domingo, 10 de abril de 2016

CANO DE ESGOTO



Afonso Camões* – Jornal de Notícias, opinião

A novela da papelada que escandaliza o pagode faz-me lembrar o bar que conheci em tempos, lugar discreto, acolhedor e simpático, clientela muito variada e cosmopolita, aberto 24 horas. Em letras formais escavadas na ardósia, a plaquinha na porta invocava o direito de reserva de admissão. E, em letras mais gordas, manuscritas a pincel, o nome da casa: Cano de Esgoto. Era assim que lhe chamava a rapaziada. E, perguntado, o próprio dono justificava candidamente: "Sim, cano de esgoto, porque desagua aqui toda a trampa e ninguém lhe pergunta a origem".

Há sete anos que os chefes das vinte nações mais poderosas (G20) anunciaram ao Mundo o fim do segredo bancário. Desde então, a riqueza oculta mundial cresceu 25% e atinge já os 7,6 triliões de dólares, o equivalente a 8% da riqueza global. Ora, evasão fiscal significa receita perdida para os estados, porque são os impostos de quem trabalha que sustentam os orçamentos das democracias.

As diferenças não têm a ver com os sistemas políticos quando se trata de pôr a fortuna em bom recato. Elites venerandas de distintos países, eméritos cidadãos de comenda ao peito e banho em água benta, encontram-se nos mesmos paraísos fiscais, coincidindo, sem rebuço, com outras elites da delinquência global, a corrupção política, o terrorismo e o tráfico de drogas e de armas - das de fogo ao nuclear. Debaixo do mesmo telhado, no mesmo escritório, inscrevem-se milhares de contas que escondem o rosto do titular, o rasto e a origem do dinheiro: operações legais e ilegais. Mas o que seria legal é moralmente inaceitável.

Mais do que revelar, a papelada do Panamá comprova. De entre os figurões de todas as origens, há um nome que não vamos recordar, mas que é bem a demonstração da hipocrisia do sistema que toleramos: Gonzalo Delaveau, presidente da Transparência Internacional no seu país...

A denúncia revela o padrão de opacidade inventado pelo capital financeiro em várias geografias recônditas, mesmo com bandeira europeia. Os poderes nacionais, o português incluído, prometem, há anos, moralizar o sistema. A resposta é o agravamento da tirania fiscal sobre os rendimentos do trabalho, ao mesmo tempo que clamam por competitividade para que as economias cresçam. O coração do sistema está fora do sistema, reside noutro lugar. Esse é o paradoxo do capitalismo globalizado, uma aristocracia da riqueza que, em geral, coincide com a do poder. E é aí que mora a corrupção. O tal bar, Cano de Esgoto de seu nome, fechou há muito. A hipocrisia também não.

*Diretor do JN

1 comentário:

Unknown disse...

Ainda alguém se lembra do Luxemburgo Leaks de Jean Claude Juncker?
Deu em quê?
Temos a Volkswagen, Toshiba, Barings, Enron, Worldcom, Parmalat, Lehman Brothers, Madoff, BP no México, Siemens, Barclays, HSBC, Petrobras, etc.,
Em Portugal a começar no BCP, BPN, BPP, BES, BANIF, e a acabar nas grandes empresas de construção.
Acho que já estamos habituados e por isso achamos normal.
Qualquer dia, até me sinto marginalizado.
Talvez o "cano de esgoto" tenha que ter obras de ampliação para "manilhas de esgoto".

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