quarta-feira, 6 de abril de 2016

O TRISTE ESPETÁCULO DA “DEMOCRACIA SEM DEMOS”



Apoiando-se em Marx, Lacan e Ernesto Laclau, pesquisador grego examina movimento do capitalismo para reduzir política a teatro comandado por medo, consumismo fútil, endividamento e controle social

Yannis Stavrakakis, entrevistado por Julia Goldenberg, em Pagina12 – Outras Palavras - Tradução: Inês Castilho

A cubana Dazra Novak escreve em seu último romance que “a democracia é um bálsamo vencido”; por outro lado Frank Underwood [personagem do seriado House of Cards], quando assume a presidência dos Estados Unidos, sentencia olhando para a câmara que a democracia está supervalorizada. Em extremos opostos, e por leituras contrárias, ambos suspeitam das falsas pretensões desta forma de governo. No mesmo sentido, a partir de uma perspectiva teórica, Yannis Stavrakakis retoma o conceito de “pós-democracia” – que surge na última década na sociologia e na teoria política – para referir-se a um funcionamento superficial dos mecanismos democráticos, acompanhado por uma queda da participação popular e uma forte centralidade do mercado e da mídia. Como indica Stravakakis, no processo pelo qual a política se apropria do Estado e toma a forma de um “estatismo a favor da mercantilização”, isto é, no qual todo o aparato estatal é colocado a serviço do mercado.

Stavrakakis estudou ciência política em Atenas e análise do discurso na Universidade de Essex, na Inglaterra, onde concluiu seu doutorado sob a supervisão de Ernesto Laclau. Trabalhou nas universidades de Essex e Nottingham. Atualmente é professor de análise do discurso político na Universidade Aristóteles, de Tessalônica, na Grécia. Entre suas publicações figuram Lara e o político (Prometeu, 2007) e A esquerda lacaniana (Fundo de Cultura Econômica, 2010). É o principal pesquisador do projeto de investigação Populismus.

Para o cientista grego, a dívida pública e o predomínio das forças do mercado na política transformam as instituições e os laços sociais e substituem a soberania popular pela soberania do mercado.

Você retoma o conceito de “pós-democracia” como categoria de análise vigente. De acordo com essa perspectiva, como é possível reativar os mecanismos democráticos?

O termo “pós-democracia” surge na última década na sociologia e na teoria política para compreender conceitualmente e marcar criticamente as patologias contemporâneas da democracia liberal, sobretudo em relação às condições que o capitalismo tardio estabelece. Nesse tipo de regime, o aspecto formal das instituições democráticas permanece intacto: por exemplo, as eleições se desenvolvem normalmente para a transição de um governo a outro.

Ainda assim, o debate eleitoral transforma-se num espetáculo controlado, manipulado por especialistas e regulado pelos meios de comunicação dominantes, que selecionam os temas a ser tratados. A cidadania fica reduzida a um papel passivo. E quando se tenta realizar uma verdadeira mudança, (como na Grécia, em 2015), os governos se dão conta de que o alcance dos seus movimentos fica muito restrito por instituições supranacionais supostamente independentes (o FMI, o Banco Mundial ou o Banco Central Europeu, por exemplo).

Nesse sentido, a política em tempos pós-democráticos é conduzida pela interação entre os governos eleitos e as instituições de elite, assim como pelos organismos que representam, predominantemente, os interesses mercantis. Esse predomínio das forças do mercado na política não é considerado escandaloso, como foi no passado. Algo que antes devia ser camuflado de alguma forma, agora de nenhuma maneira de esconde. Isso é assumido abertamente e, na verdade, as instituições públicas estão subordinadas a essa dinâmica.

A nova gestão pública, nesse sentido, buscou reformar as instituições – hospitais, universidades etc. – segundo as tendências do setor privado. Por isso, pós-democracia significa “democracia sem demos”, como indicou Jacques Rancière, em que o povo desaparece da cena política – seu papel na tomada de decisões é substituído por uma aristocracia tecnocrática e a soberania popular, pela soberania do mercado.

Em outras palavras, o “povo” é registrado na esfera política como “população”, um conjunto numérico de individualidades a ser administrado e disciplinado biopoliticamente. Quando as resistências emergem, quando as novas subjetividades democráticas e populares se formulam, suas demandas são denunciadas e desacreditadas sob a etiqueta de um “populismo” perigoso e irresponsável. Se a defesa das instituições democráticas e dos interesses populares leva hoje o nome de populismo, então talvez o populismo precise ser assumido e canalizado em direções progressistas.

Pode-se traçar uma delimitação geopolítica de acordo com esses conceitos?

O termo “pós-democracia” foi formulado por Collin Crouch e outros pesquisadores, a partir da experiência europeia. Não há dúvidas, contudo, de que captura uma dinâmica glogal, visível em diversos países e regiões. É por isso que se verifica tal amplitude no uso de “pós-democracia” e “pós-política”. Suficientemente flexíveis desde seu início, esses conceitos são empregados cada vez mais para descrever fenômenos políticos em regiões diversas do mundo, fora do contexto da Europa Ocidental, onde a terminologia se originou.

Ao mesmo tempo, a crise global que começou em 2008 e teve como foco especialmente a Europa revelou – por meio da implementação de certas medidas draconianas de “austeridade” – um novo aprofundamento da orientação pós-democática. Hoje a Europa parece estar diante de um novo desafio. Como se pode avaliar o estabelecimento e a consolidação – por meio da crueldade – de uma sociedade de dívida neoliberal? Isso é sinal de um aprofundamento da pós-democracia, ou antes significa uma passagem para além da pós-democracia? Se for assim em que, exatamente, ela se converteu?

Ainda que não existam respostas conclusivas, as questões estão postas. Para compreender bem nossa situação, é necessário levar em conta que o neoliberalismo alemão não deve ser confundido com o laissez-faire, o resultado de uma ordem natural espontânea (mão invisível do mercado), mas antes, como Foucault destacou, com uma vigilância permanente, atividade e intervenção. Esta intervenção é de natureza particular, muito diferente do Estado de Bem-Estar Social, por exemplo. Seu objetivo – frequentemente com imensa brutalidade – é estabelecer o marco para uma possível economia de mercado que intervém na população e reforma o próprio laço social.

Como alguns comentaristas não assinalaram, este é o estatismo sem Estado, estatismo a favor da mercantilização, acompanhado pela liquidação de toda a regulação do mercado e as relações trabalhistas etc. Também aqui, não é um movimento particular da Europa. Por exemplo, a América Latina está agora se aproximando desse modelo. O Chile é uma amostra, viveu a imposição brutal de um sistema semelhante desde 1970. Estas são dinâmicas globais e só podem ser abordadas em plano global.

Isso significa que esse Estado se reduz à administração da dívida?

Desde a Grécia antiga, a dívida foi um instrumento de dominação e exploração, sempre muito brutal. Não devemos esquecer que o estabelecimento da democracia de Atenas está relacionado ao cancelamento da servidão da dívida, com Solon de Seisachteia. Sabemos também que a dívida funciona para estabelecer e reproduzir relações de dependência colonial.

Em muitas conjunturas históricas, as relações de dívida estruturam o laço social, sobredeterminando os modos particulares de dominação econômica e política. Quando isso acontece – e acontece porque a dívida funciona simultaneamente como força econômica, política e moral – é porque produz e condiciona tipos particulares de subjetividades individuais e coletivas, manipulando a dinâmica psicossocial da culpa, da vergonha e do sadismo. É nesses casos que falamos de “sociedades de dívida”.

Em décadas recentes, por exemplo, o pêndulo entre os dois espíritos do capitalismo típicos da modernidade – o primeiro, espírito weberiano do ascetismo associado a uma “sociedade da proibição”, e o segundo o espírito de consumo, associado a uma “sociedade de desfrute ordenado” – tomou forma marcada por uma dialética entre o estímulo ao crédito e a estigmatização da dívida. No caso da Grécia contemporânea – que não é um caso isolado – vimos como as forças institucionais, por sua vez, promovem todas essas opções.

No princípio, antes da crise, a acumulação da dívida era permitida e inclusive se propagou, no marco do “espírito consumista” do capitalismo; logo, as mesmas instituições elevaram a dívida a níveis patológicos, para que fosse castigada com formas de servidão pós-modernas. Essas lógicas foram aplicadas tanto em nível subjetivo como em nível estatal. Em qualquer caso, a acumulação da dívida, assim como o castigo ao endividamento, constituem momentos contraditórios do mesmo mecanismo, e deixam a construção subjetiva somente a serviço da hierarquia social. Então, quando o laço entre os dois falha, o cancelamento e o perdão da dívida são inclusive chamados a sustentar a ordem social.

Para voltar à Grécia, muitos anos depois da crise a troika também aceitou processos de reestruturação da dívida. Este cancelamento (parcial) da dívida falhou na hora de fazer diferença real na viabilidade, a longo prazo, da dívida ou na situação atual do povo grego. Contudo, as promessas de uma gestão mais sustentável da dívida ainda são usadas como chamariz para o futuro. Esta é a razão pela qual a experiência argentina continua sendo tão importante: porque a reestruturação da dívida não era suporte publicitário ou concessão parcial oferecida em troca da continuidade das relações de dependência. Ao contrário, foi maciça, e foi imposta por um governo democrático-popular afirmando sua independência.

Por que você sustenta que é necessário estudar as políticas desenvolvidas na América do Sul?

Justamente porque essas políticas foram inicialmente introduzidas na América do Sul, as primeiras resistências foram também articuladas nessa região. Assim, o fim da ditadura de Pinochet no Chile, o colapso do Pacto de Punto Fijo na Venezuela e o fracasso do neoliberalismo patrocinado pelo FMI na Argentina confluem numa série de projetos políticos que redirecionaram o equilíbrio do poder para a participação popular no processo de tomada de decisões, facilitando a incorporação socioeconômica dos setores empobrecidos e regulando os efeitos da globalização neoliberal.

Alguns comentaristas qualificaram essa tendência como “progressista”, de “esquerda” ou “populismo inclusivo”, com o objetivo de distinguir seu perfil e suas implicações políticas da extrema direita ou do “populismo excludente”, próprio da experiência europeia.

Minha opinião sobre o assunto é que a maioria dos movimentos de extrema direita nunca foram, estritamente falando, populistas, e não deveriam ser descritos como tais: seu principal ponto de referência é a “nação” – não num sentido anticolonial, mas num sentido étnico, inclusive racista do termo. Seu principal adversário não é o 1% dos ricos mundiais, mas sim o outro étnico: o refugiado, o imigrante etc. De todo modo, a distinção entre a direita, o populismo excludente (o modelo europeu) e a esquerda, o populismo inclusivo (o modelo sul-americano), foi um primeiro passo, importante, no registro do potencial democrático das demandas populares e dos movimentos e partidos que os representam. Interessante também é que a crise econômica europeia e os efeitos de sua gestão neoliberal geraram um deslocamento no sistema partidário tradicional de países como Grécia, Espanha e Portugal, tornando possível a emergência de outros partidos.

Duas situações se apresentam: a primeira, em que países europeus – especialmente os que integram a zona do euro – estão mais limitados em suas opções devido ao avanço da integração transnacional, algo que limita severamente seu poder de negociação e suas chances de desafiar minimamente a hegemonia liberal paneuropeia (por exemplo, a transformação do rotundo NÃO do referendo grego de julho de 2015, num novo memorando de acordo com a troika).

Creio que só uma tendência igualitária que abarcasse grande variedade de países europeus poderia reverter essa situação. Dito de outro modo, unicamente se a Espanha e outros países seguirem a Grécia e Portugal haverá algum tipo de esperança. O segundo desafio é que esses projetos devem refletir sobre as limitações de projetos similares na América do Sul, os quais deviam encarar as recentes derrotas eleitorais, como nos casos da Argentina e da Venezuela.

É possível aprender com seus feitos e também com seus fracassos, mais evidentes no caso venezuelano? Com sua incapacidade de introduzir um modelo econômico sustentável? Com seu fracasso na hora de substituir lideranças carismáticas pela crescente participação das instituições? Com sua dificuldade para cultivar um novo ethos democrático político e tipos de desejo e consumo capazes de reduzir nossa dependência da globalização neoliberal?

Então, seria possível pensar uma saída regional também para a América do Sul?

Este é um enorme desafio para todas as forças que se opõem ao neoliberalismo pos-democrático. Evidentemente, não devemos esquecer que o problema – a falta de coordenação transnacional – sempre esteve presente e é obviamente muito difícil de enfrentá-lo. Do mesmo modo, um “internacionalismo” baseado na ONU tem demonstrado frequentemente ser impotente e o problema da dívida é um bom exemplo disso. De alguma maneira, as forças pós-democráticas institucionais podem mover-se com eficiência entre a orquestração da ação transnacional e, ao mesmo tempo, a manipulação das sensibilidades nacionais, quando for necessário.

A velha estratégia colonialista de “dividir para reinar” é sempre útil. Em contraste, a longa história dos movimentos de resistência demonstrou que é extremamente difícil articular o pensamento e a ação simultânea em plano nacional e internacional. Sem dúvida, algumas medidas tais como a aprovação na ONU do marco legal para os processos de reestruturação da dívida soberana – impulsionada pela Argentina – têm impacto em qualquer parte do mundo.

Que consequências traz a neutralização do antagonismo político próprio da pós-democracia?

A orientação pós-democrática marginaliza o antagonismo político, priorizando uma perspectiva tecnocrática das questões em jogo e fingindo uma falta de alternativa. O mais importante não é seguir as prescrições universais das políticas neoliberais, mas sim desfrutar delas! Sem dúvida, os efeitos secundários deste tipo de políticas – geralmente impostas a  pretexto de reduzir uma dívida artificialmente inflada – incluem desemprego maciço; queda dos salários, das aposentadorias e dos programas sociais; perda de direitos sociais e trabalhistas; uma espiral descendente da mobilidade social; a expulsão dos cidadãos dos processos tomada de decisão. Em seguida, surgem necessariamente a indignação e o protesto. A necessidade de questionar e criticar, junto com a necessidade de limitar a concentração do poder em mãos das elites irresponsáveis.

John Keane falou sobre o que chama de “democracias monitoradas”, que é um uso pragmático dos procedimentos democráticos, baseados numa pressão pública para combater a concentração de um poder inexplicável. Aqui, os mecanismos de representação da sociedade civil combinam-se com formas inovadoras de monitoramento público do exercício do poder e do controle da corrupção.

Sem dúvida, isso não deve confundir nossas práticas democráticas e convertê-las num marco meramente defensivo. Se a democracia está reduzida a uma variedade de monitoramentos e mecanismos de controle, que lidam com um poder visto como ilegítimo, então a “soberania popular”, base da nossa tradição democrática, será perdida para sempre ao invés de ser rejuvenescida. Meu medo é que a última implicação do argumento da “democracia monitorada” poder ser a legitimação indireta de uma teoria elitista, inclusive da volta ao liberalismo oligárquico.

Nisto devemos ser claros: a democracia supõe um autogoverno no nível mais básico: trata-se de uma demanda pela igualdade de direitos e de participação na tomada de decisões que envolve a totalidade dos cidadãos. Sem dúvida, não podemos esperar que os cidadãos estejam sempre alertas, dispostos a dedicar seu tempo e sua energia em debater e decidir sobre todas as coisas. É por isso que os gregos antigos estabeleceram um conjunto de prêmios para a participação e um conjunto de castigos para quem não participava da vida democrática pública.

Sabemos, além disso, por Maquiavel, que uma dificuldade aqui tem a ver com o desejo: em oposição ao desejo dos ricos e poderosos, que é um desejo de “mais e mais”, o desejo do povo, dos marginalizados e oprimidos é um desejo definido negativamente. O povo primeiro deseja “não ser dominado”; certamente deseja não sê-lo de maneira brutal, antidemocrática e pouco digna. É por isso que as lutas populares enfrentam dificuldades no estabelecimento de suas metas e, paradoxalmente, tendem a aceitar os objetivos de seus adversários. Quer dizer, quando um povo previamente empobrecido e excluído recupera, por exemplo, um status de classe média, pode acontecer que chegue a negar sua situação passada e comece a comportar-se de maneira hierárquica, elitista e excludente.

Em outra entrevista você assinalou que os regimes políticos europeus são débeis porque o mercado ocupa um lugar central, mas como nenhuma pessoa pode apaixonar-se pelo mercado, isso fica facilmente debilitado. Sem dúvida, os vaivéns da economia mostram que o mercado também se apaixona.

Se nos concentramos nas regiões que mencionamos, Europa (com sua crise econômica centrada especialmente no sul) e América do Sul, podemos dizer que vivem uma trajetória semelhante, mas com uma disposição distinta das etapas históricas. A Europa, por exemplo, enfrenta uma crise parecida com a que levou a Argentina ao calote. Com o domínio do ordoliberalismo alemão, baseado na chantagem e na extorsão, num “consentimento” forçado, no qual a dívida funciona como o instrumento principal de disciplina subjetiva e coletiva.

Enquanto que na Argentina, logo depois de passar pelo colapso de um sistema construído em torno da dívida e da coerção, e tendo logo reconstruído sua economia e a democracia, atualmente parecem haver esquecido as dificuldades do passado e voltado a abraçar as promessas de um futuro dominado por um consumo neoliberal imaginário. Isso significa que muitos setores na Argentina optaram por um retorno à “normalidade”, uma volta ao capitalismo tardio. Não há nada de extremamente fora do comum em tudo isso. Como sabemos graças a Jacques Lacan, as pessoas desejam o que lhes falta. O objeto que cumpre essa função não é eterno nem fixo, está histórica e culturalmente determinado. O mais importante, também pode mudar da esfera política à esfera privada. Em seu livro Circunstancias cambiantes, Albert Hirschman demonstrou como nossa vida pode seguir um ritmo circular, passando por períodos de uma intensa participação pública inspirada em ideais altruístas, ou por uma despolitização extrema nos períodos em que o interesse individual e a realização pessoal têm prioridade.

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