Miguel
Guedes – Jornal de Notícias, opinião
Não
é tanto o que o poderoso trabalho de investigação do Consórcio Internacional de
Jornalistas revela que me causa surpresa. O mais surpreendente é como o Mundo
parece acordar para uma realidade global mais do que velha e usada, até ao
desgaste, florescimento e queda, por parte significativa das maiores empresas
mundiais que bem conhecemos pelo nome próprio. O que me espanta é a ilusão. O
fascínio poderia entregar-se ao regaço pelo ajuste de contas, pelo grito de
revolta dos oprimidos ou por um perfil de exigência que se faz tarde.
Infelizmente, há algo que parece sobrepor-se: a surpresa pelos factos, uma
espécie de duas letras que coabitam em interjeição num ah prolongado pela
consoante. Como se não fosse assim há décadas. É nestes momentos em que a surpresa
nos desilude porque não se percebe o carácter da excitação. Qual o espanto com
os "Panama Papers" (PP)? Ao alcance de barco, avião ou pensamento, a
Madeira aqui tão perto.
Os
próximos dias tratarão de clarificar a percentagem de "lusitanismo"
nos PP. Se a Mossack Fonseca tem nome português que não seja só um
prolongamento do nome de família da antiga série do Gato Fedorento. Os PP são
apenas uma árvore miúda que cresceu em floresta cerrada: contam-se cerca de uma
centena de paraísos fiscais legais. Não será por acaso que os projectos do BE
sobre o enriquecimento ilícito, a zona franca da Madeira ou sobre a
obrigatoriedade de relatoriamento das transferências para offshores foram
sempre olhados com indiferença ou negação. Até que se esgotem ovos e iogurtes
nas grandes superfícies.
Consequências.
O Parlamento islandês foi rodeado por 10 mil pessoas, vidros pintados a ovos e
iogurte. O primeiro-ministro islandês pede a demissão, sendo evidente que sua
"morte política" já acontecera ao vivo e a cores numa entrevista de
queixo caído. Parentesco. Quase em simultâneo, perante a ausência de Rui Rio,
Passos Coelho acendia uma fogueirinha no enregelado Congresso do partido em
Espinho, lançando Maria Luís Albuquerque na corrida para a sua sucessão
interna. Com as devidas distâncias, não há qualquer ilegalidade primordial nos
offshores ou na Arrow Global: o contexto que os aproxima é a ausência de
vergonha.
Vamos
até ao fim, mesmo? Deseja-se a ocidentalização dos PP e o fim da sua
"selectividade". Apontar à Rússia, Irão, Paquistão ou Coreia do Norte
é deixar as potências da OCDE a salvo. E não podemos esquecer que a maioria das
pequenas ilhas de paraísos fiscais são meras dependências de forças como os
Estados Unidos, Reino Unido ou Suíça. Até agora, quase todos - União Europeia,
inclusive - coabitaram com os offshores globais perante a indiferença. Bernie
Sanders já se levantava contra o "Panama Free Trade Deal" em 2011.
Mas quando David Cameron é agora confrontado com o envolvimento da sua família,
responde com o seu não envolvimento pessoal. Erro crasso. "É tudo o que
tenho", diz ele. "Para dizer", acrescento.
Sem comentários:
Enviar um comentário