sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Turquia reivindica a liderança muçulmana


M K Bhadrakumar [*]

A Declaração de Istambul da Organização da Conferência Islâmica (OCI) afirmando Jerusalém Leste como a capital do estado da Palestina é um evento histórico. A iniciativa turca de reunir uma cimeira extraordinária em Istambul alcançou o seu objectivo. A cimeira foi bem participada, embora convocada com pouca antecedência.

Uma ausência notável foi a do rei Salman da Arábia Saudita. O ministro saudita para assuntos religiosos aparentemente representou o seu país. Na terça-feira, a Turquia provocou abertamente a Arábia Saudita. O ministro dos Negócios Estrangeiros Mevlut Cavusoglu disse: "Alguns países árabes mostraram respostas muito fracas (sobre Jerusalém). Parece que alguns países são muito tímidos em relação aos Estados Unidos". Ele acrescentou que a Arábia Saudita ainda tinha de dizer como participaria.

A Declaração de Istambul diz que "rejeita e condena nos mais fortes termos a decisão unilateral do presidente dos Estados Unidos da América reconhecendo Jerusalém como a assim chamada capital de Israel, o poder ocupante". Ela insta o mundo a reconhecer Jerusalém Leste como a capital ocupada do estado palestino e convida "todos os países a reconhecerem o estado da Palestina e Jerusalém Leste como a sua capital ocupada".

A OCI colocou a fasquia num nível elevado. Mas a OCI é em grande medida ineficaz e suas declarações permanecem só no papel. Haverá agora qualquer coisa diferente? Sim, poderia ser diferente. Uma é que a Declaração de Istambul numa penada desmascara a pretensão dos Estados Unidos de ser o condutor do processo de paz do Médio Oriente. O direito de acção (locus standi) de Washington como mediador acabou por ser questionado nada menos que o presidente palestino Mahmoud Abbas, o qual geralmente tem sido encarado como um serviçal (cats-paw) da inteligência dos EUA (e israelense) e da Arábia Saudita.

O facto de Abbas ter endurecido só reflecte o facto de que o terreno debaixo dos seus pés mudou. A opinião popular no Médio Oriente muçulmano tornou-se assim esmagadoramente anti-americana. Isto tem implicações geopolíticas. De modo interessante, Moscovo enviou um representante para assistir como observador a cimeira da OCI em Istambul.

Israel ultimamente estava a ganhar a confiança de que podia romper o isolamento e formar uma quase-aliança com a Arábia Saudita. Não era uma esperança realista e baseava-se na personalidade política do jovem Príncipe Coroado saudita. Mas tais esperanças devem agora ser desactivadas. Israel também pode ter de viver com a realidade de uma forte presença iraniana na Síria nos próximos anos. Claramente, Israel excedeu-se. É duvidoso que Israel ganhe alguma coisa com a decisão de Trump sobre Jerusalém. Mesmo uma relocalização da Embaixada do EUA em Tel Aviv pode levar ano – e, por tudo o que se sabe, mantida indefinidamente em suspensão por Washington por uma questão de conveniência.

O que se sabe ser ainda desconhecido é quanto ao manto da liderança no mundo islâmico. A cimeira de Istambul foi uma iniciativa pessoal do presidente Recep Erdogan. Um inquérito de opinião efectuado pela Pew descobriu que Erdogan é hoje a figura mais popular no Médio Oriente muçulmano.

Certamente Erdogan está a fazer uma determinada inflexão para reivindicar a liderança do mundo muçulmano, como costumava acontecer sob os sultões otomanos. Com a Arábia Saudita enredada numa transição difícil e com o seu futura cada vez mais incerto (mais ainda com a guerra brutal no Iémen em que está atolada), a hora da Turquia pode ter chegado. A plataforma principal de Erdogan é a sua ênfase na unidade da "Ummah". O seu toque de clarim para deixar as políticas sectárias para trás obteve grande ressonância. E aqui a Turquia e o Irão estão, também, totalmente de acordo.

Um papel de liderança será conveniente para Erdogan, pois dá-lhe "profundidade estratégica" em relação ao Ocidente, além de consolidar a sua base de poder dentro da Turquia. Por outro lado, ele pode tomar sua autoridade califal seriamente para relançar a OCI como uma ferramenta intervencionista para enfrentar questões muçulmanas por todo o mundo. Países como Myanmar ou Índia sentem a pressão.

De modo geral, um período muito transformativo está pela frente no mundo muçulmano. Trump não teria antecipado tudo isto a jusante quando abriu a caixa de Pandora. Ele não é conhecido por ser um grande estratega. A agência de notícias Anadolu apresentou um comentário incisivo sobre como o sentido de obrigação de Trump para com o lobby judeu levou-o quase totalmente para esta fatídica decisão sobre Jerusalém. Ler aqui: Trump's decision: Inside story, expected consequences . 

13/Dezembro/2017

[*] Analista político, antigo diplomata indiano.

Ver também: 

O original encontra-se em blogs.rediff.com/mkbhadrakumar/...

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ 

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