domingo, 23 de junho de 2024

Constança Urbano de Sousa: "Muitos juízes de instrução criminal limitam-se assinar de cruz"

Inês Cardoso e Nuno Domingues | Jornal de Notícias - entrevista

O JN esteve à conversa com a presidente do Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa, Constança Urbano de Sousa.

Os holofotes e as críticas sobre o funcionamento da Justiça têm sido disparados ao Ministério Público, mas Constança Urbano de Sousa salienta o papel dos juízes de instrução, que acusa de serem acríticos e de não assumirem o papel de defensores das garantias dos cidadãos. Subscritora do Manifesto dos 50+50, considera que as escutas têm servido para vigilância política, violando a lei. Como ex-ministra da Administração Interna, alerta para a instrumentalização das polícias por forças de extrema-direita e considera que a AIMA (Agência para a Integração, Migrações e Asilo) não foi dotada dos recursos necessários para a sua missão.

A semana foi marcada pela polémica em torno da divulgação de escutas a António Costa. A abertura de inquérito foi a resposta adequada do Ministério Público?

Tem de ser aberto um inquérito, naturalmente, perante um facto tão grave como um cometimento de um crime. Porque, além de violação de segredo, a própria divulgação de escutas é proibida à face da ordem jurídica portuguesa. Os órgãos de Comunicação Social que divulgarem escutas ou transcrições cometem um crime de desobediência. Espero é que o Ministério Público também investigue este crime, o que até hoje nunca vi acontecer.

A procuradora-geral da República devia ter dado explicações sobre este caso, como exigiram os subscritores do manifesto?

O problema é que estamos a assistir a um agravamento de práticas ilegais, de forma reiterada, sistemática, e que estão verdadeiramente a colocar em causa o Estado de direito democrático e a democracia e o seu regular funcionamento. Portanto, sim, acho que são devidas explicações ao povo português.

E as reações dos partidos foram adequadas? Ao serem mantidas escutas sem relevância criminal, mas com relevância política, há uma ingerência da Justiça na política?

Nesse sentido, há uma ingerência política, como também deve haver uma ingerência na escolha do momento da divulgação das tais transcrições interpretativas, se quisermos, de escutas.

Por ser o momento da candidatura de António Costa a um cargo europeu?

Sim, porque é que foi naquele dia, não no dia anterior ou no dia posterior? Pode ser uma terrível coincidência, uma infeliz coincidência, mas não acredito neste tipo de coincidências.

A transcrição das conversas não foi pacífica e houve avaliações diferentes no Supremo. Na sua opinião, é lícita a preservação destas escutas?

Na minha opinião, não é lícita a manutenção de escutas que não têm qualquer tipo de relevância criminal num processo-crime, que não têm qualquer conexão com esse processo. As escutas são um meio muito intrusivo de investigação. São legítimas? Sim, naturalmente, para a investigação de crimes. Mas na estrita obediência do princípio da necessidade, da proporcionalidade e da sua adequação.

Porque é que são mantidas?

Não faço a mínima ideia, mas alguém autorizou não só a sua transcrição, como também a sua manutenção, e não ordenou a sua eliminação. As pessoas falam muito no Ministério Público, mas nós não nos podemos esquecer que no processo penal existe uma figura que é fundamental num Estado de direito democrático, que é o juiz de instrução criminal. Não é por acaso que é apelidado de juiz das liberdades, que tem como função principal garantir o respeito pelas liberdades e os direitos fundamentais dos cidadãos. A começar também pelo seu direito à privacidade. Portanto, ele não está no processo penal para assinar de cruz todos os pedidos do Ministério Público. Muito pelo contrário. Ele tem, como dizia um ilustre professor de direito penal, de mostrar os dentes. Considero que há muitos anos existe uma atuação muito acrítica de muitos juízes de instrução criminal, que se limitam a assinar de cruz as buscas. Não consigo compreender de outra forma como é que durante quatro anos alguém está sob escuta.

É um período excessivo?

As escutas são meios muito intrusivos. Têm de ser usadas onde é absolutamente necessário e proporcional. Senão isso já não é escuta, é vigilância. Era o que a PIDE fazia antigamente.

Não apenas neste processo, mas noutros que envolvem titulares de cargos públicos, as escutas prolongadas apanham por arrasto tudo o que aparece?

Claro. É ilegal e é inadmissível num Estado de direito democrático. Inadmissível. Não existe em lado nenhum. Pode existir num Estado ditatorial, mas não num Estado de direito democrático.

Os subscritores do Manifesto dos 50, agora já são mais de 100, têm dito que esta posição não é contra o Ministério Público. Admite que uma parte essencial do manifesto contesta as práticas e os procedimentos específicos do Ministério Público?

Não. Também, como acabei agora de dizer, do juiz de instrução criminal. Mais uma vez, é o juiz das liberdades. É a pessoa que está a garantir um equilíbrio da atuação e da ação, defendendo os direitos dos cidadãos. E sempre que há um juiz de instrução criminal que resolve, sobretudo em casos mediáticos, cumprir a função que a lei lhe atribui, é muito difícil. Não raras vezes, é trucidado.

Tem sido muito usada a expressão política do medo. Generaliza isto a outras entidades, a outros agentes na Justiça, além do Ministério Público?

Generaliza-se.

Mas quem é que ganha com essa política do medo?

Isto não é de hoje, já vem do passado. O problema é que as violações de segredo de justiça, a transcrição de escutas na Comunicação Social, assistirmos a diligências processuais ao vivo, com as televisões a transmitirem em direto as mesmas, tudo isso não é de hoje. A verdade é que, ao longo dos anos, assistimos a uma generalizada impunidade de violações e mesmo de crimes, mas até hoje não vejo ninguém a ser condenado. Esta impunidade que se generalizou faz com que exista uma utilização extremamente aberta de algumas competências e poderes. Ora, numa sociedade democrática, os poderes não são nunca absolutos. Os poderes têm de ser escrutináveis, exercidos num sistema de pesos e contrapesos. O copo foi enchendo, foi enchendo e agora transbordou. No fundo, é isso.

O copo foi enchendo por desleixo, ou houve alguma intencionalidade?

Acredito profundamente, tenho de acreditar, que a maioria dos magistrados do Ministério Público e dos magistrados judiciais são pessoas que exercem as suas funções com competência, isenção e rigor. No entanto, existem alguns que não o fazem. Tal como, nos órgãos de Comunicação Social, a esmagadora maioria dos jornalistas são pessoas eticamente irreprováveis. No entanto, como em tudo na vida, existem pessoas que fazem, por exemplo, de crimes, como é a violação de segredo de justiça, a não preservação do princípio da presunção da inocência, o seu modelo de negócio. E para sobreviverem neste modelo de negócio necessitam, naturalmente, da conivência dos atores da Justiça. Não acredito que os jornalistas possam entrar pelo Ministério Público adentro ou por um órgão de investigação criminal adentro e vão lá roubar as escutas. Alguém lhes dá peças processuais, alguém os tem de informar que hoje vão fazer uma busca aqui ou uma busca acolá. E também existe sempre uma seletividade nos momentos em que essa informação é divulgada. É uma atitude absolutamente arrogante e abusiva de um exercício de poder. Infelizmente, alguns agentes têm o complexo, se quisermos, do porteiro de discoteca. Aquele que nos permite entrar ou não entrar na dita da discoteca. E que normalmente o exerce com enorme arrogância e com enorme prepotência, diria eu. Aderi a este manifesto porque não quero morrer numa sociedade em que se tem medo dos poderes. Eu tenho de ter confiança na Justiça. Não posso ter medo dela. Isso é insustentável.

O resultado que queria era o debate que o tema suscitou na sociedade, há quem lhe chame de sobressalto cívico? Ou ainda está aquém das expectativas?

O sobressalto é importante, a denúncia é importante, mas naturalmente temos de ter ações. Agora, não nos compete a nós tomar essas medidas. As próprias instituições têm de ter a capacidade de autorreflexão e já agora de corrigir a mão, corrigir aquilo que está errado. Nem é preciso a grande intervenção do poder legislativo.

Foi formadora no Centro de Estudos Judiciários (CEJ). Há algum problema na formação que seja detetável? E como é que se corrigem esses problemas?

Acho que deveríamos repensar o recrutamento dos magistrados. E também a forma como funciona a sua formação. Seria mais favorável a um modelo do estilo alemão. Claro que há pessoas que vão por vocação, mas, durante os anos em que estive nos júris de admissão às magistraturas, tinha muitas vezes a sensação que muitas pessoas concorriam porque queriam um emprego. Basta estudar com algum detalhe o relatório social que o CEJ publica todos os anos para vermos faixas etárias, origens, e traçarmos ali um perfil sociológico das pessoas que são admitidas. Depois há a questão da formação. Ou melhor, muitas vezes, da formatação.

Quais os problemas que levam a esse conceito de formatação?

Deveria ser uma formação, por exemplo, mais aberta ao exterior. Não tão enclausurada naquele palácio. Ser-se juiz ou ser-se magistrado do Ministério Público implica também ter experiência de vida. A Justiça tem uma função social de maior importância. Uma das coisas que mais me impressionaram, um dia estava eu a estudar o Código Penal Alemão e o seu capítulo 30, que são os crimes de titulares de cargos públicos, e eis senão quando encontro dois crimes que apenas visam os magistrados e os titulares de Justiça e um particularmente, que é a perseguição criminal de pessoa inocente. Estamos a falar de molduras penais que vão aos 10 anos.

Defende essa inscrição no nosso Código Penal?

Não defendo porque teria de estudar melhor. Era só um demonstrativo de um Estado de direito democrático em que o poder judicial tem alguma responsabilização na sua atuação.

O cargo que exerce tem permitido perceber se há também algum tipo de abusos em escutas no caso dos serviços de informações de segurança?

Não. Posso garantir que não por uma razão muito simples: temos um quadro legal extremamente limitado no que à atuação dos nossos serviços de informações diz respeito, se comparado com quase todos os congéneres dos estados-membros da União Europeia, e existe uma consciencialização por parte dos nossos serviços de que a sua credibilidade depende muito da forma como eles cumprem com escrúpulo as regras, por mais limitativas que sejam.

“A Agência para as Migrações não foi dotada dos recursos necessários”

O relatório anual de segurança interna sinaliza um aumento de crimes relacionados com o tráfico de pessoas e com a violência de redes criminosas. Há capacidade de resposta em Portugal para estes fenómenos?

O crime de tráfico de seres humanos infelizmente tem crescido não só em Portugal [mas] um pouco por toda a Europa. É por natureza um crime transnacional, que exige bastante cooperação internacional. Existe uma maior consciencialização para este tipo de crimes e isso também conduz a dar uma grande prioridade ao combate.

Também há um aumento do discurso que liga a imigração à criminalidade.

Não podemos confundir o tráfico de seres humanos com a imigração irregular ou auxílio à imigração irregular, são dois crimes completamente diferentes. Não existe nenhuma ligação entre aumento de pressão migratória e aumento de criminalidade. Essa correlação, que muitos querem cavalgar, não existe. Esse discurso é muito binário, muito simplista, mas muito fraturante.

Com o aumento desse discurso, não é precisamente o pior momento para a falha na resposta que tem havido por parte da AIMA [Agência para a Integração, Migrações e Asilo]?

É um facto que a AIMA não foi dotada dos recursos humanos e também tecnológicos que seriam necessários para dar uma resposta célere à quantidade de pedidos de regularização.

Não há um problema de modelo?

Para mim, é exclusivamente um problema de recursos. Essa resposta tem de ser sempre célere, porque a documentação das pessoas é absolutamente essencial. As pessoas muitas vezes ficam como presas, porque não podem exercer nem sequer o mais elementar direito. Era como se não me atribuíssem agora o cartão de cidadão, também não conseguia fazer muita coisa na minha vida. Tem de haver uma resposta muito rápida porque as pessoas ficam num limbo jurídico e numa situação de vulnerabilidade. Precisamos das migrações internacionais como do pão para a boca e, portanto, temos de ter a capacidade de não gerar na sociedade sentimentos anti-imigração.

Foi desastrosa a extinção do SEF?

Isto não tem nada a ver com a extinção do SEF, que era uma força policial de uma natureza muito peculiar, que não tem paralelo em nenhum país da Europa. Na Europa, as questões administrativas das migrações não estão nas polícias de controlo de fronteiras. O SEF concentrava aquilo que em muitos países está em três estruturas diferentes. Retirar a regularidade migratória, ou seja, a parte documental de um serviço policial era importante no sentido de não institucionalizar a ideia de que a imigração é um assunto de polícia.

A criação da nova Unidade de Estrangeiros e Fronteiras na PSP, que foi anunciada pelo Governo, pode voltar a dar essa tónica policial?

O facto de se criar serviços policiais especializados para estrangeiros é uma forma de institucionalização desta ideia ou desta perceção de que a imigração, os estrangeiros são uma ameaça, esta correlação muito simplista.

Como ex-ministra da Administração Interna, considera justa a reivindicação das forças de segurança no que diz respeito ao subsídio de risco?

As forças de segurança sempre tiveram um subsídio que corresponde a 20% do seu salário, precisamente para cobrir a penosidade acrescida ou o risco acrescido da profissão, a par de outros subsídios. A verdade é que as nossas polícias são mal remuneradas e é preciso refletir na sua remuneração e tornar esta função, que é absolutamente essencial ao funcionamento do Estado, mais atrativa, mais justamente remunerada.

Ações de protesto como as supostas falsas baixas médicas estão de acordo com o que deve ser a atuação de um agente de segurança?

Não, há excessos que não são benéficos até para a causa das próprias forças de segurança.

E esses excessos estão relacionados com ligações a grupos de extrema-direita, que têm influenciado algumas dessas ações da Polícia?

Sim, com elevada probabilidade existe essa conexão. Estes movimentos inorgânicos são muito problemáticos e também potencialmente corrosivos de um outro pilar fundamental do funcionamento do nosso estado, que é a segurança.

Foi ministra e também foi deputada durante sete anos e deixou o Governo depois de uma intervenção vigorosa do presidente da República. Considera que Marcelo Rebelo de Sousa tem contribuído para a estabilidade política ou atrapalhou nalgum momento essa estabilidade?

Vou morrer sempre com esta perceção que se criou de que o sr. presidente da República é que me demitiu. Muito antes do discurso do sr. presidente já eu tinha pedido a minha demissão. O sr. presidente, nos últimos tempos de forma mais acentuada, não tem sido propriamente um garante da estabilidade, isso é público e notório. Através das suas múltiplas intervenções públicas, ultrapassa muito o seu papel de alto magistrado da nação, que deve falar quando é verdadeiramente necessário, e muitas das suas intervenções geram instabilidade. É como uma chuva miudinha, vai-se acumulando.

* Constança Urbano nasceu em Coimbra e cursou Direito, a área em que fez carreira académica

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