Em
tempos de crise, capital flerta com hiper individualismo. Segundo sua lógica,
competição é o máximo; cabe à cultura, e à religião, aceitar a guerra de todos
contra todos
Boaventura
de Sousa Santos | Outras Palavras
O
social é o conjunto de dimensões da vida coletiva que não podem ser reduzidas à
existência e experiência particular dos indivíduos que compõem uma dada
sociedade. Esta definição não é neutra. Define o social pela negativa, o que
permite atribuir-lhe uma infinidade de atributos que variam de época para
época. É, por outro lado, uma definição eurocêntrica porque pressupõe uma
distinção categorial entre o social e o indivíduo, uma distinção que, longe de
ser universal ou imemorial, é específica da filosofia e da cultura ocidentais,
e nestas só se tornou dominante com o racionalismo, o individualismo e o
antropocentrismo renascentista do século XV, os quais viriam a ter em Descartes
o seu mais brilhante teorizador. Tanto é assim que a máxima expressão desta
filosofia–cogito ergo sum, “penso logo existo”– não tem tradução adequada
em muitas línguas e culturas não eurocêntricas. Para muitas destas culturas, a
existência de um ser individual é não só problemática como absurda. É o caso das
filosofias da África austral e do seu conceito fundamental de Ubuntu, que
se pode traduzir por “eu sou porque tu és”, ou seja, eu não existo senão na
minha relação com outros. Os africanos não precisaram esperar por Heidegger
para conceber o ser como ser-com (Mitsein).
Muito
esquematicamente, podemos distinguir na cultura eurocêntrica que serviu de base
ao capitalismo moderno dois entendimentos extremos do social. De um lado, o
entendimento reacionário, que confere total primazia ao indivíduo e o concebe
como um ser ameaçado pelo social. Segundo tal lógica, os indivíduos, longe de
serem iguais, são naturalmente diferentes e essas diferenças determinam
hierarquias que o social deve respeitar e ratificar. Entre essas diferenças,
duas são fundamentais: as diferenças de raça e as diferenças de sexo. No outro
extremo está o entendimento solidarista, que confere primazia ao social e que o
concebe como o conjunto de regras de sociabilidade que neutralizam as
desigualdades entre os indivíduos. Entre estes dois extremos foram muitos os
entendimentos intermédios, nomeadamente os entendimentos liberais (no plural),
que viram no social o garante da igualdade dos indivíduos como ponto de
partida, e os entendimentos socialistas (também no plural), que viram no social
o garante da igualdade dos indivíduos como ponto de chegada.
Entre
estes dois entendimentos, por sua vez, foram possíveis várias combinações. Com
as revoluções francesa e americana os dois últimos entendimentos passaram a ser
os únicos legítimos no plano ideológico. Foi com base neles que se iniciou a
luta contra a escravatura e a discriminação contra as mulheres. No entanto, ao
contrário do que se supõe, o entendimento reacionário da desigualdade
natural-social entre os indivíduos sempre se manteve como corrente subterrânea.
Até hoje. E é intrigante que assim seja depois de dois séculos de lutas contra
a desigualdade e a discriminação. Houve progressos? E, se houve, por que é que
os retrocessos ocorrem recorrentemente e aparentemente com tanta facilidade? Estaremos
hoje numa fase de retrocesso histórico em que o entendimento socialista se
desfaz no ar e o liberal parece perigosamente ameaçado pelo entendimento
reacionário?
As
respostas a estas perguntas dependem da consideração de vários fatores. Vou
limitar-me a um deles e, por isso, assumo à partida que a minha resposta é
incompleta. O que o pensamento liberal designou por sociedade moderna
democrática e o pensamento marxista por sociedade moderna capitalista foi de
fato uma sociedade cujo modelo de desenvolvimento econômico exigia dois tipos
de exploração da força de trabalho: a exploração de seres humanos teoricamente
iguais aos seus exploradores e a exploração de seres humanos inferiores ou
sub-humanos. Daqui decorreram dois tipos de desvalorização do trabalho: uma
desvalorização controlada, porque regulada pelo princípio da igualdade, e por
isso assente em direitos supostamente universais; e uma desvalorização mais
intensa porque “natural”, exercida sobre seres ontologicamente degradados,
seres racializados e seres sexualizados — basicamente, negros e mulheres. O
capitalismo não inventou nem o colonialismo (racismo, escravatura, trabalho
forçado) nem o patriarcado (discriminação sexual) mas ressignificou-os como
formas de trabalho super-desvalorizado, ou mesmo não pago ou sistematicamente
roubado. Sem essa super-desvalorização do trabalho de populações tidas por
inferiores não seria possível a exploração rentável da força de trabalho
assalariado em que tanto liberais como marxistas se concentraram, ou seja, o capitalismo
não se poderia manter e expandir de forma sustentada.
Mas,
se assim foi, não terá sido apenas nos alvores do capitalismo? Em meu entender,
não, e só o domínio do pensamento liberal e do pensamento marxista nos impediu
de ver que desde o século XV, pelo menos, até hoje vivemos em sociedades
capitalistas, colonialistas e patriarcais. Obviamente que ao longo dos séculos
houve lutas e movimentos sociais que eliminaram algumas das formas mais
selvagens de desvalorização humana, mas só o domínio daquelas duas formas de
pensamento moderno foi capaz de nos criar a ilusão de que a eliminação dessa
desvalorização seria progressiva e até acabaria um dia, mesmo sem o capitalismo
acabar.
Ledo
engano. O que aconteceu foi a substituição, real ou apenas jurídica, de alguns
instrumentos de desvalorização por outros ou a deslocação do exercício da
desvalorização de um campo social para outro ou de uma região do mundo para
outra. Não ter isto em conta fez com que confundíssemos o fim do colonialismo
histórico (de ocupação territorial por país estrangeiro) com o fim total do
colonialismo, quando de facto o colonialismo continuou sob outras formas:
neocolonialismo, colonialismo interno, imperialismo, racismo, xenofobia, ódio
anti-imigrante e anti-refugiado, e, para espanto de muitos, a própria
escravatura, como a ONU hoje reconhece. Da mesma forma que a discriminação
contra as mulheres deixou de se manifestar no sufrágio eleitoral e nos direitos
sociais, mas continuou sob as formas de pagamento desigual para trabalho igual,
assédio sexual e violência, da doméstica ao gang rape e feminicídio.
Esta cegueira analítica impediu-nos de dar relevo à composição etno-cultural da
força de trabalho desde o início — por exemplo, às diferenças entre
trabalhadores ingleses e irlandeses, ou [na Espanha] entre trabalhadores de
Castela e da Andaluzia.
Por
que razão é este argumento mais facilmente aceito hoje do que há vinte anos? Em
meu entender, isso deve-se ao facto de a atual fase do capitalismo exigir hoje,
talvez mais do que nunca, a super-desvalorização da força de trabalho e a
submissão de vastas populações à condição de populações descartáveis,
populações a quem se pode roubar o trabalho e sujeitar a trabalho forçado ou
“análogo” a trabalho escravo; populações eliminadas por guerras onde só morrem
civis inocentes, abandonadas à sua “sorte” em caso de acontecimentos climáticos
extremos ou encarceradas, como acontece a boa parte da população jovem negra
dos EUA. Estes fatos devem-se à conjugação de dois fatores epocais e, portanto,
de larga duração: as revoluções eletrônicas e digitais e o domínio global do
capital financeiro, o setor do capitalismo mais anti-social por criar riqueza
artificial com escassíssimo recurso à força de trabalho.
A
super-desvalorização da força de trabalho e o caráter descartável de vastas
populações estão hoje a ser ideologicamente respaldados pela reemergência do
pensamento reacionário da desigualdade natural-social entre os indivíduos, o
qual sempre se manteve como corrente subterrânea da modernidade ocidental. Ele
reemerge sob formas tão diferentes que facilmente se disfarçam de desvios
conjunturais ou idiossincrasias sem significado. Aflora no crescimento da
extrema-direita europeia e brasileira e do supremacismo branco nos EUA. Aflora
na chocante virulência classista, racista, sexista e homofóbica de
organizações brasileiras de extrema-direita, algumas delas financiadas
por agências públicas e privadas norte-americanas. Aflora na
generalização da precariedade do trabalho assalariado e da transformação dos
direitos dos trabalhadores em privilégios ilegítimos. Aflora em sentenças
judiciais que invocam a Bíblia para justificar a inferioridade das mulheres.
Aflora no aumento do trabalho escravo. E aflora, pasme-se, na relegitimação do
colonialismo histórico, um fenômeno que pela sua aparente novidade merece uma
referência especial.
Não
me refiro a políticos como o presidente Nicolas Sarkozy, que em 2007 dissertou
em Dakar sobre as vantagens do colonialismo para os povos africanos, cuja
tragédia seria não terem até hoje entrado plenamente na história. Refiro-me à
justificação científica do colonialismo histórico e à sua invocação como
solução para os “Estados falidos” do nosso tempo. Refiro-me ao artigo de Bruce
Gilley, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual
de Portland, publicado em 2017 na respeitada revista Third World Quarterly dedicada
aos problemas pós-coloniais. O artigo, intitulado “The Case for Colonialism”,
defende o papel histórico do colonialismo e advoga que se volte a recorrer a
ele para resolver problemas que os “estados falidos” do nosso tempo não podem
resolver. Mais especificamente, propõe três soluções: “recomendar modos de
governação colonial; recolonizar algumas áreas; criar novas colônias de raiz.”
A polêmica que o artigo suscitou foi tão grande que o autor acabou por retirar
o artigo (foi retirado da versão eletrônica da revista, mas pode ser lido na
versão em papel). A minha suspeita é, no entanto, que o artigo, longe de ser
apenas uma prova das deficiências do sistema de avaliação “anônima” de artigos
científicos, é um sintoma da época, e a polêmica que ele levantou não ficará
por aqui.
O
que designo por desimaginação do social é a imaginação anti-social do
social. Segundo ela, numa sociedade de desigualdade natural-social entre os
indivíduos, a responsabilidade coletiva pelos males da sociedade não existe. O
que existe é a culpa individual daqueles que não querem ou não podem competir
por aquilo que a sociedade nunca oferece e apenas concede a quem merece. Os que
fracassam, em vez de apoiar-se na sociedade, devem apoiar-se nas religiões que
por aí pregam a teologia da prosperidade e consolo para quem não prospera. A
educação, em vez de criar a miragem da responsabilidade cidadã e da
solidariedade social, deve ensinar os jovens a ser competitivos e saber que
estão numa guerra de todos contra todos.
Se
não é isto que queremos, é bom termos bem a noção do inimigo contra o qual
temos de lutar com todas as forças democráticas, e sem complacência.
Foto:
A foto não é do século 19. São crianças trabalhando em Bangladesh, dez anos
atrás
*Boaventura
de Sousa Santos é doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale,
professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra,
diretor dos Centro de Estudos Sociais e do Centro de Documentação 25 de Abril,
e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa -
todos da Universidade de Coimbra. Sua trajetória recente é marcada pela
proximidade com os movimentos organizadores e participantes do Fórum Social
Mundial e pela participação na coordenação de uma obra coletiva de pesquisa
denominada Reinventar a Emancipação Social: Para Novos Manifestos.
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