Afonso
Camões* – Jornal de Notícias, opinião
A
novela da papelada que escandaliza o pagode faz-me lembrar o bar que conheci em
tempos, lugar discreto, acolhedor e simpático, clientela muito variada e
cosmopolita, aberto 24 horas. Em letras formais escavadas na ardósia, a
plaquinha na porta invocava o direito de reserva de admissão. E, em letras mais
gordas, manuscritas a pincel, o nome da casa: Cano de Esgoto. Era assim que lhe
chamava a rapaziada. E, perguntado, o próprio dono justificava candidamente:
"Sim, cano de esgoto, porque desagua aqui toda a trampa e ninguém lhe
pergunta a origem".
Há
sete anos que os chefes das vinte nações mais poderosas (G20) anunciaram ao
Mundo o fim do segredo bancário. Desde então, a riqueza oculta mundial cresceu
25% e atinge já os 7,6 triliões de dólares, o equivalente a 8% da riqueza
global. Ora, evasão fiscal significa receita perdida para os estados, porque
são os impostos de quem trabalha que sustentam os orçamentos das democracias.
As
diferenças não têm a ver com os sistemas políticos quando se trata de pôr a fortuna
em bom recato. Elites venerandas de distintos países, eméritos cidadãos de
comenda ao peito e banho em água benta, encontram-se nos mesmos paraísos
fiscais, coincidindo, sem rebuço, com outras elites da delinquência global, a
corrupção política, o terrorismo e o tráfico de drogas e de armas - das de fogo
ao nuclear. Debaixo do mesmo telhado, no mesmo escritório, inscrevem-se
milhares de contas que escondem o rosto do titular, o rasto e a origem do
dinheiro: operações legais e ilegais. Mas o que seria legal é moralmente
inaceitável.
Mais
do que revelar, a papelada do Panamá comprova. De entre os figurões de todas as
origens, há um nome que não vamos recordar, mas que é bem a demonstração da
hipocrisia do sistema que toleramos: Gonzalo Delaveau, presidente da
Transparência Internacional no seu país...
A
denúncia revela o padrão de opacidade inventado pelo capital financeiro em
várias geografias recônditas, mesmo com bandeira europeia. Os poderes
nacionais, o português incluído, prometem, há anos, moralizar o sistema. A
resposta é o agravamento da tirania fiscal sobre os rendimentos do trabalho, ao
mesmo tempo que clamam por competitividade para que as economias cresçam. O
coração do sistema está fora do sistema, reside noutro lugar. Esse é o paradoxo
do capitalismo globalizado, uma aristocracia da riqueza que, em geral, coincide
com a do poder. E é aí que mora a corrupção. O tal bar, Cano de Esgoto de seu
nome, fechou há muito. A hipocrisia também não.
*Diretor
do JN
1 comentário:
Ainda alguém se lembra do Luxemburgo Leaks de Jean Claude Juncker?
Deu em quê?
Temos a Volkswagen, Toshiba, Barings, Enron, Worldcom, Parmalat, Lehman Brothers, Madoff, BP no México, Siemens, Barclays, HSBC, Petrobras, etc.,
Em Portugal a começar no BCP, BPN, BPP, BES, BANIF, e a acabar nas grandes empresas de construção.
Acho que já estamos habituados e por isso achamos normal.
Qualquer dia, até me sinto marginalizado.
Talvez o "cano de esgoto" tenha que ter obras de ampliação para "manilhas de esgoto".
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