Miguel
Guedes | Jornal de Notícias | opinião
Quantas
vezes ouvimos a expressão, feita reprimenda ou comparação em relâmpago-directo
da boca dos nossos pais ou de familiar a quem nem reconhecíamos especial
autoridade: "E se ele se atirasse abaixo da ponte, também te atiravas,
era?". Em casos sem gravidade, a resposta esmagadora, "é claro que
não". Mas há umas quantas décimas medidas por muita gente inteira que, em
conflito interior, sibilam "sim, talvez" entre dentes. Ou que, por
vezes, não dizendo palavra, são seduzidas por uma imagem de morte naquele
momento redentora, alívio libertador dos piores males. Talvez pensem "sim,
talvez" porque talvez pensem demais. Se comovam demais, se envolvam
demais. Desencontram-se em demasia com o mundo que os cerca, como se esse mundo
os afundasse numa bolha que não abraça ninguém. Uma redoma que questiona as
virtudes, desagrega. A deles, num mundo que não dominam nem compreendem. Não há
fraqueza na depressão, há doença.
O
jogo russo da Baleia Azul é uma derivação virtual da roleta. Aparentemente,
pode seduzir qualquer pessoa a quem o "mentor" reconheça requisitos
mínimos para a tormenta, automutilação ou suicídio. Agrega-se à navegação da
adolescência por uma primeira mensagem que convoca a 50 provas secretas, num
misto de terror psicológico e chantagem, acompanhamento motivacional para a
superação do desafio interno, ordens de automutilação e incitação última ao
suicídio. O carácter criminoso deste "incitamento assistido" - que
monitoriza diariamente os passos das vítimas - é assustador, ignóbil e perverso.
Mas é também assustador como, abruptamente, assistimos a um condomínio-social
de espanto pela descoberta de uma realidade que nunca foi conveniente ao olhar:
a automutilação e o suicídio na adolescência sempre existiram, sempre estiveram
justos ao horizonte castrado dos olhos, sempre viveram por cima dos ombros das
histórias que a maioria ouviu ou sentiu por reflexo através da sua porta ao
lado ou da janela do vizinho de baixo.
O
suicídio é provavelmente a derivação mais complexa da morte. Não procuremos então
reduzir o contexto do problema a um jogo que coloca à prova do algodão a
relação primordial entre a sociedade e os seus filhos. Podemos continuar a
varrer para debaixo do tapete e simplificar, fingindo que a depressão não
existe e que a doença só merece atenção diferida. Isto, enquanto enchemos os
nossos filhos de excessos ou de omissões. Podemos querer esquecer que a
transição hormonal e o desequilíbrio químico acompanham os primeiros impactos e
bloqueios, as primeiras emoções de mão cheia. Ajudar a resolver é resistir à
tentação de correr a fechar as portas do armário dos filhos ou de encriptar o
acesso a meia dúzia de passwords. Porque se um dia conseguirmos fechar a Web,
iremos perceber que o que verdadeiramente nos falta é a rede.
O
autor escreve segundo a antiga ortografia
*Músico
e advogado
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