Mais
de 300 espaços ocupados redesenham a capital da Catalunha e expressam outra
lógica urbana, não regida pela propriedade. Eis a história e o sentido de três
delas
Descemos
do metrô na periferia de Barcelona, perto das montanhas e longe das praias e do
centro abarrotado de turistas da capital catalã. Com cerca de dez minutos de
caminhada entre asfalto, passarela e caminho de terra, podemos visualizar Can Masdeu.
Uma
edificação grande, cor de terra, onde se celebram quinze anos de uma
resistência histórica. O local foi uma casa de campo e sede de um leprosário
administrado pela Igreja até 1960. O edifício abandonado por décadas foi
ocupado no fim de 2001 por moradores de Barcelona, que começaram ali a
construção de um espaço autogestionado que hoje é reconhecido como exemplo e
inspiração. Se autodefine como “um ato de desobediência criativa ao mundo do
dinheiro, da fumaça e regulamentos, do ruído e da velocidade”. O conceito é o
do “rurbano”, o rural junto e misturado com o urbano.
O
vale onde está instalado possui 35 hectares que hoje fazem parte de uma zona de
parque natural. Desses, três hectares são parte cultivável do sítio ocupado.
Uma
das atividades ali desenvolvida é a horta comunitária, que envolve não só os
moradores da ocupação, mas também muitos vizinhos do bairro. Além da horta, em
Can Masdeu também se busca implementar outras tecnologias ecológicas, como
banheiro seco, energias renováveis, captação de água da chuva, compostagem,
reciclagem e outras práticas ligadas à permacultura. Assim, o espaço também
serve de base para um projeto de educação agroecológica, que desde 2003 já
recebeu inúmeras escolas e outras instituições e grupos interessados.
Dentro
do espaço do Centro Social há o “Ponto de Interação”, com biblioteca, banco de
sementes, ponto de informação sobre agroecologia e repovoamento rural. Fica
aberto todos os domingos, quando Can Masdeu recebe e realiza diversas
atividades recreativas e culturais.
Num
desses domingos, em maio, com programação especial em comemoração aos quinze
anos de resistência, o número de participantes pode ser contado na casa dos
milhares. Durante todo o dia, atividades, almoço com uma paella ecológica e
cerveja artesanal, jogos infantis, debates e shows.
Resistência
heróica e não violenta
Porém
todo esse espaço fabuloso poderia não mais estar nas mãos da cidadania se não
fosse a resistência dos primeiros ocupantes e a mobilização da comunidade local
e redes de apoiadores da cidade. No final de abril de 2002, poucos meses após a
ocupação, foi acatado um pedido de reintegração de posse por parte da entidade
gestora do antigo hospital e proprietária do terreno.
Diante
da iminente ação policial, os ocupantes criaram estratégias não violentas de
resistência, inspiradas sobretudo nas ações de movimentos ecologistas de outros
países europeus. “Não se tratava de um juízo moral sobre uso ou não da
violência, mas de uma escolha estratégica que fizemos para alcançar nosso
objetivo. Uma estratégia que se adequava ao local e ao momento em que
estávamos, mas que poderia não servir em outro país, outro tipo de espaço ou
outro momento histórico”, explica Arnau Montserrat, um dos que participaram
diretamente do processo.
A
cada manhã, à primeira hora, os ocupantes faziam uma simulação de como agir.
Até que no oitavo dia veio a esperada ação para despejo. Colaboradores do
bairro ligaram: a polícia vai subindo. Dado o aviso, cada um em seus postos: os
ocupantes haviam preparado uma série de posições na casa, cada um se penduraria
com cabos de aço e cordas em algum lugar do edifício: no para-raios, no
terraço, nas paredes, no campanário.
“É
uma estratégia que coloca em risco a integridade física dos manifestantes.
Funcionou num primeiro momento porque nessa época a polícia não estava
acostumada a esse tipo de desalojamento, não tinha um corpo de escaladores
especializado, por exemplo”, disse Martin Shaw, um dos primeiros ocupantes de
Can Masdeu. O Corpo de Bombeiros se negou a apoiar a operação.
Assim
que a polícia chegou, deparou-se com uma série de barricadas, feitas para
ganhar tempo enquanto parte dos resistentes se pendurava em seus postos e
outros desciam pela floresta para chegar ao bairro e mobilizar os vizinhos, a
mídia e outras pessoas solidárias. “Quando chegou a mensagem de que a polícia
estava lá e eles em situação de resistência, o bairro se alvoroçou, subiam
muitas pessoas, cada um fazia o que podia: levar água, comida, roupas de frio,
contatar com a imprensa, chamar pessoas dos outros bairros”, contou uma vizinha
da ocupação de Nou Barris, um bairro com tradição de luta social na cidade.
A
imagem tomaria os jornais por alguns dias: pendurados por cabos de aço na
fachada, os “okupas” lutavam por evitar o despejo de um edifício abandonado por
décadas que havia ganhado nova vida a partir da ocupação. “Dentro dessa
estratégia de resistência escolhida, a presença da mídia foi importante, pois
ao serem gravados, os policiais se sentiam vigiados e evitavam excessos numa
situação que já era bastante tensa”, conta Martín, um dos membros do grupo
fundadores de Can Masdeu.
Ele
lembra que logo a mobilização social fez com que se trouxesse um gerador. Havia
alto-falantes, música, palavras de ordem, e o contato visual era mantido com os
resistentes dependurados, dando força para seguir. Então se formou um
acampamento do lado de fora, deixando a polícia entre os acampados e os
resistentes atados ao imóvel, aumentando a tensão. As forças repressivas
chegaram a dispersar duas vezes os manifestantes.
Não
seria uma luta fácil. Pendurados em posições nada confortáveis, os ativistas ainda
sofreriam com o frio e a chuva que viriam no segundo dia, bem como com as
dificuldades criadas para que recebessem apoios, como casacos, água e comida.
No
terceiro dia, mais gente vinha apoiar Can Masdeu. Valentes, as mulheres pararam
de frente aos policiais para exigir o fornecimento dos itens básicos para os
“pendurados”. Das onze posições iniciais, quatro já tinham sido abandonadas
devido ao esgotamento físico e mental. Era um jogo que se tentava vencer pelo
cansaço.
Quando
as coisas ficavam ainda mais quentes, um novo movimento da polícia. Uma
incerteza, seguida de um cochicho “se van, se van, se van….”, dizem ainda
duvidosos os apoiadores da ocupação. Em seguida, um momento de eufórica
celebração. Diante da repercussão de toda a situação o juiz havia decidido
voltar atrás e parar o despejo, e os policiais abandonaram o local. Haviam
considerado que o direito à vida deveria prevalecer sobre o direito à
propriedade. “Terminou da única maneira que eu podia imaginar: ajudando a
descer meus companheiros de suas posições e comemorando nossa resistência”, diz
Martin. “E quinze anos depois, seguimos aqui”, complementa.
“Para
mim foi uma grande lição descobrir e colocar em prática a desobediência através
da resistência pacífica. Foi um grande exemplo”, relembra a vizinha de Nou
Barris.
VINTE
anos indestrutíveis
No
bairro de Sants, do outro lado da cidade, uma outra okupa ainda mais antiga
comemorou, também em maio, vinte anos de existência, trazendo ainda na sua
estrutura física as marcas de outra resistência emblemática que evitou o
despejo. O Centro Social Autogestionado (CSA) Can Vies teve
parte de seu muro derrubado por um trator em tentativa de despejo e demolição
em 2014, também detida depois de grande mobilização social.
Construído
ao lado da estação de metrô no século XIX, o edifício serviu inicialmente como
armazém e depois como espaço dos trabalhadores metroviários e sede de
sindicato. Uma capela católica localizada ao lado que foi anexada ao prédio e
fazia parte da ocupação teve o teto e a maior parte da parede destruídos na
tentativa de despejo há três anos. Mutirões vêm sendo realizados para a
reconstrução do espaço.
Além
de servir como local de moradia, Can Vies faz parte da Assembleia de Bairro de
Sants e é um espaço que aglutina diversos coletivos e movimentos que confluem
ali e realizam inúmeras atividades, desde oficinas de costura e debates sobre
feminismo até teatro ou festas solidárias em apoio aos refugiados. Passando por
lá, encontramos, por exemplo, uma oficina de jornalismo sendo realizada com
movimentos e ativistas sociais por um jornal alternativo local. Como é comum
entre as okupas, o local funciona por meio de autogestão através de assembleias
sem hierarquias e com a busca de consensos e responsabilidade coletiva entre
todas e todos.
De
fábrica a centro cultural para a vizinhança
A
menos de dez minutos dali, caminhando e já adentrando o bairro de La Bordeta,
encontramos o centro social Can Battló, outra experiência incrível que em junho
comemorava seis anos de existência como espaço autogestionado.
Trata-se
de um imenso espaço que abrigou fábrica de tecido com milhares de funcionários
e hoje é uma das mais importantes construções arquitetônicas em Barcelona que
remontam ao passado industrial da Catalunha. Em 1976, a prefeitura definiu o
local como um espaço para zona verde e para equipamentos socioculturais para a
comunidade.
Os
anos passavam, mas as promessas de colocar o local a serviço do bairro nunca
eram cumpridas. Em 2009, a população organizada por meio da Plataforma Can
Battló és per el Barri deu um ultimato: se até 11 de junho de 2011 não
houvessem as obras e a disponibilização do espaço para a vizinhança, os
próprios moradores entrariam ao recinto para retomá-lo com suas próprias mãos.
Chegando aquela data sem muitas novidades, o prefeitura acabou cedendo parte da
construção, o Bloco 11, para a autogestão da comunidade.
Na
parte já ocupada, que representa apenas uma pequeno pedaço do amplo espaço
da fábrica, há diversos locais ativos e atividades sendo realizadas ao longo
desses seis anos de ação comunitária: auditório, biblioteca, centro de
documentação, bar e espaço de encontros, horta comunitária, parque para
cachorros, quadras esportivas, espaço para famílias e crianças, oficina
mecânica, marcenaria, espaço para exposições, para artes cênicas, para
escalada, uma fábrica coletiva de cerveja artesanal, uma cooperativa agroecológica
e – ufa! – editora e imprensa coletivas.
Tudo
é gerido por meio de uma assembleia geral e de trinta comissões e grupos de
trabalho vinculados a Can Battló, que definitivamente passou a servir ao
bairro, e a seus moradores e à cidade como um todo.
Essas
experiências emblemáticas são apenas três entre as centenas que se desenvolvem
na cidade de Barcelona e seus arredores. Espaços até então inutilizados em
locais em que a especulação imobiliária crescia passam a se tornar centros de
ação e organização comunitária, promovendo formação, cultura e intercâmbio e
fomentando uma cultura política participativa, por meio de assembleias, baseada
em decisões consentidas e responsabilidade coletiva.
Uma
prova de como a cidadania organizada pode transformar os espaços das cidades e
construir o bem comum, que não pertence a ninguém, mas é de todos.
Foto:
A ocupação Can Masdeu, em Barcelona
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