Depois
dos EUA, agora a França debate prisão em massa de “suspeitos”, em campos como
Guantánamo. “Guerra ao Terror” tornou-se senha para eliminar as liberdades
Ignacio
Ramonet – Outras Palavras - Tradução: Inês Castilho
No
marco das eleições presidenciais na França, previstas para abril de 2017, os
candidatos da direita competem na promoção de um catálogo de “medidas
antiterroristas”, que ameaçam o caráter da República. Alguns dirigentes reclamam
inclusive da criação de centros de detenção inspirados na prisão de Guantánamo.
Submetida
a uma onda de odiosos atentados jihadistas há quase dois anos, a nação francesa
vê uma série de dirigentes políticos de direita e de extrema direita competirem
ao propor, em nome de uma “guerra santa contra o terror”, um catálogo de
“medidas antiterroristas” que, sem garantir o fim da violência, poderiam
colocar em perigo o caráter democrático da Republica.
O
ex-presidente Nicolas Sarkozy e vários dirigentes importantes de seu partido,
Os Republicanos (conservador) – Laurent Wauquiez, Éric Ciotti, Valérie Pécresse
etc. – não têm dúvidas em propor, por exemplo, que “mediante uma simples
decisão administrativa sejam detidas e postas sob vigilância pessoas que ainda
não cometeram nenhum crime ou delito, mas cuja periculosidade é conhecida pelos
serviços de inteligência” (1). Em qualquer regime democrático autêntico
proposta semelhante constitui uma aberração.
Israel
já não é o único Estado democrático qe, em virtude de uma lei de exceção
herdada da época colonial britânica, aplica as “detenções preventivas” que lhe
permitem encarcerar, no marco da “guerra contra o terrorismo”, um indivíduo sem
acusação formal e sem julgamento. Segundo a ONU, dos 7 mil palestinos privados
de liberdade em Israel, cerca de 700 encontram-se em “detenção administrativa”.
As autoridades israelenses justificam essas medidas com base numa interpretação
singular de um artigo da 4ª Convenção de Genebra. Várias ONGs humanitárias já
denunciaram essa interpretação (2).
Num
Estado de Direito em que se respeita a separação de poderes, não se pode deter
e prender um cidadão por uma simples “decisão administrativa” (3). Como explica
o jurista francês Michel Tubiana, presidente de honra da Liga dos Direitos
Humanos (LDH): “A Constituição francesa prevê, em seu artigo 66, que somente a
decisão de juiz pode permitir prender alguém, seja num presídio ou num centro
de detenção. Isso não pode ser decidido por uma autoridade administrativa, nem
sequer pelo governo.”
Por
outro lado, a Constituição também proíbe deter alguém que ainda não tenha
cometido delito algum. E o Conselho de Estado, máxima autoridade administrativa
estatal que deve ser consultada antes de tomar certas decisões (4), estipulou
que, como medida preventiva, as autoridades só podem vigiar — nem prender nem
castigar. O contrário significaria desconhecer a independência do Poder
Judiciário e retroceder a épocas anteriores ao habeas corpus, estabelecido na
Inglaterra em 1679, que proíbe as prisões arbitrárias e afirma o direito de
toda pessoa a conhecer por que razão está sendo detida e de que está sendo
acusada.
Os
suspeitos “S”
Com
a intensificação da “guerra contra o terrorismo”, as autoridades francesas
identificaram nada menos que cerca de 20 mil indivíduos suspeitos… Cada um
deles encontra-se, em princípio, sob vigilância e é objeto de uma ficha “S”
(“S” de “Segurança de Estado”) (5), estabelecida pela Direção Geral de
Segurança Interior (DGSI).
Obviamente,
nem todos esses 20 mil indivíduos fichados com “S” são potenciais terroristas.
Não se conhece com exatidão o verdadeiro número de suspeitos que teriam relação
com o movimento jihadista radical e estariam dispostos a cometer um ato de
violência criminosa. Segundo o primeiro ministro, Manuel Valls, não seriam
menos de 10.400… Mas, segundo o Cadastro dos Destacamentos para a Prevenção da
Radicalização de caráter Terrorista (FSPRT) (6) seriam bem uns 15 mil (7), dos
quais mais de 4 mil estariam a ponto já de passar à ação (8)…
Em
suma, estamos falando de números muito consideráveis: milhares de pessoas
dispersas através do conjunto da geografia francesa e prontas para cometer, a
qualquer momento, todo tipo de atentado criminoso.
A
isso há que se acrescentar os cerca de 2 mil franceses que, como “voluntários
jihadistas”, incorporaram-se às fileiras de combatentes do Estado Islâmico nos
territórios do “califado sírio-iraquiano” (dos quais uns 200 teriam morrido,
segundo outras fontes). Teme-se, contudo, que várias centenas dos que
sobreviverem às atuais ofensivas aliadas na Síria e no Iraque voltem à França
com desejos irrefreáveis de semear a morte…
Diante
de perspectivas tão perigosas, entende-se que haja um debate sobre o que fazer
para reduzir o nível de ameaça jihadista interna.
Por
isso, as forças mais conservadoras estão propondo que se prendam desde já os
milhares de suspeitos fichados como “S”. Um de seus principis argumentos a
favor dessa medida é que muitos dos jihadistas que cometeram atentados nos
últimos meses na França estavam fichados como “S”, porém não foram detidos. Por
exemplo, os irmãos Kouachi, que assassinaram grande parte da redação do
semanário satírico Charlie Hebdo; ou Amedy Coulibaly, que atacou uma loja
kosher e matou várias pessoas de religião judaica; ou Yassin Salhi, que
decapitou seu patrão em Saint-Quentin-Fallavier; ou Larossi Abballa, que
degolou um casal de funcionários do Ministério do Interior; ou Abdel Malik
Petitjean, um dos assassinos do sacerdote católico em Saint-Étienne-du-Rouvray.
Todos eles estavam fichados como “S”, quer dizer, “perigosos para a segurança
do Estado”, mas encontravam-se em liberdade e conseguiram matar.
O
buraco negro
Nesse
contexto, alguns dirigentes políticos reclamam agora na França a criação
urgente de “centros de detenção ou de internação” onde seriam presas essas
milhares de pessoas do “entorno jihadista” consideradas como muito perigosas.
Tanto os defensores desta solução como seus opositores citam o controvertido
caso de Guantánamo como exemplo, segundo alguns, do que uma democracia deve
fazer para sua legítima defesa; ou como modelo, segundo outros, do que
precisamente nunca deve fazer para não perder sua alma.
A
Base Naval da Baia de Guantánamo, como se sabe, é uma base militar situada em
território de soberania cubana, alugada por Washington de Havana no marco do
tratado leonino firmado por ambos os países em 1903. O governo cubano a
considera “território ocupado” e reclama sua restituição. No início dos anos
1980 o presidente George W. Bush (pai) utilizou as instalações da base para
estabelecer, pela primeira vez, um centro de internação destinado aos milhares
de refugiados haitianos “sem papéis” que tentavam entrar nos Estados Unidos. Um
ano depois, o presidente Bill Clinton fez o mesmo com uma leva de imigrantes
cubanos. Nos dois casos, as organizações internacionais de defesa dos direitos
humanos denunciaram a violência desse tratamento contra refugiados civis “sem
papeis”.
Isso
não impediu que, a partir dos atentados jihadistas de 11 de setembro de 2001, o
presidente George W. Bush decidisse criar em Guantánamo, em nome da “guerra
santa contra o terrorismo”, uma espécie de presídio especial para os
prisioneiros pertencentes à organização jihadista Al Qaeda.
A
principal razão da escolha de Guantánamo foi que, não se tratando de território
estadunidense, ali o direito penal dos Estados Unidos não tem vigência e não
pode, por conseguinte, proteger os prisioneiros. Quando perguntaram a Donald
Rumsfeld, então secretário de Defesa estadunidense, por que haviam escolhido a
base de Guantánamo, ele respondeu: “Porque é o cosmos… Ali as leis dos Estados
Unidos não se aplicam”.
Mas
ao mesmo tempo Washington decidiu não aplicar tampouco as Convenções de Genebra
aos jihadistas detidos, considrando que “a guerra contra o terrorismo” não era
um conflito convencional e que os “assassinos da pior espécie” ali encarcerados
não mereciam sorte melhor.
De
tal modo que toda pessoa reclusa nas instalações do presídio da Baía de
Guantánamo estaria desprovida de qualquer tipo de direito e à mercê da
arbitrariedade das autoridades militares estadunidenses. De fato, trata-se de
uma ilhota de iniquidade medieval no mundo contemporâneo. Isso permitiu que os
prisioneiros (procedentes com freqüência de “prisões secretas” e transportados
em “voos secretos” da CIA) fossem torturados, golpeados, suspensos por mãos e
braços, privados de sono, submetidos a interrogatórios de vários dias seguidos
e a agressão permanente de música ensurdecedora. O mundo inteiro denunciou a
monstruosidade jurídica que constitui Guantánamo.
Por
isso, logo após eleito, em 2008, o presidente Barack Obama, professor de
Direito Constitucional, prometeu fechar esse “buraco negro” da Justiça. Oito
anos depois, contudo, quando está prestes a entregar o cargo, constatamos que
não conseguiu fazê-lo. Por quê? Primeiro, porque o Congresso opõe-se a ele.
Segundo porque a maioria (52%) da opinião pública tampouco o deseja. E
finalmente porque, dos 780 presos que foram encerrados ali, 711 já foram
liberados (o que significa que não eram tão “assassinos da pior espécie” como
se pretendia) (9). Muitos deles eram civis inocentes capturados por
aventureiros que os venderam como “terroristas” às autoridades militares
estadunidenses. Outros foram declarados “terroristas” simplesmente porque
levavam no pulso um relógio da marca Casio, modelo F91W — segundo o Pentágono o
tipo de relógio com que Osama Bin Laden presenteava os melhores combatentes da
Al Qaeda…
Sem
direitos
Permanecem
hoje em Guantánamo 60 presos (10). Dividem-se em três grupos: um primeiro grupo
de 10 presos condenados por uma Comissão Militar que não é reconhecida pela
Justiça estadunidense; um segundo grupo de 20 presos que vão ser libertados,
mas ainda não se decidiu a que país ou países vão ser entregues; e um terceiro
grupo de 30 presos com os quais o governo estadunidense não sabe muito bem o
que fazer. O presidente Obama declarou: “Estes 30 presos constituem um caso bem
complexo. Sabemos que agiram mal e que continuam sendo extremamente perigosos,
mas não conseguimos apresentar provas convincentes contra eles perante um
tribunal de justiça comum”. Não podiam porque essas “provas” foram obtidas
mediante tortura e qualquer tribunal as consideraria nulas.
Assim,
provavelmente o destino desse grupo de 30 presos, que não pode ser liberado nem
transferido a um presídio militar em território estadunidense nem entregue a um
país de acolhida, será morrer no presídio da Baia de Guantánamo. Talvez alguns
deles o mereçam, pelos atentados que cometeram. Mas, para os Estados Unidos,
como democracia, isso vai significar, para as próximas décadas, uma violação
permanente das convenções internacionais em matéria de direitos humanos.
Como
poderia a França, pátria da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
adotar modelo tão indigno, em nome de uma “guerra santa contra o terror”?
NOTAS
1.
Ver Ignacio Ramonet, “Frente al terrorismo”, Le Monde diplomatique, edición
Cono Sur, agosto de 2016.
2. AFP, París, 18 de julho de 2016.
3. Betselem e Hamoked.
4. Exceto casos contados relacionados à psiquiatría.
5. O Conselho de Estado define, em última instância, qualquer recurso judicial apresentado contra uma autoridade pública.
6. A ficha “S” é uma subcategoría do Arquivo de Pessoas Procuradas (FPR, na sigla em francês). Também há fichas “M” (para “menores em fuga”), fichas “V” (para “evadidos”) e fichas “T” (para “devedores do Tesouro Público”).
7. Criado em março de 2015, o FSPRT permite à Unidade de Coordenação da Luta Anti-Terrorista (UCLAT) centralizar toda a informação que resulta das notificações que chegam através do Centro Nacional de Assistência e de Prevenção da Radicalização (CNAPR).
8. Entre os quais havia uns 2.000 menores de idade.
9. Ver Le Journal du Dimanche, París, 9-10-16.
10. Ver nota de Luciana Garbarino nas páginas 28 e 29 desta edição do Le Monde Diplomatique (Ed. 209 – Novembro de 2016)
3. Betselem e Hamoked.
4. Exceto casos contados relacionados à psiquiatría.
5. O Conselho de Estado define, em última instância, qualquer recurso judicial apresentado contra uma autoridade pública.
6. A ficha “S” é uma subcategoría do Arquivo de Pessoas Procuradas (FPR, na sigla em francês). Também há fichas “M” (para “menores em fuga”), fichas “V” (para “evadidos”) e fichas “T” (para “devedores do Tesouro Público”).
7. Criado em março de 2015, o FSPRT permite à Unidade de Coordenação da Luta Anti-Terrorista (UCLAT) centralizar toda a informação que resulta das notificações que chegam através do Centro Nacional de Assistência e de Prevenção da Radicalização (CNAPR).
8. Entre os quais havia uns 2.000 menores de idade.
9. Ver Le Journal du Dimanche, París, 9-10-16.
10. Ver nota de Luciana Garbarino nas páginas 28 e 29 desta edição do Le Monde Diplomatique (Ed. 209 – Novembro de 2016)
11. Nove presos morreram.
Sem comentários:
Enviar um comentário