A
acusação formal do Vice-Presidente de Angola pelo Ministério Público português,
num caso de corrupção, suscitou-me algumas reflexões que gostaria de partilhar
com o leitor. Porque, na verdade, o caso me pareceu politicamente muito
complexo e delicado!
João de Almeida
Santos – Jornal Tornado, editorial
Em
particular, pelos efeitos que está a provocar no sistema de poder angolano,
quando está em curso um processo eleitoral e uma complexa transição de poder,
mas também nas relações bilaterais, tendo já causado a suspensão da visita da
Ministra da Justiça a Angola e também, provavelmente, a do Primeiro-Ministro,
António Costa.
E
até me pareceu que seria legítimo pensar, pelo simbolismo e alcance da decisão,
que o Ministério Público português acabou de assumir o poder de “declarar
guerra” a um Estado estrangeiro soberano! Sim, porque Manuel Vicente é um
cidadão estrangeiro, número dois do Estado angolano e, por isso, também
detentor de imunidade diplomática, não se sabendo sequer qual o destino que
terão as cartas rogatórias enviadas e não estando o alegado ilícito enquadrado
no raio de acção do Tribunal Penal Internacional, dada a sua natureza! Temos,
pois, neste caso, ingredientes mais do que suficientes para suscitar uma
reflexão profunda sobre os limites da acção do Ministério Público (MP). Num
registo muito claro e limitado: a acção e os seus efeitos sobre o sistema de
poder angolano e sobre as relações entre os nossos dois países.
A
justiça e a política
E,
a este propósito, não pude deixar de recordar o desmantelamento do sistema
político italiano, nos anos ’90, pelo Juiz Antonio di Pietro, que, mais tarde,
teria de se retirar da política por motivos menos nobres. E confesso, vistas as
consequências, que até tenho dúvidas se o que se seguiu melhorou o sistema de
governo de Itália. E as incursões do Juiz espanhol Baltazar Garzón por terras
do Chile, até cair em desgraça. Num assunto que, todavia, se enquadrava
claramente no raio de acção do TPI. E também me lembro do grande paladino da
verdade, o Procurador Ken Starr, que perseguiu o Presidente Bill Clinton até ao
quase impeachment, por este, que era casado, não ter revelado publicamente que
teve um “affaire” com a Senhora Lewinsky. E, mais recentemente, do Juiz Sérgio
Moro, que divulgou um telefonema entre Lula da Silva e a Presidente do Brasil,
Dilma Rousseff (tendo, posteriormente, pedido desculpa por ter feito o que não
devia). E dos processos a Sarkozy por financiamento partidário, acabando este
afastado da corrida ao Eliseu. E, também, do processo em curso contra o
candidato presidencial François Fillon (já em queda nas sondagens), que pode
vir a ser acusado judicialmente por ter dado emprego (aparentemente
injustificado) a sua mulher. E de Marine Le Pen que se recusa a depor durante o
período eleitoral, num processo que envolve fundos partidários, por este
interferir directamente nos destinos da República, em jogo nestas eleições. E a
lista não teria fim. Parece que estamos, portanto, perante uma crescente
interferência da justiça nos processos políticos, nacionais e internacionais,
em largo espectro!
O
caso
Um
procurador português está acusado de ter arquivado um processo que visava
Manuel Vicente – agora acusado formalmente pelo MP, enquanto corruptor -, a
troco de dinheiro. Coisa grave, sem dúvida. A começar pelo próprio MP que,
através de um dos seus, se vê envolvido em actos de corrupção. E a acabar em
alguém que se encontra neste momento no vértice de um Estado soberano com quem
Portugal tem relações muito estreitas. E é aqui que surge o problema e a
dificuldade. Ou seja, o problema da relação entre meios e fins, entre causas e
efeitos, quando a desproporção se torna gigantesca, colocando-se a questão da
adequação de uns em relação aos outros. E quando os efeitos se tornam
incomensuravelmente maiores do que as causas, como dizia François Furet a
propósito dos efeitos da Grande Guerra sobre a história mundial. Pode haver
pequenos gestos (que até sejam correctos) que, por conterem em si um grande
potencial devastador, devam ser muito bem avaliados antes de serem praticados.
Às vezes, o problema até se pode resolver com o bom-senso. Mas quando se trata
de instituições do Estado é mesmo obrigatório introduzir sempre nos processos
decisionais a variável “consequências” (sobre a sociedade, sobre as gerações
futuras ou sobre as relações internacionais). Porque, na verdade, alguns actos
de normal e justificada administração podem induzir efeitos em boomerang tão
intenso sobre o sistema que seja aconselhável evitá-los ou tratá-los com o
maior cuidado. No caso do Vice-Presidente de Angola, os autores da acusação
formal e a hierarquia do Ministério Público calcularam os efeitos devastadores
que esta acusação formal – e a correspondente divulgação – poderia ter? Angola
é um Estado soberano e o acusado é a segunda figura deste Estado. Não poderia
esta acção vir a ser considerada, como, de resto, já foi, um acto de agressão
de Portugal a Angola, com todas as consequências que isso poderia ter,
designadamente para as empresas e pessoas que estão estabelecidas neste país e
para as relações ente dois Estados soberanos com tantos interesses comuns? O MP
já tem o poder de “declarar guerra” a um Estado soberano, provocando efeitos
infinitamente superiores à sua causa? Alguém diria: “É a política, estúpido!”.
E com razão.
Estranhas
coincidências!
O que não deixa de ser curioso é que Manuel Vicente é também atingido na Operação Marquês, por contactos mantidos com José Sócrates, ao mesmo tempo que é uma figura em queda no sistema de poder angolano, primeiro na Sonangol e, depois, na Presidência, uma vez que foi preterido em relação ao agora anunciado sucessor de José Eduardo dos Santos, João Lourenço. A pergunta maliciosa que ocorre fazer é a seguinte: com esta acusação não estará o Ministério Público português a interferir no processo de defenestração política de Manuel Vicente, em Angola? Se o visado fosse, por exemplo, João Lourenço o MP agiria nos mesmos moldes? E com que consequências? E esta acusação tem alguma relação simbólica com o desenlace da Operação Marquês (por via de Sócrates e de Ricardo Salgado)? Porquê, agora? O “Expresso” do passado Sábado dá-nos bem conta dos efeitos desestabilizadores que esta acção do MP está a ter numa Angola que se prepara para eleições, para uma profunda transição no poder e para novos reequilíbrios de poder.
De
qualquer modo, e até por estas razões, este é um dos casos em que o efeito é
certamente muito superior à causa e, por isso, deveria ter sido tratado com o
necessário cuidado.
O
papel da Procuradora-Geral da República
A
pergunta que ocorre fazer é a seguinte: que papel tem neste processo a Senhora
Procuradora-Geral da República (PGR), enquanto máxima responsável do Ministério
Público e pessoa (formalmente) da confiança do poder político? Calculou os
efeitos que esta acção do MP iria ter em Angola? É que pela natureza do cargo o
PGR tem particulares responsabilidades na gestão de dossiers desta natureza, ou
seja, de dossiers que implicam níveis mais elevados de poder institucional e
mais ainda quando se trata de Estados estrangeiros. Não é por acaso que o PGR é
proposto pelo Primeiro-Ministro, é nomeado pelo Presidente da República e não
tem que ter requisitos formais iguais aos dos outros magistrados. Ou seja, em
palavras muito claras, o PGR tem funções que ultrapassam em muito o plano
meramente jurídico, devido à sua posição de charneira, de ligação e de
interface do poder político com o poder judiciário. Mesmo que os seus poderes
sejam limitados, o PGR tem certamente de estar em condições de, pelo menos,
exercer uma responsável “magistratura de influência”! Caso contrário,
verificar-se-á um injustificável desequilíbrio entre o seu estatuto e o seu
efectivo poder! Por isso, se esta acção do MP for considerada como intempestiva
e politicamente disruptiva, a Senhora Procuradora-Geral da República terá nisso
a sua quota parte de responsabilidade. E, a ser assim, não deixará de haver
quem já comece a sentir saudades dos tempos do PGR Cunha Rodrigues! Não se
discute, de modo algum, que a justiça deva ser cega. Mas, certamente, existem
bordões procedimentais que podem ajudar na escolha do caminho mais adequado…
Os
media e a justiça
Este
assunto chama a atenção uma vez mais – e é isso que aqui, no essencial, está em
causa – para o poder excessivo que o poder judiciário está a exibir, e não só
em Portugal. Este poder está a transformar-se cada vez mais numa sofisticada e
eficaz arma de luta pelo poder (veja-se, por exemplo, o que está a acontecer
hoje em França)! Sobretudo quando se verifica uma crescente personalização da
política e, por isso, uma mais fácil imputabilidade (ética e jurídica) de quem
detém o poder. E, neste processo, o establishment mediático tem-se constituído
como parte activa, tornando-se ele próprio sujeito de investigações muito pouco
claras quanto aos fins. Um ministro ameaça com as suas decisões a posição de um
canal televisivo, põem 15 ou 20 jornalistas a investigar a sua vida e, depois,
com resultados à mão, julgam-no em prime time, ao mesmo tempo que accionam um
processo judicial. Chama-se a isto jornalismo de investigação. Que tanto pode
ser honesto como desonesto, não esquecendo que os media se comportam como um
poder, desde os tempos remotos do Tocqueville de “Da democracia na América”. Os
casos abundam, para um lado e para o outro. Mas uma coisa é certa: as garantias
(jurídicas) que ao longo dos séculos foram penosamente conseguidas, caem como
castelos de cartas perante esta novíssima forma de “administração da justiça”!
Os casos são cada vez mais frequentes. Acresce, ainda, que se tem vindo a
verificar uma promiscuidade absolutamente intolerável entre o poder judiciário
e o establishment mediático na gestão dos processos. O mais conhecido é o do
ex-Primeiro-Ministro José Sócrates, com a divulgação ao minuto das peças
processuais obtidas por assistentes ao processo que continuam a desempenhar as
funções de jornalistas sobre o mesmo processo onde são assistentes (ferindo
o respectivo código ético [1]). O segredo de justiça já passou à
história, ultrapassado que foi pelos factos. Não é, todavia, de hoje esta
promiscuidade, havendo já uma vasta bibliografia sobre o assunto.
Separação
de poderes?
Mais
interessante ainda é a posição dos próprios agentes políticos sobre tudo isto.
Em Portugal assobia-se para o lado, na esperança de que a vida pessoal não
venha a ser investigada por jornalistas ou pelo Ministério Público, não compreendendo
que, assim, já se está a agir sob coacção, aumentando o poder de quem
subtilmente infunde medo. A fórmula é conhecida e já enjoa: “à política o que é
da política, à justiça o que é da justiça”; e, já agora, “à imprensa o que é da
imprensa”, enquanto, no mais indefinido dos critérios, tudo é considerado de
“interesse público”. Muito bem, se a justiça e um certo jornalismo não
estivessem cada vez mais a entrar no terreno da política, exorbitando
claramente das competências e funções! É-se escutado e investigado, directa ou
indirectamente, a pretexto de uma denúncia, que até pode ser anónima. Um modo
cómodo e até agradável de investigar, sobretudo se for depois de jantar. O
espectro de um big brother, que não é político, paira sobre a nossa frágil
democracia. É certo que a separação de poderes é fundamental, mas também é
certo que os poderes são separados, não sendo hierarquicamente iguais, e não
podendo ser a separação válida num só sentido, a de quem tem o poder de
escutar. Na verdade, enquanto a legitimidade do poder legislativo é de natureza,
digamos, ontológica, a do poder judicial é de natureza meramente técnica. Só
que esta tecnicidade, a que acresce autonomia plena, já se tornou
verdadeiramente ontológica, tal foi o crescimento do seu poder invasivo junto
dos outros poderes.
A
anemia do poder político
A
verdade é que por muitas outras razões – designadamente devido à globalização,
à dependência dos mercados financeiros internacionais, a que se juntam as
famosas agências de rating, à crise da representação, à personalização
excessiva do poder e à natureza do novo espaço público – o poder político de
natureza representativa está cada vez mais anémico. Mas também é verdade que os
agentes políticos nada fazem para reverter a situação, deixando-se, por um
lado, nas mãos dos populistas (como está a acontecer) e, por outro, nas mãos de
outros poderes (designadamente mediático e judiciário) de que estão a ficar
cada vez mais reféns. Até pelas fragilidades pessoais que uma boa parte das
elites tem vindo a revelar perante a cidadania.
Tudo
estaria bem se por detrás desta utopia interesseira e perigosa da transparência
total não estivessem também interesses ocultos que se protegem iluminando com
os holofotes de serviço os pecadores presentes no palco da política, ao mesmo
tempo que favorecem aqueles que, nos bastidores, melhor sintonizam com as suas
próprias estratégias e interesses.
Enfim
Regressando,
pois, ao começo deste artigo, o caso de Angola levanta uma questão de fundo
acerca dos limites da acção do Ministério Público, quando se verifique que ela
se inscreve num claro quadro onde os efeitos superam em grande medida as
causas, implicando dimensões que interferem directamente no funcionamento
global do sistema social ou das relações internacionais. O que parece ser o
caso de Angola: anulada a visita da Ministra da Justiça (por acaso de origem
angolana), em causa a visita oficial do nosso PM a Angola para a resolução de
urgentes problemas financeiros das empresas que lá operam, eleições
presidenciais, transição do poder, complexos reajustamentos no sistema de poder
angolano, etc., etc…
O
poder judiciário tem o dever de se proteger a si próprio, porque quando
assistirmos ao fim da sua própria credibilidade, depois da queda de
credibilidade do sistema financeiro, o caminho ficará aberto para soluções onde
todos temos a perder, incluído ele próprio. E os populismos estão a encontrar
cada vez mais terreno fértil para a conquista de um poder que tenderá a não
respeitar, esse sim, a separação de poderes!
[1] Cfr. Jornal Tornado, 31/10/2015 – “Assistente
é alguém com interesse na condenação do arguido. Deixa de ser Jornalista“,
por Dr. Tomaz de Albuquerque, Advogado
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