Durante o ano de 2017, com
epicentros em dois momentos que ultrapassaram as esferas meramente
propagandística e doutrinária, a União Europeia reforçou de maneira
sub-reptícia, à revelia dos cidadãos, o posicionamento no caminho do
federalismo.
José Goulão*
Numa simulada fuga para a frente
através da qual pretendem responder, como uma panaceia para todos os males, ao
trauma do Brexit, à deterioração da credibilidade interna, à teimosia da crise
em banho-maria e à insignificância da influência nos assuntos internacionais,
as instituições europeias continuam a definir metas sem solidificar as
transições.
Arrastando-se num aparente
fatalismo suicida, a União Europeia persiste em repetir erros sem olhar para as
misérias que preenchem a sua história, nem delas retirar lições e ilacções. Sem
necessitarmos de embrenhar-nos nas patranhas míticas dos «pais fundadores», que
verdadeiramente correspondiam ao objectivo de transformar a Europa numa réplica
capitalista decalcada dos Estados Unidos da América - e de que o federalismo de
hoje traduz um seguidismo reajustado aos dogmas neoliberais -, basta-nos recuar
duas décadas e meia para identificar situações de deriva oportunista que só
poderiam degenerar no caos presente - o qual, portanto, não é obra do acaso. As
transformações que arrastaram os povos europeus para os efeitos perversos e
antidemocratas do Tratado de Maastricht; os mecanismos ditatoriais disfarçados
nas linhas e entrelinhas do Tratado de Lisboa; a imposição da moeda única no
topo dos «critérios de convergência» movidos por intenções escravocratas; os
alargamentos determinados por ambições neocoloniais, que não hesitaram sequer
na destruição terrorista e sangrenta da Jugoslávia e em servir-se do
restauracionismo fascista, trouxeram a União Europeia primeiro até à famigerada
«crise» e depois ao descalabro presente, que vinha já no ventre daquela.
Este quadro de anarquia, confusão
e crise, porém, apenas contradiz o discurso oficial e propagandístico da União,
que não os verdadeiros objectivos da sua existência e da sua prática; por sua
vez escondidos dos cidadãos mediante uma estratégia não oficialmente assumida,
logo clandestina.
«O caminho que continua a
balizar-se em direcção ao verdadeiro e único objectivo (...) é o da instauração
do federalismo.»
O caminho que continua a
balizar-se em direcção ao verdadeiro e único objectivo, a instauração plena da
anarquia económica e financeira correspondente à definição, sem sofismas, do
conceito de «livre mercado», é o da instauração do federalismo.
É verdade que a palavra não se lê
e ouve amiúde; tão-pouco é possível detectá-la nas declarações e documentos
oficiais da eurocracia. Nunca admitir a existência de objectivos federalistas
na estratégia em desenvolvimento é uma regra de ouro tacitamente respeitada por
responsáveis encartados da União. A propaganda de tal objectivo continua a ser
apenas um adorno semântico das inflamadas arengas «europeístas» pregadas por
elites bem-pensantes, em correlação impossível com princípios como a
salvaguarda dos direitos humanos, a plenitude da democracia e a fraternidade
entre os povos. E assim, por ínvios caminhos, iremos encontrar o federalismo
como suprassumo do «europeísmo» libertador, irmanados no berço da mais desumana
escravocracia e ao longo de um percurso onde se escondem da opinião pública os
reais objectivos, as verdades e os desfechos que possam ensombrar o belo
discurso democrata e humanista cultivado pela União Europeia.
Que não se acusem, porém, os
dirigentes europeus de estarem envolvidos nesta mistificação. Eles não seguem
nem assumem o federalismo: apenas enunciam medidas que possam supostamente
consolidar a União Europeia, transmitir-lhe um dinamismo económico e financeiro
competitivo com outros blocos mundiais e assegurar-lhe um papel determinante
nos mecanismos de tomada de decisões de âmbito global. Se essas medidas
correspondem a passos federalistas consumados, já não é um problema deles.
Coincidências sempre houve; e políticas de factos consumados também.
A mais elaborada dessas
coincidências recentes - e que poderá ficar para a história como o momento em
que a União Europeia deu novo passo no caminho do federalismo, ainda e sempre
de maneira encapotada, foi o discurso sobre o estado da União proferido pelo
presidente da Comissão Europeia em Setembro de 2017. Tratou-se de um documento
invulgarmente doutrinário para os hábitos dos eurocratas, com orientações
estratégicas na perspectiva de 2025, uma espécie de novo grande salto em frente
sem inquietações de maior com o que para trás ficou desconjuntado, afinal quase
tudo.
Jean-Claude Juncker não proferiu
uma única vez as palavras «federalismo» ou «federalista». Logo a seguir, porém,
não faltaram palavras saudando entusiasticamente o seu discurso «sólido»,
«inteligente» e, sobretudo, «astuto», elogios esses soltados das bandas e correntes
mais fervorosamente «europeístas», logo federalistas.
«Vale isto por dizer que os
"europeístas" impenitentes (...) não vêem qualquer inconveniente em
que a federalização se processe por cima e contra os povos».
Como na altura se disse, o
presidente da Comissão não tinha condições nem estatuto para assumir
isoladamente uma comunicação com este conteúdo, que só pode resultar de
congeminações conciliares de personalidades, entidades e círculos mais ou menos
encobertos que põem e dispõem na e da União Europeia.
Como é próprio do funcionamento
da União, o tipo de proclamação feita por Juncker e as correspondentes reacções
oficiais, oficiosas ou amestradas já não permitem interpretá-la como uma fonte
de sugestões ou propostas. Transporta um conteúdo dogmático impondo medidas
cuja aplicação poderá ser, a prazo, mais ou menos polémica, porém,
indiscutível, inquestionável e à prova de qualquer eventual obstáculo que surja
fazendo funcionar o que resta de democracia.
Não é por acaso que o adjectivo
«astuto» tenha sido aplicado ao discurso de Juncker e logo por uma
personalidade como Francisco Assis, europeísta e federalista fervoroso,
militante acima de qualquer suspeita do partido único conhecido como «bloco
central» ou «arco da governação».
Recorda-se que entre as medidas a
impor citadas por Juncker estão, por exemplo, a criação do cargo de ministro
europeu da Economia e Finanças. E também de um «Serviço Europeu de
Inteligência», isto é, uma superpolícia política e de espionagem continental
alegadamente subordinada ao pretexto canónico: o combate ao terrorismo,
fenómeno ambivalente pelo qual também são reconhecidamente responsáveis algumas
potências europeias e da NATO envolvidas nas guerras de agressão conduzidas
pelos Estados Unidos.
Dois meses depois da homilia de
Juncker, em Novembro, 23 membros da União Europeia assinaram a Pesco, sigla
anglo-saxónica para Cooperação Permanente Estruturada ou, muito simplesmente, a
«Europa da Defesa». Na prática, um subproduto federalista europeu da NATO, a
subordinação de uma união militar de âmbito continental à doutrina agressiva do
Pentágono. A aplicação do termo «Defesa» a esta estrutura, no mesmo léxico em
que a NATO diz cumprir apenas uma doutrina «defensiva», nunca ofensiva, expõe a
articulação das duas entidades ou a «complementaridade» da Pesco em relação à
Aliança Atlântica, como explicou o secretário geral atlantista, Jens
Stoltenberg, durante o acto de assinatura da «Europa da Defesa», em pleno
Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros da União. O governo português
não figura entre os signatários originais da Pesco - restando agora saber
quanto tempo dura este assomo de dignidade e independência nacional, ou se é
disso que se trata.
Existindo já uma espécie de
ministro dos Negócios Estrangeiros da União Europeia - o Alto Representante da
UE para a Política Externa e de Segurança -, uma moeda única, um banco central
e uma união bancária; passando a existir um Ministério da Economia e Finanças
da União, uma estrutura de «Defesa» e uma polícia de espionagem federalizada,
constata-se que a construção da Europa federal já vai avançada, e logo nas
áreas neoliberais mais estratégicas: políticas monetária, económica e
financeira; políticas externa, de defesa, de segurança e de espionagem.
«No ano de 2017, em plena Europa
dita da democracia e das liberdades, deram-se mais alguns passos decisivos no
sentido da liquidação da democracia e da erradicação das liberdades.»
Pode deduzir-se que o resto virá
por acréscimo; o mais importante está feito, contemplando precisamente as estruturas
económicas, monetárias e financeiras unificadas, protegidas por ampla cobertura
nas áreas da segurança interna, repressão e espionagem, política externa,
expansão e rapina, através da polícia e do exército federais, sendo este um
braço da NATO.
Vale isto por dizer que os
«europeístas» impenitentes, incluindo os românticos e mais progressistas que
ninguém, projectando-se no paraíso de uma «Europa de povos federados», não vêem
qualquer inconveniente em que a federalização se processe por cima e contra os
povos, pelos imperadores da economia, os magnatas da especulação e respectivos
protectores encarregados da repressão de índole ditatorial, da espionagem, das
guerras e do expansionismo. E que tudo assim continue até à federalização
total, mecanismo da exploração absoluta e global dos povos como estado supremo
do «mercado livre», o capitalismo sem leis nem regras; talvez fiscalizado
apenas pelos nossos bem conhecidos reguladores de faz-de-conta.
De que modo foram auscultados os
cidadãos europeus sobre estas transformações profundas que se reflectem, como
nenhumas outras, nas suas vidas quotidianas e implicam a perda de parcelas
fulcrais da nacionalidade, soberania, privacidade, liberdade e intervenção
democrática? Tanto quanto foram auscultados na adesão à União, à moeda única, à
união bancária, à perda da autonomia orçamental, ao Tratado de Maastricht, ao
Tratado de Lisboa, etc., etc. Isto é, nada. No paraíso da democracia
representativa, que assim se apresenta a todo o mundo, nem que para isso seja
necessário multiplicar guerras de agressão e violar desde os direitos humanos
ao direito internacional, a vontade dos cidadãos não conta para nada.
No ano de 2017, em plena Europa
dita da democracia e das liberdades, deram-se mais alguns passos decisivos no
sentido da liquidação da democracia e da erradicação das liberdades. Em nome da
«libertação do mercado», que se dará como plenamente satisfeito - e livre -
numa sociedade escravocrata federal, enfeitada por um lote sortido de direitos
formais para todos os gostos e proveito de poucos.
*AbrilAbril em Pravda.ru
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