Apoiando-se
em Marx, Lacan e Ernesto Laclau, pesquisador grego examina movimento do
capitalismo para reduzir política a teatro comandado por medo, consumismo
fútil, endividamento e controle social
Yannis
Stavrakakis, entrevistado por Julia Goldenberg, em Pagina12 – Outras Palavras - Tradução: Inês
Castilho
A
cubana Dazra Novak escreve em seu último romance que “a democracia é um bálsamo
vencido”; por outro lado Frank Underwood [personagem do seriado House of
Cards], quando assume a presidência dos Estados Unidos, sentencia olhando para
a câmara que a democracia está supervalorizada. Em extremos opostos, e por
leituras contrárias, ambos suspeitam das falsas pretensões desta forma de
governo. No mesmo sentido, a partir de uma perspectiva teórica, Yannis
Stavrakakis retoma o conceito de “pós-democracia” – que surge na última década
na sociologia e na teoria política – para referir-se a um funcionamento
superficial dos mecanismos democráticos, acompanhado por uma queda da
participação popular e uma forte centralidade do mercado e da mídia. Como
indica Stravakakis, no processo pelo qual a política se apropria do Estado e
toma a forma de um “estatismo a favor da mercantilização”, isto é, no qual todo
o aparato estatal é colocado a serviço do mercado.
Stavrakakis
estudou ciência política em Atenas e análise do discurso na Universidade de
Essex, na Inglaterra, onde concluiu seu doutorado sob a supervisão de Ernesto
Laclau. Trabalhou nas universidades de Essex e Nottingham. Atualmente é professor
de análise do discurso político na Universidade Aristóteles, de Tessalônica, na
Grécia. Entre suas publicações figuram Lara e o político (Prometeu,
2007) e A esquerda lacaniana (Fundo de Cultura Econômica, 2010). É o
principal pesquisador do projeto de investigação Populismus.
Para
o cientista grego, a dívida pública e o predomínio das forças do mercado na
política transformam as instituições e os laços sociais e substituem a
soberania popular pela soberania do mercado.
Você
retoma o conceito de “pós-democracia” como categoria de análise vigente. De
acordo com essa perspectiva, como é possível reativar os mecanismos
democráticos?
O
termo “pós-democracia” surge na última década na sociologia e na teoria
política para compreender conceitualmente e marcar criticamente as patologias
contemporâneas da democracia liberal, sobretudo em relação às condições que o
capitalismo tardio estabelece. Nesse tipo de regime, o aspecto formal das
instituições democráticas permanece intacto: por exemplo, as eleições se
desenvolvem normalmente para a transição de um governo a outro.
Ainda
assim, o debate eleitoral transforma-se num espetáculo controlado, manipulado
por especialistas e regulado pelos meios de comunicação dominantes, que
selecionam os temas a ser tratados. A cidadania fica reduzida a um papel
passivo. E quando se tenta realizar uma verdadeira mudança, (como na Grécia, em
2015), os governos se dão conta de que o alcance dos seus movimentos fica muito
restrito por instituições supranacionais supostamente independentes (o FMI, o
Banco Mundial ou o Banco Central Europeu, por exemplo).
Nesse
sentido, a política em tempos pós-democráticos é conduzida pela interação entre
os governos eleitos e as instituições de elite, assim como pelos organismos que
representam, predominantemente, os interesses mercantis. Esse predomínio das
forças do mercado na política não é considerado escandaloso, como foi no
passado. Algo que antes devia ser camuflado de alguma forma, agora de nenhuma
maneira de esconde. Isso é assumido abertamente e, na verdade, as instituições
públicas estão subordinadas a essa dinâmica.
A
nova gestão pública, nesse sentido, buscou reformar as instituições –
hospitais, universidades etc. – segundo as tendências do setor privado. Por
isso, pós-democracia significa “democracia sem demos”, como indicou Jacques
Rancière, em que o povo desaparece da cena política – seu papel na tomada
de decisões é substituído por uma aristocracia tecnocrática e a soberania
popular, pela soberania do mercado.
Em
outras palavras, o “povo” é registrado na esfera política como “população”, um
conjunto numérico de individualidades a ser administrado e disciplinado
biopoliticamente. Quando as resistências emergem, quando as novas
subjetividades democráticas e populares se formulam, suas demandas são
denunciadas e desacreditadas sob a etiqueta de um “populismo” perigoso e
irresponsável. Se a defesa das instituições democráticas e dos interesses
populares leva hoje o nome de populismo, então talvez o populismo precise ser
assumido e canalizado em direções progressistas.
Pode-se
traçar uma delimitação geopolítica de acordo com esses conceitos?
O
termo “pós-democracia” foi formulado por Collin Crouch e outros pesquisadores,
a partir da experiência europeia. Não há dúvidas, contudo, de que captura uma
dinâmica glogal, visível em diversos países e regiões. É por isso que se
verifica tal amplitude no uso de “pós-democracia” e “pós-política”. Suficientemente
flexíveis desde seu início, esses conceitos são empregados cada vez mais para
descrever fenômenos políticos em regiões diversas do mundo, fora do contexto da
Europa Ocidental, onde a terminologia se originou.
Ao
mesmo tempo, a crise global que começou em 2008 e teve como foco especialmente
a Europa revelou – por meio da implementação de certas medidas draconianas de
“austeridade” – um novo aprofundamento da orientação pós-democática. Hoje a
Europa parece estar diante de um novo desafio. Como se pode avaliar o
estabelecimento e a consolidação – por meio da crueldade – de uma sociedade de
dívida neoliberal? Isso é sinal de um aprofundamento da pós-democracia, ou
antes significa uma passagem para além da pós-democracia? Se for assim em que,
exatamente, ela se converteu?
Ainda
que não existam respostas conclusivas, as questões estão postas. Para
compreender bem nossa situação, é necessário levar em conta que o
neoliberalismo alemão não deve ser confundido com o laissez-faire, o
resultado de uma ordem natural espontânea (mão invisível do mercado), mas
antes, como Foucault destacou, com uma vigilância permanente, atividade e
intervenção. Esta intervenção é de natureza particular, muito diferente do
Estado de Bem-Estar Social, por exemplo. Seu objetivo – frequentemente com
imensa brutalidade – é estabelecer o marco para uma possível economia de
mercado que intervém na população e reforma o próprio laço social.
Como
alguns comentaristas não assinalaram, este é o estatismo sem Estado, estatismo
a favor da mercantilização, acompanhado pela liquidação de toda a regulação do
mercado e as relações trabalhistas etc. Também aqui, não é um movimento
particular da Europa. Por exemplo, a América Latina está agora se aproximando
desse modelo. O Chile é uma amostra, viveu a imposição brutal de um sistema
semelhante desde 1970. Estas são dinâmicas globais e só podem ser abordadas em
plano global.
Isso
significa que esse Estado se reduz à administração da dívida?
Desde
a Grécia antiga, a dívida foi um instrumento de dominação e exploração, sempre
muito brutal. Não devemos esquecer que o estabelecimento da democracia de
Atenas está relacionado ao cancelamento da servidão da dívida, com Solon de
Seisachteia. Sabemos também que a dívida funciona para estabelecer e reproduzir
relações de dependência colonial.
Em
muitas conjunturas históricas, as relações de dívida estruturam o laço social,
sobredeterminando os modos particulares de dominação econômica e política.
Quando isso acontece – e acontece porque a dívida funciona simultaneamente como
força econômica, política e moral – é porque produz e condiciona tipos
particulares de subjetividades individuais e coletivas, manipulando a dinâmica
psicossocial da culpa, da vergonha e do sadismo. É nesses casos que falamos de
“sociedades de dívida”.
Em
décadas recentes, por exemplo, o pêndulo entre os dois espíritos do capitalismo
típicos da modernidade – o primeiro, espírito weberiano do ascetismo associado
a uma “sociedade da proibição”, e o segundo o espírito de consumo, associado a
uma “sociedade de desfrute ordenado” – tomou forma marcada por uma
dialética entre o estímulo ao crédito e a estigmatização da dívida. No caso da
Grécia contemporânea – que não é um caso isolado – vimos como as forças
institucionais, por sua vez, promovem todas essas opções.
No
princípio, antes da crise, a acumulação da dívida era permitida e inclusive se
propagou, no marco do “espírito consumista” do capitalismo; logo, as mesmas
instituições elevaram a dívida a níveis patológicos, para que fosse castigada
com formas de servidão pós-modernas. Essas lógicas foram aplicadas tanto em
nível subjetivo como em nível estatal. Em qualquer caso, a acumulação da
dívida, assim como o castigo ao endividamento, constituem momentos
contraditórios do mesmo mecanismo, e deixam a construção subjetiva somente a
serviço da hierarquia social. Então, quando o laço entre os dois falha, o
cancelamento e o perdão da dívida são inclusive chamados a sustentar a ordem
social.
Para
voltar à Grécia, muitos anos depois da crise a troika também aceitou processos
de reestruturação da dívida. Este cancelamento (parcial) da dívida falhou na
hora de fazer diferença real na viabilidade, a longo prazo, da dívida ou na
situação atual do povo grego. Contudo, as promessas de uma gestão mais
sustentável da dívida ainda são usadas como chamariz para o futuro. Esta é a
razão pela qual a experiência argentina continua sendo tão importante: porque a
reestruturação da dívida não era suporte publicitário ou concessão parcial
oferecida em troca da continuidade das relações de dependência. Ao contrário,
foi maciça, e foi imposta por um governo democrático-popular afirmando sua
independência.
Por
que você sustenta que é necessário estudar as políticas desenvolvidas na
América do Sul?
Justamente
porque essas políticas foram inicialmente introduzidas na América do Sul, as
primeiras resistências foram também articuladas nessa região. Assim, o fim
da ditadura de Pinochet no Chile, o colapso do Pacto de Punto
Fijo na Venezuela e o fracasso do neoliberalismo patrocinado pelo FMI na
Argentina confluem numa série de projetos políticos que redirecionaram o
equilíbrio do poder para a participação popular no processo de tomada de
decisões, facilitando a incorporação socioeconômica dos setores empobrecidos e
regulando os efeitos da globalização neoliberal.
Alguns
comentaristas qualificaram essa tendência como “progressista”, de “esquerda” ou
“populismo inclusivo”, com o objetivo de distinguir seu perfil e suas implicações
políticas da extrema direita ou do “populismo excludente”, próprio da
experiência europeia.
Minha
opinião sobre o assunto é que a maioria dos movimentos de extrema direita nunca
foram, estritamente falando, populistas, e não deveriam ser descritos como
tais: seu principal ponto de referência é a “nação” – não num sentido
anticolonial, mas num sentido étnico, inclusive racista do termo. Seu principal
adversário não é o 1% dos ricos mundiais, mas sim o outro étnico: o refugiado,
o imigrante etc. De todo modo, a distinção entre a direita, o populismo
excludente (o modelo europeu) e a esquerda, o populismo inclusivo (o modelo
sul-americano), foi um primeiro passo, importante, no registro do potencial
democrático das demandas populares e dos movimentos e partidos que os
representam. Interessante também é que a crise econômica europeia e os efeitos
de sua gestão neoliberal geraram um deslocamento no sistema partidário
tradicional de países como Grécia, Espanha e Portugal, tornando possível a
emergência de outros partidos.
Duas
situações se apresentam: a primeira, em que países europeus – especialmente os
que integram a zona do euro – estão mais limitados em suas opções devido ao
avanço da integração transnacional, algo que limita severamente seu poder de
negociação e suas chances de desafiar minimamente a hegemonia liberal
paneuropeia (por exemplo, a transformação do rotundo NÃO do referendo grego de
julho de 2015, num novo memorando de acordo com a troika).
Creio
que só uma tendência igualitária que abarcasse grande variedade de países
europeus poderia reverter essa situação. Dito de outro modo, unicamente se a
Espanha e outros países seguirem a Grécia e Portugal haverá algum tipo de
esperança. O segundo desafio é que esses projetos devem refletir sobre as limitações
de projetos similares na América do Sul, os quais deviam encarar as recentes
derrotas eleitorais, como nos casos da Argentina e da Venezuela.
É
possível aprender com seus feitos e também com seus fracassos, mais evidentes
no caso venezuelano? Com sua incapacidade de introduzir um modelo econômico
sustentável? Com seu fracasso na hora de substituir lideranças carismáticas
pela crescente participação das instituições? Com sua dificuldade para cultivar
um novo ethos democrático político e tipos de desejo e consumo capazes de
reduzir nossa dependência da globalização neoliberal?
Então,
seria possível pensar uma saída regional também para a América do Sul?
Este
é um enorme desafio para todas as forças que se opõem ao neoliberalismo
pos-democrático. Evidentemente, não devemos esquecer que o problema – a falta
de coordenação transnacional – sempre esteve presente e é obviamente muito
difícil de enfrentá-lo. Do mesmo modo, um “internacionalismo” baseado na ONU
tem demonstrado frequentemente ser impotente e o problema da dívida é um bom
exemplo disso. De alguma maneira, as forças pós-democráticas institucionais
podem mover-se com eficiência entre a orquestração da ação transnacional e, ao
mesmo tempo, a manipulação das sensibilidades nacionais, quando for necessário.
A
velha estratégia colonialista de “dividir para reinar” é sempre útil. Em
contraste, a longa história dos movimentos de resistência demonstrou que é
extremamente difícil articular o pensamento e a ação simultânea em plano
nacional e internacional. Sem dúvida, algumas medidas tais como a aprovação na
ONU do marco legal para os processos de reestruturação da dívida soberana –
impulsionada pela Argentina – têm impacto em qualquer parte do mundo.
Que
consequências traz a neutralização do antagonismo político próprio da
pós-democracia?
A
orientação pós-democrática marginaliza o antagonismo político, priorizando uma
perspectiva tecnocrática das questões em jogo e fingindo uma falta de
alternativa. O mais importante não é seguir as prescrições universais das
políticas neoliberais, mas sim desfrutar delas! Sem dúvida, os efeitos
secundários deste tipo de políticas – geralmente impostas a pretexto de
reduzir uma dívida artificialmente inflada – incluem desemprego maciço; queda
dos salários, das aposentadorias e dos programas sociais; perda de direitos
sociais e trabalhistas; uma espiral descendente da mobilidade social; a
expulsão dos cidadãos dos processos tomada de decisão. Em seguida, surgem
necessariamente a indignação e o protesto. A necessidade de questionar e
criticar, junto com a necessidade de limitar a concentração do poder em mãos
das elites irresponsáveis.
John
Keane falou sobre o que chama de “democracias monitoradas”, que é um uso
pragmático dos procedimentos democráticos, baseados numa pressão pública para
combater a concentração de um poder inexplicável. Aqui, os mecanismos de
representação da sociedade civil combinam-se com formas inovadoras de
monitoramento público do exercício do poder e do controle da corrupção.
Sem
dúvida, isso não deve confundir nossas práticas democráticas e convertê-las num
marco meramente defensivo. Se a democracia está reduzida a uma variedade de
monitoramentos e mecanismos de controle, que lidam com um poder visto como
ilegítimo, então a “soberania popular”, base da nossa tradição democrática,
será perdida para sempre ao invés de ser rejuvenescida. Meu medo é que a última
implicação do argumento da “democracia monitorada” poder ser a legitimação
indireta de uma teoria elitista, inclusive da volta ao liberalismo oligárquico.
Nisto
devemos ser claros: a democracia supõe um autogoverno no nível mais básico:
trata-se de uma demanda pela igualdade de direitos e de participação na tomada
de decisões que envolve a totalidade dos cidadãos. Sem dúvida, não podemos
esperar que os cidadãos estejam sempre alertas, dispostos a dedicar seu tempo e
sua energia em debater e decidir sobre todas as coisas. É por isso que os
gregos antigos estabeleceram um conjunto de prêmios para a participação e um
conjunto de castigos para quem não participava da vida democrática pública.
Sabemos,
além disso, por Maquiavel, que uma dificuldade aqui tem a ver com o desejo: em
oposição ao desejo dos ricos e poderosos, que é um desejo de “mais e mais”, o
desejo do povo, dos marginalizados e oprimidos é um desejo definido
negativamente. O povo primeiro deseja “não ser dominado”; certamente deseja não
sê-lo de maneira brutal, antidemocrática e pouco digna. É por isso que as lutas
populares enfrentam dificuldades no estabelecimento de suas metas e,
paradoxalmente, tendem a aceitar os objetivos de seus adversários. Quer dizer,
quando um povo previamente empobrecido e excluído recupera, por exemplo, um
status de classe média, pode acontecer que chegue a negar sua situação passada
e comece a comportar-se de maneira hierárquica, elitista e excludente.
Em
outra entrevista você assinalou que os regimes políticos europeus são débeis
porque o mercado ocupa um lugar central, mas como nenhuma pessoa pode
apaixonar-se pelo mercado, isso fica facilmente debilitado. Sem dúvida, os
vaivéns da economia mostram que o mercado também se apaixona.
Se
nos concentramos nas regiões que mencionamos, Europa (com sua crise econômica
centrada especialmente no sul) e América do Sul, podemos dizer que vivem uma
trajetória semelhante, mas com uma disposição distinta das etapas históricas. A
Europa, por exemplo, enfrenta uma crise parecida com a que levou a Argentina ao
calote. Com o domínio do ordoliberalismo alemão, baseado na chantagem e na
extorsão, num “consentimento” forçado, no qual a dívida funciona como o
instrumento principal de disciplina subjetiva e coletiva.
Enquanto
que na Argentina, logo depois de passar pelo colapso de um sistema construído
em torno da dívida e da coerção, e tendo logo reconstruído sua economia e a
democracia, atualmente parecem haver esquecido as dificuldades do passado e
voltado a abraçar as promessas de um futuro dominado por um consumo neoliberal
imaginário. Isso significa que muitos setores na Argentina optaram por um
retorno à “normalidade”, uma volta ao capitalismo tardio. Não há nada de
extremamente fora do comum em tudo isso. Como sabemos graças a Jacques Lacan,
as pessoas desejam o que lhes falta. O objeto que cumpre essa função não é
eterno nem fixo, está histórica e culturalmente determinado. O mais importante,
também pode mudar da esfera política à esfera privada. Em seu livro Circunstancias
cambiantes, Albert Hirschman demonstrou como nossa vida pode seguir um ritmo
circular, passando por períodos de uma intensa participação pública inspirada
em ideais altruístas, ou por uma despolitização extrema nos períodos em que o
interesse individual e a realização pessoal têm prioridade.
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