terça-feira, 29 de março de 2016

LISBOA, O SEGUNDO PAÍS DE ISABEL DOS SANTOS



A filha de José Eduardo dos Santos e o seu marido Sindika Dokolo gerem, a partir da capital portuguesa, um universo de mais de 40 sociedades-veículo com que controlam os seus negócios, em esquemas de cascata. Apesar de ser dona de parte da Galp desde 2007, isso nunca apareceu em qualquer informação oficial

Micael Pereira, texto – Carlos Pais. Infografia – Expresso

Isabel dos Santos gosta de Lisboa. A cidade tem um pouco de Luanda. Palmeiras, luz, água em abundância, a mesma língua. Da varanda da suite onde costuma ficar no Ritz, o emblemático hotel de cinco estrelas construído depois da Segunda Guerra Mundial, vê-se a praça Marquês de Pombal e a as copas da avenida da Liberdade, onde funciona o seu escritório, a poucos minutos de distância. É numa esquina junto ao renovado teatro Tivoli que o seu núcleo duro ocupa dois pisos de um edifício oitocentista restaurado, onde fica a única loja da Louis Vuitton em Portugal. Uma dezena de gestores e assessores gere os ativos no valor de milhares de milhões de euros que a mulher mais rica de África tem concentrados em participações de grandes empresas em Portugal e em Angola.

Não é a típica estrutura que se poderia esperar de um grupo económico que se estende à banca, às telecomunicações e ao sector da energia. Faz mais lembrar um family office, uma boutique financeira especializada em tomar conta de fortunas de família, já que não existe uma empresa-mãe a partir da qual tudo deriva.

De acordo com dados recolhidos numa colaboração entre o Expresso e a ANCIR (African Network of Centers for Investigative Reporting), uma rede de centros de jornalismo de investigação com sede na África do Sul, Isabel dos Santos e o seu marido, Sindika Dokolo, detêm mais de 40 sociedades-veículo em várias jurisdições, geridas a partir do escritório de Lisboa e que controlam por sua vez participações em grandes empresa em Portugal e Angola, a par de negócios noutros países, como a Suíça ou a Nova Zelândia, sem que se perceba nalguns casos até onde se estendem os interesses da empresária. Mesmo nas situações de grandes empresas cotadas em bolsa que são obrigadas a prestar informações sobre os seus accionistas de referência.

QUANTO MAIS COMPLEXO, MELHOR?

Um dos exemplos de como a cadeia de interesses da filha de José Eduardo dos Santos é complicada e opaca está na participação indirecta que possui na Galp Energia. Segundo os dados obtidos pelo Expresso e pela ANCIR com a ajuda da Orbis, uma base de dados da Bureau van Dijk, uma multinacional de business intelligence com registos sobre 180 milhões de companhias, e com recurso também a outras fontes, este foi o esquema em cascata encontrado no final de 2015:

1. Isabel era dona, a meias com o marido, Sindika Dokolo, de uma sociedade em Amsterdão chamada Melbourne Investments;

2. A Melbourne Investments, por sua vez, era dona de uma companhia na Suíça de nome Exem Holding AG;

3. A Exem Holding AG detinha 40% de uma outra empresa, a Esperaza Holding, em Amsterdão, enquanto os outros 60% estavam nas mãos da petrolífera estatal angolana Sonangol;

4. A Esperaza Holding possuía 45% da sociedade holandesa Amorim Energia BV, sendo os restantes 55% controlados por Américo Amorim;

5. A Amorim Energia BV tinha 38,34% da Galp Energia.

Mas uma actualização feita agora pelo Expresso e pela ANCIR na Orbis já dava conta de outro cenário. Isabel dos Santos e a Melbourne Investments saíram da equação. Uma outra sociedade, a Exem Energy BV, em Amesterdão, detém 40% da Esperaza Holding. A Exem Energy, por outro lado, é 100% detida pela Exem Holding AG, na Suíça, que agora é totalmente detida por Sindika Dokolo, sem a mulher. Sendo que a posição indireta de 7% na Galp mantém-se.

Até hoje não existe nenhuma informação oficial em Portugal sobre a estrutura accionista da Esperaza. Nem nos relatórios da Galp Energia, nem do grupo Amorim, nem também nas informações obrigatórias que são prestadas à CMVM, a Comissão do Mercado de Valores Imobiliários, entidade que regula as sociedades com presença em bolsa.

O principal colaborador de Isabel dos Santos, o português Mário Leite da Silva, que chefia a equipa do número 190 da avenida da Liberdade, faz parte da administração da Esperaza desde outubro de 2007 mas quatro anos depois, em 2011, o departamento jurídico e de contencioso da CMVM admitia que ainda não estava ao corrente sobre a posição da empresária na Galp, num ofício enviado ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), em resposta a pedidos de esclarecimento do Ministério Público. “No prospecto de oferta pública de venda e admissão à negociação da Galp Energia, SGPS, de outubro de 2009, era dito que a Sonangol detém 100% do capital social da Esperaza Holding BV”, lê-se no ofício, sendo que “nenhuma alteração ao exposto foi informada à CMVM” apesar de serem “conhecidas as notícias que dão conta de que Isabel dos Santos teria adquirido uma participação na Esperaza”.

Nada mudou nas informações que foram sendo prestadas à CMVM pela Galp depois desse ofício endereçado ao Ministério Público em 2011. No último relatório e contas da empresa do sector energético, relativo a 2014, vem apenas que a Esperaza “é controlada pela Sonangol”, sem nenhuma menção a Isabel dos Santos ou às suas sociedades-veículo. O mesmo é referido no “relatório de governo societário” de 2014 entregue pela GALP à CMVM.

UM SÓCIO CHAMADO ESTADO

Mário Leite da Silva, um economista de 43 anos, abandonou o cargo de administrador financeiro de Américo Amorim em 2006 para assumir a gestão dos negócios de Isabel. Uma fonte que o conhece descreve-o como “um homem profissional, meticuloso e autoritário, ainda que ela é de facto quem manda e decide o que fazer a cada momento”. Leite da Silva é presidente de quatro conselhos de administração e administrador de outras 12 empresas, a maioria delas meras sociedades instrumentais. Como é o caso da Victoria Holding Limited e da Victoria Ltd, ambas sediadas em caixas postais de St. Julian’s, em Malta.

Até dada altura, a Victoria Holding Limited era detida pela Melbourne Investments - a tal empresa do casal Isabel e Sindika - e por sua vez era dona da Victoria Limited cuja única aparente função é ser proprietária de 95% da De Grisogono, uma famosa casa de fabricantes de jóias de luxo de Genebra, na Suíça, comprada em 2012 por mais de 60 milhões de euros e da qual Leite da Silva é o presidente do conselho de administração.

Há dois anos, surgiram referências de haver no esquema em cascata mais uma empresa estatal, no papel de accionista da Victoria Holding: a Sociedade de Comercialização de Diamantes de Angola, Sodiam, criada em 1999 e com os direitos exclusivos de exportação de todos os diamantes angolanos. Essa informação foi divulgada pelo jornalista angolano Rafael Marques na revista Forbes. Não existem evidências disso, pelo menos diretas, nas pesquisas mais recentes à Orbis, feitas já em março. Mas o esquema em cascata está mais complexo. A Melbourne Investments desapareceu, mais uma vez, do assunto. E em vez de uma De Grisogono, passou a haver duas, ambas no Luxemburgo: a De Grisogono Holding SA e a De Grisogono SA., sendo que a primeira delas tem como sócio minoritário a Eurofinsa SA.

A Eurofinsa, uma construtora multinacional construtora espanhola, foi alvo de uma investigação por parte do Ministério Público em que estava em causa a entrega de 16,5 milhões de euros a José Filomeno dos Santos, irmão de Isabel dos Santos, chairman do Fundo Soberano de Angola e considerado como um provável sucessor do pai à frente dos destinos do país.

De acordo com o jornal espanhol El Confidencial, a Eurofinsa, que viria a ser o segundo maior financiador da fundação do ex-juiz Baltazar Garzon, distribuiu jóias e carros de luxo por figuras-chave em Luanda, incluindo um Audi ao ministro das Obras Públicas e dois Audis no valor de 100 mil euros cada ao presidente do Instituto de Estradas de Angola (INEA), a quem caberia decidir sobre um contrato de 300 milhões de euros que era do interesse da construtora espanhola. O caso acabou por ser arquivado em maio de 2011 por um juiz que concluiu pela impossibilidade de se conseguir provar se os presentes tiveram como contrapartida a obtenção de contratos públicos. O magistrado aceitou, além disso, o argumento apresentado por sócios de José Filomeno dos Santos de que os 16,5 milhões de euros foram apenas um empréstimo para a compra de uma casa em Londres.

Além do negócio de diamantes na Suíça, Mário Leite da Silva ocupa posições relevantes em empresas em Angola, como a Ciminvest, no sector do cimento, e SOCIP, que controla a ZAP, a distribuidora de televisão por satélite.

Ao mesmo tempo que Isabel dos Santos vem acumulando divergências com os seus principais parceiros de negócios portugueses — primeiro com o homem mais rico de Portugal, Américo Amorim, com quem entrou na banca em Angola e no sector da energia em Portugal; depois com a Sonae de Belmiro de Azevedo por causa do negócio dos supermercados Condis; e agora com a administração do BPI, a propósito de uma disputa sobre o controlo da filial do banco possui em Angola, o BFA — um grupo de eurodeputados que incluí a antiga embaixadora Ana Gomes tem feito pressão junto da Comissão Europeia e da Autoridade Bancária Europeia para verificarem se as regras de diligência reforçada impostas pela legislação comunitária sobre branqueamento de capitais estão a ser cumpridas em Portugal. Não só pelos bancos e pelas grandes empresas não financeiras com as quais a filha do presidente está envolvida mas também pelas entidades reguladoras que são responsáveis por garantir que essas regras são respeitadas: o Banco de Portugal e a CMVM.

Como é que uma pessoa tão politicamente exposta tem sido tão facilmente aceite pelos bancos portugueses de que é accionista ou pelos bancos que lhe têm emprestado dinheiro? Subsistem zonas cinzentas, como sublinha Ana Gomes, sobre a origem da sua fortuna e sobre o cruzamento de empresas suas com empresas estatais angolanas, controladas pelo pai. A eurodeputada portuguesa e os seus colegas do Intergrupo Parlamentar para Integridade e Transparência têm focado as suas atenções no negócio de compra de 65% da Efacec, concluído em outubro de 2015 e que inclui a participação de mais uma companhia estatal angolana, a ENDE, Empresa Nacional de Distribuição de Eletricidade, e que foi feito com recurso a empréstimos concedidos por quatro bancos portugueses. Uma compra que, segundo um comunicado de Isabel dos Santos, “correspondeu a um processo negocial transparente”.

Confrontada pelo Expresso com uma lista de oito perguntas sobre foram cumpridos os deveres de diligência reforçada no âmbito do financiamento que deu para a empresária adquirir a Efacec, a Caixa-Geral de Depósitos limitou-se a dizer: “A Caixa cumpre o que vem na lei sobre este assunto”. O BPI, numa resposta muito mais longa, disse o mesmo. Nada se sabe sobre os procedimentos que têm sido seguidos.

DISTÂNCIA DOS GENERAIS

A aquisição da Efacec, segundo fontes que acompanharam o negócio, demorou dois anos a ser desenhada, incluindo quanto à estrutura accionista que foi construída com esse propósito. Mais uma vez, o processo foi conduzido pelo núcleo duro do número 190 da avenida da Liberdade, com consultores externos da PricewaterhouseCoopers e a ajuda da PLMJ, a maior sociedade de advogados em Portugal, dirigida por José Miguel Júdice, de onde saiu há poucos meses o outro colaborador de referência da empresária: Jorge Brito Pereira, especialista em estruturas corporativas e processos de fusões e aquisições.

Brito Pereira anunciou internamente a sua saída com um ano de antecedência, mas, segundo uma fonte que assistiu à transferência do advogado, os sócios acabaram por ser apanhados de surpresa quando souberam que afinal ia trabalhar para a Uría Menéndez, a sociedade de Proença de Carvalho. “Ele era um príncipe na PLMJ, fazia o que queria, porque tinha a conta de Isabel dos Santos.”

A ida de Brito Pereira para a Úria foi encarada no meio como reveladora de uma nova fase, uma vez que até recentemente, de acordo com outra fonte próxima deste círculo, “ela fazia questão de manter a distância em relação aos generais do regime angolano e evitava, inclusive, partilhar voos para Lisboa. Considerava-se superior. E Proença de Carvalho representava e representa os interesses deles.”

Até hoje, Isabel dos Santos nunca caiu na situação em que outros investidores angolanos foram apanhados, a propósito de movimentos internacionais avultados para contas em bancos portugueses. A filha do presidente angolano “é muito escrupulosa com as suas finanças pessoais e tem tudo em ordem do ponto de vista fiscal”, diz alguém que a conhece. “Não há nada que se lhe possa apontar desse ponto de vista.” Isabel não está na lista de figuras do regime de Luanda sob investigação há vários anos por suspeitas de branqueamento de capitais no DCIAP — e onde constam nomes como o ministro Hélder Vieira Dias, conhecido como general Kopelipa, ou o empresário Leopoldino do Nascimento Fragoso — o general Dino.

A empresária chegou a ser detectada numa averiguação preventiva por causa de uma transferência de um milhão de euros, mas que foi logo esclarecida como sendo uma remuneração, não dando origem a um processo-crime. E o Ministério Público tropeçou no seu nome em 2007 durante umas buscas a um escritório de advogados. Não foram encontrados indícios de crime. Isabel e Sindika tinham comprado uma casa através de uma companhia offshore, mas os impostos estavam em ordem. A casa continua a ser sua, é a única que tem em Lisboa, mas nunca foi ocupada. Isabel, nisso, é como o pai: quando está em Lisboa, prefere ficar no Ritz.

Uma investigação Expresso/ANCIR (African Network of Centers for Investigative Reporting), com o apoio do programa Connecting Continents

Nota: uma versão deste artigo foi publicada no caderno de Economia na edição em papel do Expresso de 12 de março de 2016

Foto: Rui Duarte Silva

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