Pedro
Ivo Carvalho – Jornal de Notícias, opinião
O
que de pior pode acontecer na forma como olhamos para o escândalo dos
"Documentos do Panamá" é a tentação de acharmos que nada daquilo nos
diz respeito. Que não há, nos mais de 11 milhões de papéis investigados por um
consórcio internacional de jornalistas, uma revelação de que já não
suspeitássemos. Não nos iludamos: o problema é nosso. Ainda que a estupefação
inicial vá dando lugar à condescendência. Porque, bem vistas as coisas, está na
natureza dos ricos sem escrúpulos, dos políticos corruptos e dos criminosos de
primeira linha esconderem as fortunas e fugirem aos impostos. Porque a
discussão sobre o fim das offshore é tão pertinente quão cansativa. Porque a
origem do mal está identificada há tempo suficiente para já o terem extirpado.
Houvesse vontade. Porque ninguém minimamente informado tem a ingenuidade de
pensar que este abalo no alto-mar da finança vai provocar um tsunami de larga
escala que regenera tudo à sua passagem.
Ainda
assim, o problema é nosso. O problema é dos que vivem nos mais de 200 países ou
territórios que os clientes da Mossack Fonseca usaram como morada para
alimentar um esquema internacional de sem-vergonhice com sede no Panamá. Apenas
um dos 60 refúgios fiscais que a globalização ajudou a florescer. A mesma
globalização que, paradoxalmente, permite que o capital e os bens de 1% dos
mais ricos (cuja fortuna supera a de todos os restantes) possam circular
livremente sob o anonimato fiscal, mas que não aplica a mesma benesse aos
restantes 99%.
Sim,
o problema é nosso. Aquele dinheiro que não pagou impostos podia ser gasto nos
nossos hospitais, nas nossas escolas e nos nossos tribunais. Aquele dinheiro
que não pagou impostos é o mesmo que, sob a forma de branqueamento, ocultação
de operações financeiras e demais expedientes, levou à ruína do BES, do BPP e
do BPN. Pagos por quem nós sabemos. Aquele dinheiro esteve na génese da
"Operação Furacão" e "Monte Branco". Foi, enfim, esse mesmo
dinheiro que serviu para pagar "comissões" da venda dos submarinos a
Portugal. O problema é nosso. E continuará a ser.
Até
pode haver um antes e um depois dos "Documentos do Panamá", mas
jamais haverá unanimidade entre países para acabar com os paraísos fiscais.
Porque a lógica em que funcionam é a da selva: se há um predador que desiste,
há logo outro que toma o seu lugar. Não existe espírito de manada. Além do
mais, as offshore só respiram porque o oxigénio é fornecido por estados
soberanos. Alguns do tamanho dos Estados Unidos da América, da Rússia e do
Reino Unido.
Não,
não vamos acabar com esta pornografia fiscal. Mas se expusermos os vícios e
malfeitorias destas personagens, e as obrigarmos a pagar alguns milhões em
falta, estaremos a dificultar-lhes um pouco mais a vida. É curto? É. Mas é o
suficiente para ajudar os 99% que pagam impostos a conviver melhor com as suas
obrigações.
*Editor-executivo-adjunto
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