Alfredo
Maia*, jornalista | opinião
Tenho
conhecimento de vítimas indirectas deste processo, de pessoas que puseram termo
à vida, em desespero». Não sabemos por quanto tempo a afirmação, peremptória, do presidente do PSD ficará na
história do Jornalismo e da Política, nem se algum dia será caso de estudo por
algum praticante de ciências da comunicação e/ou de ciência política.
Pronunciada após uma visita aos Bombeiros Voluntários de Castanheira de Pera, a
afirmação de Pedro Passos Coelho ficará seguramente na memória de muitos como uma
chocante expressão do cinismo predador de sentimentos e da mais descarada
mentira, explorando a dor alheia para exclusivo proveito mediático.
Estiveram
bem os jornalistas que lhe pediram que fosse mais específico em tão graves
declarações – quantos?, onde? – e cumpriram o seu dever de cotejar a afirmação
e buscaram informações junto de outras fontes, incluindo autarquias e Segurança
Social.
Mas
o gravíssimo incidente, que não teve de Passos Coelho a exigível retractação,
antes um soberbo pedido de desculpas «por ter utilizado uma
informação que não estava confirmada», segundo se explicou muitas horas depois
de desmascarado o embuste, deve fazer-nos reflectir sobre os elevadíssimos
riscos da roleta-russa na qual alguns dirigentes partidários e o sistema
mediático jogam a credibilidade da política e do Jornalismo.
Talvez
a manifesta insensibilidade e a grosseira tentativa de Passos Coelho de
manipular as emoções do público, usando a tragédia do incêndio de Pedrógão
Grande, pudessem ter sido contidas se a comunicação política não dependesse
tanto do circo mediático e se o líder do PSD e outras figuras fossem capazes de
reprimir a pulsão do soundbite.
Ganhar-se-ia
mais, sobretudo, se os media não cultivassem uma doentia atracção por
frases de forte impacto, cumpliciando-se com os respectivos autores, e,
especialmente, se resistissem ao modelo da comunicação instantânea e os
jornalistas tivessem mais vontade – e também condições! – de privilegiar
estratégias de recuo, ponderação, verificação e contrastação de informações
antes de as servir ao público.
O
certo é que o aparato mediático, que funciona frequentemente em roda livre e
indiferente ao freio da responsabilidade ética, vinha de mais de uma semana de
intensa cavalgada, desde que, com violência inaudita, o incêndio de Pedrógão,
rapidamente alastrado aos municípios vizinhos, arremeteu por montes e vales,
ceifou vidas, destruiu famílias, devorou árvores e casas e estendeu um manto de
cinzas por dezenas de milhares de hectares de espaços florestais e rurais.
Bastou
o cenário de destruição brutal, a ideia de caos até ali inimaginada, a
desolação e o sofrimento. No terreno, repórteres aturdidos, excitados pela
dimensão da tragédia, como se fora o caos apocalítico, ou cilindrados pelo rolo
compressor da luta pelas audiências, foram atiçados contra as presas fáceis e
desprotegidas que o teatro de operações lhes oferecia, tentados ou forçados a
mostrar tudo e de forma intensa, impiedosa, desprovida de sentido de pudor e de
respeito pela dor alheia.
Não
há memória de tamanha extensão e intensidade de críticas, no espaço
público, ao trabalho de jornalistas no terreno. Uns, porque repetiam até à
exaustão um roteiro inútil de vulgaridades a encher o tempo; outros, porque
estavam a milhas de descodificar e compreender os acontecimentos; outros,
porque foram longe de mais na exibição gratuita de cadáveres e na exploração
das tendências mórbidas de espectadores, ouvintes e leitores, que seguramente
garantem proventos comerciais mas estão longe de fazer deles cidadãos
verdadeiramente informados e conscientes.
Na
realidade, foram forçados limites de bom senso, de respeito pelos direitos das
vítimas e dos familiares, tendo sido também violadas normas essenciais da
deontologia da profissão.
Houve
muito quem exigisse averiguações expeditas e reclamou castigos exemplares; mas
pouco quem propusesse reflexões sobre o contexto brutal do sucedido, as
condições de produção dos media, e em particular as condições de trabalho
dos jornalistas – das várias formas de precariedade à supremacia da lógica
comercial sobre a contenção deontológica, passando pelas deficiências de
formação, pelas vulnerabilidades à voragem da concorrência e pela escassa
autonomia editorial individual, condicionada pela dependência hierárquica
contaminada por conceitos e propósitos estranhos ao Jornalismo.
Assim
como se desvaloriza muito do trabalho bem feito, profissionalmente empenhado em
narrar os acontecimentos com o rigor possível, em procurar explicar as causas
estruturais e conjunturais da tragédia (e foram tantas e tão graves!), em
problematizar o (des)ordenamento do território e da floresta e a organização da
resposta do socorro de emergência, em escrutinar decisões e políticas públicas,
contribuir para o esclarecimento das populações sobre riscos, prevenção e
autodefesa, ou mesmo em dar rosto e voz a quem sofreu sem transigir no cuidado
ético.
Os
acontecimentos intensos e dramáticos destes dez dias e o aparato mediático
montado em torno deles estão recheados de elementos para análise de desvios e
erros – do sensacionalismo dos media à omnipresença de altas
individualidades no terreno, em particular do Presidente da República,
incluindo junto do posto de comando operacional – que seria muito útil
concretizar.
Talvez
aprendêssemos todos pelo menos um pouco com as lições do fogo.
*AbrilAbril,
em 27.06.17 – Na foto: Pedro Passos Coelho, presidente do PSD, fala à
comunicação social durante a visita ao quartel dos bombeiros de Castanheira de
Pera (26 de Junho de 2017) Créditos Paulo Novais / Agência LUSA
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