Erdogan
prende jornalistas, fecha jornais, silencia rádios e canais de televisão,
para o carrasco são todos culpados do crime de palavra dada. Contra a
ameaça, há que armar a palavra
Artur
Pereira – jornal i, opinião
Uma
imagem vale mais que mil palavras. Não sou dessa opinião.
A
imagem aprisiona as palavras, fecha-as sobre si mesmas. Cristaliza-as e
suspende a imaginação, que é o ingrediente das melhores das palavras.
Mas
libertas, multiplicam-se até ao infinito reconhecido, até ao fundo do ser e do
saber que são duas coisas gémeas. Vão para além do entendimento, ao sítio onde
os lerdos e alucinados têm palavras acoitadas.
A
imagem é a reconstrução representada, soletrada e desenhada por nós. A
imagem é aquilo que a minha palavra quiser.
A
palavra é nome feminino, como luz. Tem uma unidade que faz sentido, e que nos
dá som à voz, por isso quando queremos dar voz aos que a não têm damos-lhe a
palavra liberdade que é feminina também.
Na
escrita, dizem os entendidos que é delimitada por espaços brancos,
esquecem que é aí que se guardam todas as palavras à espera de vez.
Toda
a imagem resulta da palavra aprendida. Um cego vê com a palavra, tal como a
criança que aprende a ler para dar sentido ao que pode ver.
Para
mim, a palavra zombeteira, esperta como um alho, a dar peito ao enjeitado, a
voar no vento sem medo do censor nem do jumento, para mim, a palavra é que cria
mil imagens, as que cada cabeça livre quiser.
O
ditador Erdogan bem pode tentar fechar Istambul, alterar o curso do Bósforo, convidar
a morte para ensombrar os bazares, que nunca poderá controlar as palavras
sussurradas em sopros de resistência, vento ardente de clandestino, senha de
esperança.
Erdogan
declarou as palavras suas inimigas. Quere-as presas, medrosas e domesticadas, só
tolera o eco do seu uivo. Erdogan prende jornalistas, fecha jornais, silencia
rádios e canais de televisão, para o carrasco são todos culpados do crime de
palavra dada.
Por
isso, contra a ameaça, por solidariedade e princípio, há que armar a palavra. Utilizá-la
com brio, com indiferença, com ira, com vontade, com ambição, pensando noutra
coisa. A palavra como se fosse pão. Amassar a palavra nos dias frios e nos dias
de verão, com sol, com humidade, com chuva gelada.
Há
que escrever sem vontade de escrever contra a corrente.
Há
que moldar a palavra com as mãos, com a ponta dos dedos, com os braços, com os
ombros, com força e com sensibilidade. Há que amassar o verbo com rancor, com
tristeza, com recordações, com o coração feito em pedaços, com os mortos. Há
que escrever pensando no que se vai fazer depois. Há que desenhar a letra como
se não se fosse fazer nada, nunca mais, para sempre, depois.
Há
que crescer a palavra com farinha, com água, com sal, com levedura, com
manteiga, com sésamo com papoilas. Há que untar a palavra sagrada.
Há
que dar palavra com coragem, com plano, com improvisação, com incertezas. Com a
certeza de que se vai falhar. Com a certeza de que se vai sair bem. Com pânico
de não se o poder fazer nunca mais, que as palavras se possam queimar, que
saiam cruas, que ninguém goste. Há que amassar, escrever todas as semanas, de
todos os meses, de todos os anos, sem pensar que se terá que escrever todas as
semanas de todos os meses, de todos os anos, há que unir as palavras como se
fosse a primeira vez.
Há
que misturar palavras como beijos antes de partir de viagem, e no regresso, e
durante a viagem há que pensar em reescrever a palavra, quando se volte a casa.
Há que juntar o chumbo das letras sem humildade, com empenho, com ódio, com
desprezo, com ferocidade, com tesão.
Há
palavras que ressuscitam povos e despertam os homens adormecidos no fundo dos
vulcões. Como se tudo estivesse prestes a acabar, no limite. Revolucionários a
inventar outras palavras. Como tudo estivesse prestes a começar. Há que
escrever para viver, para que os outros vivam, porque se vive, para seguir
vivendo. Palavras de comer. Palavras que matam a besta e rasgam o selo.
Façamos
o que tem que se fazer. Escrever. Amassar o pão. Não há diferença.
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