Teremos
de reinventar a participação política e construir, com a rica multiplicidade
das esquerdas, uma ideia futura de país – sob pena de ser engolidos por longa
noite de fascismo neoliberal
Alexandre
Pilati – Outras Palavras
Só
os muito incautos ou os muito mal intencionados não admitem que o que se passa
no Brasil, há pelo menos dois anos, é um processo golpista. Desde que o Senado
brasileiro aprovou o afastamento da presidenta eleita Dilma Rousseff, vários
episódios explicitaram ao país as verdadeiras razões do golpe impingido à
democracia nacional. Não vale a pena recapitular aqui tais episódios. Eles são
bizarros: de Frota no MEC a Jucá gravado, passando pela figura sinistra de um
Gilmar Mendes visitando na calada da noite o interino golpista ou pelo juiz
Sérgio Moro, desde o dia 17/4 acometido por uma estranha síndrome de avestruz.
Esses
e outros fatos já são largamente conhecidos do público pela repercussão que
tiveram nas redes sociais e mesmo na imprensa tradicional. Sabemos todos os
ingredientes verdadeiros do movimento que apeou (ao menos temporariamente)
Dilma e o PT do poder. De cabeça, é fácil levantar ao menos os principais, que
dinamizam a narrativa golpista: a grande pressão do capitalismo transnacional,
a decisiva interferência na geopolítica da América Latina protagonizada pelos
EUA, a intensa fabricação de consentimento antiesquerda pelo oligopólio da
mídia vendida, o legislativo corrupto e vendido aos interesses mais espúrios de
um capitalismo periférico, uma regressão conservadora dos costumes, o desespero
de uma máfia política que é composta por ratos que habitam os porões da Nova
República desde as primeiras eleições diretas depois da ditatura militar, o
conjunto significativo de erros e problemas dos governos dirigidos pela
coalizão de centro-esquerda nesses últimos anos.
Se
esse movimento precisava de prepostos, de vis rábulas do direito pactário,
encontrou-os especialmente em dois velhacos do poder brasileiro, representantes
do dinheiro grosso que decide os destinos do país, na falta de um plano nacional
e popular construído junto com a população. São eles: Michel Temer, um
ficha-suja que nem sequer pode se candidatar a uma eleição de vereador, e
Eduardo Cunha, nossa melhor expressão tupiniquim de mafioso entranhado no
Estado. Eis, pois, os protagonistas do golpe: os endinheirados do país e seus
títeres políticos, junto com uma massa irreflexiva de tendência fascista que
compõe o exército sonâmbulo da pequena burguesia brasileira, que mirando-se no
exemplo dos ricaços que admira faz da sua vida uma valsa entre os verbos
consumir e odiar.
Em
pinceladas rápidas, temos aí o retrato cômico-trágico de um golpe travestido de
“solução” de crise econômica política e institucional, capitaneada pelos de
cima, num clima de república de bananas.
O
resultado almejado pelo golpe, pelas ações do governo ilegítimo e temporário
que age como definitivo, é tomar o poder e reconduzir o país de modo cabal rumo
ao retrocesso em várias frentes da vida brasileira. Retrocesso econômico:
implantação radical da pauta neoliberal, que além de espúria porque vendida aos
interesses dos poderosos, é retrógrada pois não aponta para um esquema de
reindustrialização que sustente a médio prazo algum crescimento para o país.
Retrocesso político: salvação geral e irrestrita dos corruptos que sustentam,
na base da negociata semicolonial, uma democracia burguesa arreganhada aos
donos do capitalismo brasileiro, que é viciado em dinheiro público, além, é
claro, da aposta na insidiosa trama política da nova república. Retrocesso
social: também chamado de desagregação social, pautada na máxima do
“liberalismo” periférico de que o Estado tem de ser mínimo, mas deve ajudar
primeiro os que já têm ajuda, ou seja, nada de cotas, de bolsas, nada de saúde
e de educação públicas e de qualidade. Retrocesso humano: basta lembrar o que
desejam fazer os adeptos do Escola sem Partido, os que atacam a lei do aborto,
os que criminalizam movimentos sociais, as religiões de matriz africana, os que
acham que o índio deve ser convertido, apostam no criacionismo e julgam os gays
uma aberração da natureza.
Ora,
esse é o jeito ilegítimo, violento e conservador de a elite brasileira tentar
se recolocar social e politicamente nos quadros de uma transformação que o
capitalismo mundial vem sofrendo há alguns anos e à qual podemos chamar de “a
mais grave crise sistêmica desde 1929”. As crises reconfiguram posições
econômicas, rearticulam forças políticas, transformam e preparam o mundo
material para uma nova quadra histórica. Não podemos deixar de considerar isso.
Estamos em um novo limiar histórico, em termos locais e em termos globais. O
sistema-mundo espreguiça-se para um novo dia de exploração e mais valia. O
golpe de Estado perpetrado pela elite econômica brasileira é um arranjo de
reposicionamento nessa iminente nova etapa da história. Não podemos perder isso
de vista, senão veremos, nós que não lucramos com a crise, ainda mais constrito
o nosso lugar nesse alvorecer de nova fase da decadência do capitalismo. Se
perdemos essa noção, não conseguimos pensar no pós-capitalismo.
Há
para nós tarefas urgentes, imediatas, mas há também tarefas de longo prazo.
Resistir ao golpe é nossa tarefa urgente. Denunciar a cada oportunidade esse
movimento conservador e ilegítimo é nossa tarefa imediata. Articular o retorno
da presidenta eleita ao poder é fundamental agora. Nossas forças precisam estar
concentradas nesse compromisso, até porque ele pode nos ajudar a viabilizar uma
outra tarefa maior, que é a reunião e a concentração das forças do campo
progressista da sociedade. A luta política é uma dimensão da formação humana,
ela é um espaço de aprendizado sobre nós e sobre nossos destinos.
A
luta contra o retrocesso é dos movimentos sociais, dos trabalhadores e das
trabalhadoras, dos partidos políticos da esquerda, dos intelectuais, do movimento
LGBT, dos indígenas, dos sindicatos, da juventude que ocupa as escolas, dos
artistas que ocupam os teatros. A esquerda sempre teve dificuldade de articular
setores em divergência dentro do seu espectro vário de propostas teóricas,
intenções e práticas. Essa é a primeira dificuldade que precisaremos aprender a
superar se quisermos fazer frente ao aguerrido ataque das forças conservadoras
ao país que nos diz respeito. Precisamos, com nossas diferenças, saber formular
uma alternativa concreta, saber construir um projeto de país popular para
responder à crise em que a especulação financeira nos meteu há oito anos. Quem
os inimigos? A resposta a essa pergunta, desde a redemocratização brasileira,
jamais esteve tão clara.
Não
vejo horizonte possível para uma ação emancipatória de longo prazo, que faça
frente ao retrocesso que aceleradamente o governo Temer propõe, sem que
consigamos mobilizar (as ruas, as casas, as salas de aula, os locais de
trabalho, as redes sociais) em torno de duas causas imediatas: o retorno de
Dilma e a proposição de um plebiscito sobre novas eleições, que confira nova
legitimidade aos poderes da nossa frágil democracia. Esse processo pode
acelerar um pouco nossa resistência ao retrocesso. Para conseguir isso,
todavia, precisaremos aprender a reinventar as formas de participação política.
E teremos de aprender isso na prática, para já e para depois, sob pena de
sermos engolidos por uma longa noite de fascismo neoliberal.
A
Nova República se esgotou. Ou formularemos com os espoliados pelo neoliberalismo
o passo seguinte da ordenação político-social do país, ou veremos, mais uma
vez, o poder dos endinheirados comandar movimento do Brasil no rumo da nova
quadra do capitalismo.
Fico
sempre muito animado com nossa capacidade de organização, de mobilização, nossa
criatividade ao protestar, com o humor e a alegria sempre presentes, pois
sabemos que quem odeia e faz cara feia não constrói um mundo melhor. O trabalho
político cooperativo, horizontal e agregador que gere, entretanto, uma
transformação prática e não apenas resistência (o que já é muito, mas não
basta) é o desafio que está posto à nossa geração. Se não formos capazes de
fazer essa maturidade social que atingimos gerar frutos de intervenção no
concreto das relações políticas, dificilmente a próxima geração poderá usar tão
bem quanto nós os verbos “resistir” e “transformar”. A multiplicidade de
tendências que compõe o campo das esquerdas precisa ser entendida como a
riqueza que dá mais força à resistência política. Inventar uma verdadeira “nova
política” que as reúna num movimento amplo de construção de uma ideia futura de
país será, talvez, a grande lição do Brasil aos golpistas de hoje e de amanhã.
*Alexandre Pilati é professor de
literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação
drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda
se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012).
Acaba de lançar o livro de poemas e outros nem tanto assim (7letras, 2015).
Sem comentários:
Enviar um comentário