração da Esperaza desde outubro de 2007 mas quatro anos depois, em
2011, o departamento jurídico e de contencioso da CMVM admitia que ainda não
estava ao corrente sobre a posição da empresária na Galp, num ofício enviado ao
Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), em resposta a
pedidos de esclarecimento do Ministério Público. “No prospecto de oferta
pública de venda e admissão à negociação da Galp Energia, SGPS, de outubro de
2009, era dito que a Sonangol detém 100% do capital social da Esperaza Holding
BV”, lê-se no ofício, sendo que “nenhuma alteração ao exposto foi informada à
CMVM” apesar de serem “conhecidas as notícias que dão conta de que Isabel dos
Santos teria adquirido uma participação na Esperaza”.
Nada
mudou nas informações que foram sendo prestadas à CMVM pela Galp depois desse
ofício endereçado ao Ministério Público em 2011. No último relatório e contas
da empresa do sector energético, relativo a 2014, vem apenas que a Esperaza “é
controlada pela Sonangol”, sem nenhuma menção a Isabel dos Santos ou às suas
sociedades-veículo. O mesmo é referido no “relatório de governo societário” de
2014 entregue pela GALP à CMVM.
UM
SÓCIO CHAMADO ESTADO
Mário
Leite da Silva, um economista de 43 anos, abandonou o cargo de administrador financeiro
de Américo Amorim em 2006 para assumir a gestão dos negócios de Isabel. Uma
fonte que o conhece descreve-o como “um homem profissional, meticuloso e
autoritário, ainda que ela é de facto quem manda e decide o que fazer a cada
momento”. Leite da Silva é presidente de quatro conselhos de administração e
administrador de outras 12 empresas, a maioria delas meras sociedades
instrumentais. Como é o caso da Victoria Holding Limited e da Victoria Ltd,
ambas sediadas em caixas postais de St. Julian’s, em Malta.
Até
dada altura, a Victoria Holding Limited era detida pela Melbourne Investments -
a tal empresa do casal Isabel e Sindika - e por sua vez era dona da Victoria
Limited cuja única aparente função é ser proprietária de 95% da De Grisogono, uma famosa
casa de fabricantes de jóias de luxo de Genebra, na Suíça, comprada em 2012 por
mais de 60 milhões de euros e da qual Leite da Silva é o presidente do conselho
de administração.
Há
dois anos, surgiram referências de haver no esquema em cascata mais uma empresa
estatal, no papel de accionista da Victoria Holding: a Sociedade de
Comercialização de Diamantes de Angola, Sodiam, criada em 1999 e com os
direitos exclusivos de exportação de todos os diamantes angolanos. Essa
informação foi divulgada pelo jornalista angolano Rafael Marques na revista Forbes. Não existem evidências disso, pelo menos diretas,
nas pesquisas mais recentes à Orbis, feitas já em março. Mas o esquema em
cascata está mais complexo. A Melbourne Investments desapareceu, mais uma vez,
do assunto. E em vez de uma De Grisogono, passou a haver duas, ambas no
Luxemburgo: a De Grisogono Holding SA e a De Grisogono SA., sendo que a
primeira delas tem como sócio minoritário a Eurofinsa SA.
A
Eurofinsa, uma construtora multinacional construtora espanhola, foi alvo de uma
investigação por parte do Ministério Público em que estava em causa a entrega
de 16,5 milhões de euros a José Filomeno dos Santos, irmão de Isabel dos
Santos, chairman do Fundo Soberano de Angola e considerado como um provável
sucessor do pai à frente dos destinos do país.
De
acordo com o jornal espanhol El Confidencial, a Eurofinsa, que viria a ser o segundo
maior financiador da fundação do ex-juiz Baltazar Garzon, distribuiu jóias e
carros de luxo por figuras-chave em Luanda, incluindo um Audi ao ministro das
Obras Públicas e dois Audis no valor de 100 mil euros cada ao presidente do
Instituto de Estradas de Angola (INEA), a quem caberia decidir sobre um
contrato de 300 milhões de euros que era do interesse da construtora espanhola.
O caso acabou por ser arquivado em maio de 2011 por um juiz que concluiu pela
impossibilidade de se conseguir provar se os presentes tiveram como
contrapartida a obtenção de contratos públicos. O magistrado aceitou, além
disso, o argumento apresentado por sócios de José Filomeno dos Santos de que os
16,5 milhões de euros foram apenas um empréstimo para a compra de uma casa em
Londres.
Além
do negócio de diamantes na Suíça, Mário Leite da Silva ocupa posições
relevantes em empresas em Angola, como a Ciminvest, no sector do cimento, e
SOCIP, que controla a ZAP, a distribuidora de televisão por satélite.
Ao
mesmo tempo que Isabel dos Santos vem acumulando divergências com os seus
principais parceiros de negócios portugueses — primeiro com o homem mais rico
de Portugal, Américo Amorim, com quem entrou na banca em Angola e no sector da
energia em Portugal; depois com a Sonae de Belmiro de Azevedo por causa do
negócio dos supermercados Condis; e agora com a administração do BPI, a
propósito de uma disputa sobre o controlo da filial do banco possui em Angola,
o BFA — um grupo de eurodeputados que incluí a antiga embaixadora Ana Gomes tem
feito pressão junto da Comissão Europeia e da Autoridade Bancária Europeia para
verificarem se as regras de diligência reforçada impostas pela legislação
comunitária sobre branqueamento de capitais estão a ser cumpridas em Portugal.
Não só pelos bancos e pelas grandes empresas não financeiras com as quais a
filha do presidente está envolvida mas também pelas entidades reguladoras que
são responsáveis por garantir que essas regras são respeitadas: o Banco de
Portugal e a CMVM.
Como
é que uma pessoa tão politicamente exposta tem sido tão facilmente aceite pelos
bancos portugueses de que é accionista ou pelos bancos que lhe têm emprestado
dinheiro? Subsistem zonas cinzentas, como sublinha Ana Gomes, sobre a origem da
sua fortuna e sobre o cruzamento de empresas suas com empresas estatais
angolanas, controladas pelo pai. A eurodeputada portuguesa e os seus colegas do
Intergrupo Parlamentar para Integridade e Transparência têm focado as suas
atenções no negócio de compra de 65% da Efacec, concluído em outubro de 2015 e que
inclui a participação de mais uma companhia estatal angolana, a ENDE, Empresa
Nacional de Distribuição de Eletricidade, e que foi feito com recurso a
empréstimos concedidos por quatro bancos portugueses. Uma compra que, segundo
um comunicado de Isabel dos Santos, “correspondeu a um processo negocial
transparente”.
Confrontada
pelo Expresso com uma lista de oito perguntas sobre foram cumpridos os deveres
de diligência reforçada no âmbito do financiamento que deu para a empresária
adquirir a Efacec, a Caixa-Geral de Depósitos limitou-se a dizer: “A Caixa
cumpre o que vem na lei sobre este assunto”. O BPI, numa resposta muito mais
longa, disse o mesmo. Nada se sabe sobre os procedimentos que têm sido
seguidos.
DISTÂNCIA
DOS GENERAIS
A
aquisição da Efacec, segundo fontes que acompanharam o negócio, demorou dois
anos a ser desenhada, incluindo quanto à estrutura accionista que foi
construída com esse propósito. Mais uma vez, o processo foi conduzido pelo
núcleo duro do número 190 da avenida da Liberdade, com consultores externos da
PricewaterhouseCoopers e a ajuda da PLMJ, a maior sociedade de advogados em
Portugal, dirigida por José Miguel Júdice, de onde saiu há poucos meses o outro
colaborador de referência da empresária: Jorge Brito Pereira, especialista em
estruturas corporativas e processos de fusões e aquisições.
Brito
Pereira anunciou internamente a sua saída com um ano de antecedência, mas,
segundo uma fonte que assistiu à transferência do advogado, os sócios acabaram
por ser apanhados de surpresa quando souberam que afinal ia trabalhar para a
Uría Menéndez, a sociedade de Proença de Carvalho. “Ele era um príncipe na
PLMJ, fazia o que queria, porque tinha a conta de Isabel dos Santos.”
A
ida de Brito Pereira para a Úria foi encarada no meio como reveladora de uma
nova fase, uma vez que até recentemente, de acordo com outra fonte próxima
deste círculo, “ela fazia questão de manter a distância em relação aos generais
do regime angolano e evitava, inclusive, partilhar voos para Lisboa.
Considerava-se superior. E Proença de Carvalho representava e representa os
interesses deles.”
Até
hoje, Isabel dos Santos nunca caiu na situação em que outros investidores
angolanos foram apanhados, a propósito de movimentos internacionais avultados
para contas em bancos portugueses. A filha do presidente angolano “é muito
escrupulosa com as suas finanças pessoais e tem tudo em ordem do ponto de vista
fiscal”, diz alguém que a conhece. “Não há nada que se lhe possa apontar desse
ponto de vista.” Isabel não está na lista de figuras do regime de Luanda sob
investigação há vários anos por suspeitas de branqueamento de capitais no DCIAP
— e onde constam nomes como o ministro Hélder Vieira Dias, conhecido como general
Kopelipa, ou o empresário Leopoldino do Nascimento Fragoso — o general Dino.
A
empresária chegou a ser detectada numa averiguação preventiva por causa de uma
transferência de um milhão de euros, mas que foi logo esclarecida como sendo
uma remuneração, não dando origem a um processo-crime. E o Ministério Público
tropeçou no seu nome em 2007 durante umas buscas a um escritório de advogados.
Não foram encontrados indícios de crime. Isabel e Sindika tinham comprado uma
casa através de uma companhia offshore, mas os impostos estavam em ordem. A
casa continua a ser sua, é a única que tem em Lisboa, mas nunca foi ocupada.
Isabel, nisso, é como o pai: quando está em Lisboa, prefere ficar no Ritz.
Uma
investigação Expresso/ANCIR (African Network of Centers for Investigative
Reporting), com o apoio do programa Connecting Continents
Nota:
uma versão deste artigo foi publicada no caderno de Economia na edição em papel
do Expresso de 12 de março de 2016
Foto:
Rui Duarte Silva
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