sábado, 25 de fevereiro de 2017

Cabo Verde. A CIMEIRA DOS AFETOS



120 milhões de euros para projectos de cooperação durante os próximos quatro anos, 12 instrumentos bilaterais estabelecidos, a inauguração da escola portuguesa de Cabo Verde e o reforço da intenção de promover a livre circulação dentro da CPLP, estes foram os resultados visíveis da IV Cimeira Cabo Verde Portugal que juntou, na cidade da Praia, cinco ministros cabo-verdianos e cinco ministros e três secretários de estado portugueses, além dos dois Primeiros-Ministros de cada país. A única incerteza que saiu deste encontro foi a solução para a dívida do Casa para Todos.

Não houve nenhum assumir de compromisso no tema político mais delicado desta IV Cimeira – a divida de 200 milhões de euros, resultante do projecto Casa para Todos – por parte do Primeiro-Ministro português António Costa. Sim, há uma proposta recente do Estado cabo-verdiano, que o Ministério das Finanças está a apreciar, e sim, há a certeza, disse o chefe do governo de Portugal, que será encontrada uma boa solução, “que satisfaça os interesses de todas as partes em relação a essa matéria”. Ou como repetiu, mais tarde, ao Expresso das Ilhas, “entre amigos, encontra-se sempre uma solução para os problemas”. “Está tudo em aberto”, disse Ulisses Correia e Silva, “há várias alternativas: desde a possibilidade de reestruturar o crédito, à possibilidade de aliviar o peso da dívida, há negociações em curso, o crédito começa a vencer a partir de 2021, portanto temos tempo para encontrarmos uma boa solução”.

No resto, esta IV Cimeira foi considerada “excelente” pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros cabo-verdiano Luís Filipe Tavares [ver entrevista]. Esta cimeira, instituída pelo Tratado de Amizade e Cooperação assinado entre os dois países em Lisboa, em 2010, tem como objectivo avaliar o estado das relações entre os dois países e propor medidas para a sua diversificação e dinamização, sobretudo no eixo cooperação.

Sob o tema: Crescimento Sustentável em Segurança, a Cimeira teve uma reunião plenária onde as duas delegações fizeram um balanço da implementação das decisões saídas da III cimeira e passaram em revista as relações políticas e de cooperação. Os chefes do governo reiteraram o seu compromisso para com os 17 objectivos de desenvolvimento sustentável, da agenda 2030, que a partir de agora deverão nortear os programas conjuntos de cooperação e manifestaram o desejo de reforçar o quadro de cooperação bilateral no domínio económico, nomeadamente em sectores de interesse mútuo, como o turismo, a economia marítima e a energia, bem como a segurança alimentar, a gestão da qualidade, a concorrência, o comércio e as actividades económicas.

“Queremos”, sublinhou o Primeiro-Ministro de Cabo Verde, Ulisses Correia e Silva, “nesta partilha das relações bilaterais e multilaterais em que Cabo Verde e Portugal estão envolvidos, nomeadamente com a União Europeia e com a CEDEAO, na CPLP, poder contar cada vez mais com esta boa relação, que ultrapassa o protocolo e que se torna fácil entre pessoas que se estimam, que têm uma relação de afectos”.

“O facto de assinarmos um novo Programa Estratégico para a Cooperação, que duplica a ajuda pública ao desenvolvimento, é um bom sinal de como as nossas relações se vão progressivamente estreitando”, disse o Primeiro-Ministro de Portugal, António Costa, “e em dois pilares essenciais: um na área de capacitação, com o acordo quadro na defesa, com um novo acordo de cooperação técnico policial, e com o acordo de apoio ao sector da justiça; mas um outro que tem a ver com a língua e com a educação, mas é uma cooperação que se concretiza também na dimensão multilateral, designadamente com o esforço que conjuntamente faremos para concretizar uma grande ambição que é fazer da CPLP um espaço de mobilidade aberta a todos os cidadãos dos países que têm o português como língua oficial – do Brasil a Timor-Leste – e nesse sentido tomaremos iniciativas conjuntas e trabalharemos em conjunto durante os próximos anos para a sua concretização”.

Estava dado o mote para um dos objectivos defendidos pelo Chefe do Governo de Portugal, e que o próprio apresentou na Cimeira da CPLP em Brasília [que decorreu entre os dias 31 de Outubro e 1 de Novembro de 2016]. Porquê, perguntou-lhe mais tarde o Expresso das Ilhas, “porque é fundamental para que os cidadãos percebam que a CPLP não é só uma coisa entre os políticos, ou que diga respeito às empresas, mas que diz respeito ao dia-a-dia de cada um”, disse António Costa, “e a forma de o fazer é as pessoas sentirem que quando chegam a um aeroporto de outro país da CPLP são recebidas de forma diferente, não como estrangeiros, mas como pessoas que são bem-vindas, bem acolhidas, que podem entrar, instalar-se, residir e trabalhar”.

“É um projecto, que me parece essencial para que os cidadãos possam ter liberdade de circulação”, continuou António Costa, “para que possam ter os seus direitos de assistência social, possam ver as suas habilitações académicas reconhecidas em todos os países e que as profissões reguladas, como a advocacia ou a medicina, possam ser reconhecidas reciprocamente”.

A proposta ainda tem de ser trabalhada tecnicamente, durante esta IV Cimeira foi já apresentado ao governo cabo-verdiano um primeiro documento de trabalho para que, em conjunto, possa ser depois mostrado aos outros países e assim fazer avançar este projecto, aproveitando o facto de Cabo Verde ser o próximo país a presidir à CPLP, no próximo ano.

Morna a património imaterial da humanidade

Nem só de política pura e dura se fez esta cimeira. Na Cidade Velha – único património da humanidade cabo-verdiano – e já depois de ter recebido das mãos do autarca Manuel de Pina as chaves da cidade e o diploma de cidadão honorário, António Costa assumiu a defesa da elevação da morna a património imaterial da humanidade.

Num discurso curto e bem disposto, o Primeiro-Ministro português recordou a importância dos valores culturais, principalmente numa cidade que, como lhe chamou o presidente da câmara Manuel de Pina, é o berço do novo mundo.

“Eu brinco sempre, mas a brincar se dizem as verdades”, sublinhou António Costa, com um pano di terra sobre os ombros, “que Cabo Verde é seguramente o país que tem maior musicalidade per capita em todo o mundo: porque todos os cabo-verdianos ou tocam, ou cantam, e não há nenhum que não dance. Esse é um grande sinal. E num momento em que em muitas zonas do mundo uns querem construir muros, outros querem fechar fronteiras, outros não querem mais comércio livre, outros têm atitudes xenófobas, não há como demonstrar que em cada terra há algo que nasce para o conjunto da humanidade”.

“A morna é ela própria uma canção de partida, de chegada, de viagem e de alguma forma essa candidatura da morna completa aquilo que é o valor da Cidade Velha. O que eu desejo é que tal como conseguimos com o fado, se não irmão, pelo menos primo da morna, que a morna seja tão depressa quanto possível reconhecida pela UNESCO como património imaterial da humanidade”.

Continuando no registo bem-humorado, o Primeiro-Ministro português disse estar igualmente “muito sensibilizado pelo título e a chave, que é difícil de caber no bolso. Não deixarei de a conservar, porque é sempre bom saber que há uma porta algures no Atlântico para abrir no caso de procurar nova habitação”.

Aquele terreno no Palmarejo

A inauguração da Escola Portuguesa de Cabo Verde, a funcionar no Palmarejo desde Novembro do ano passado, foi considerada pelo Primeiro-Ministro português como o momento simbólico mais importante desta passagem pelo arquipélago. “Porque para além do excelente trabalho de relacionamento político entre os governos, dos diferentes acordos que celebrámos entre nós, aquilo que marca sobretudo a relação entre Portugal e Cabo Verde é a relação entre as nossas comunidades. Essa relação assenta particularmente na partilha de uma língua comum que nos tem permitido desenvolver laços de amizade ao longo de muitos séculos e laços culturais muito profundos. E se há algo estruturante nesta relação é exactamente a educação e o ensino”.

Foi o culminar de um processo de anos, ou como recordou António Costa, de várias visitas feitas pelo então presidente da câmara da Praia Ulisses Correia e Silva ao então presidente da câmara de Lisboa António Costa onde era sempre referido o “terreno no Palmarejo” cedido a Portugal para que a escola fosse feita, obra que nunca mais começava. “Ouvi isto durante muitos anos. E no ano passado, quando fiz a minha primeira visita ao estrangeiro como Primeiro-Ministro, a Cabo Verde, o então Primeiro-Ministro disse-me: há ali um terreno no Palmarejo para fazerem a escola portuguesa e nunca mais a fazem. Vi assim que era um tema de consenso entre todos. Quando cheguei a Lisboa, disse ao ministro da educação que tínhamos um trabalho urgente a fazer, que era a escola portuguesa de Cabo Verde. Passados uns meses, o ministro diz-me: olhe, como temos a cimeira, quando formos lá vamos inaugurar a escola. Eu olhei para ele – apesar de dizerem que até sou optimista – e disse que não era possível. Ele disse que sim, já tinha directora, já tinha equipa, já tinha projecto, íamos arrancar com a escola e quando fosse a cimeira a escola estaria pronta para ser inaugurada. Tenho de reconhecer que quando não sou optimista erro, e por isso não acreditei que o que é impossível se torna possível”.

“A senhora embaixadora, desde que aterrei ontem [domingo], diz-me sempre dois números: dois milhões e três anos, e explica, são necessários 2 milhões nos próximos 3 anos para completar totalmente a escola portuguesa. Portanto senhor Primeiro-Ministro [dirigindo-se a Ulisses Correia e Silva], daqui por 3 anos temos de estar cá para inaugurar a segunda fase da escola portuguesa”.

“Para nós, educação é tudo”, respondeu o Chefe do Governo cabo-verdiano.

Foi o encerrar da IV Cimeira Cabo Verde – Portugal. A próxima terá lugar dentro de dois anos, em Portugal, em data e local a serem sugeridos pelas autoridades portuguesas.

A questão da nacionalidade

A alteração da lei da nacionalidade portuguesa é uma das reivindicações que tem sido feita pela comunidade cabo-verdiana em Portugal, mas segundo o Primeiro-Ministro António Costa o que está em causa é algum desconhecimento das regras. “A nossa lei da nacionalidade permite a que todos aqueles que nascem em Portugal, mesmo filhos de não portugueses, possam ter a nacionalidade portuguesa, desde que os pais residam em Portugal há pelo menos cinco anos, independentemente do seu estatuto, e permite também, mesmo que os pais não residam há cinco anos, vir a obter a nacionalidade se permanecerem em Portugal e concluírem o primeiro ciclo do ensino básico. Portanto, creio que o problema não é alteração da lei, há processos burocráticos que podem vir a ser agilizados, e o ministério da justiça está a trabalhar esse objectivo, agora o que eu creio que se tem verificado muitas vezes é que por desconhecimento dessa possibilidade não há um requerimento no momento do nascimento da criança para a obtenção da nacionalidade”.

Os instrumentos bilaterais saídos da IV Cimeira

Na IV Cimeira Portugal – Cabo Verde foram assinados um total de 12 instrumentos bilaterais, para além do Programa Estratégico de Cooperação, entre eles: um programa para apoiar a estrutura superior das Forças Armadas e o reforço da segurança e autoridade de Cabo Verde no mar; um protocolo para desenvolver competências técnicas e operacionais das forças e serviços de segurança de Cabo Verde; um protocolo para o desenvolvimento sistémico, organizacional e humano do sector da justiça; um protocolo que estabelece um projecto de co-financiamento para a reabilitação do antigo Liceu Gil Eanes, no Mindelo; um protocolo para recursos pedagógicos para o apoio aos processos de ensino e aprendizagem da língua portuguesa; um regulamento para facilitar o acesso ao ensino para a formação de jovens quadros em áreas prioritárias para o desenvolvimento de Cabo Verde (que define as regras de concessão de bolsas de estudo para a formação em Cabo Verde, no ensino secundário e superior, em áreas como a educação, saúde, economia e gestão, ciência e engenharia e ensino do português); e um protocolo de projectos em matéria de ambiente para a mitigação e adaptação às alterações climáticas.


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 795 de 22 de Fevereiro de 2017

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