domingo, 30 de dezembro de 2018

Portugal | Um castigo que poderia ter algumas virtudes


Jorge Rocha | opinião

Falhada a arruaça dos coletes amarelos, já os mesmos mentecaptos se apressam a convocar nova algazarra tendo o culto de Salazar como motivação. A notícia fez-me recordar uma outra, com alguns dias, sobre um contumaz caçador furtivo a quem um juiz norte-americano condenou a prisão efetiva e à obrigatoriedade de ver diariamente «Bambi», o filme dos estúdios Disney em que é antológica a cena da morte da mãe do jovem protagonista.

Não sei se a receita conseguirá aos pretendidos objetivos do magistrado, mas ele terá, porventura, recordado como o protagonista da «Laranja Mecânica» mudara de comportamento depois de sujeito a tratamento similar. 

Por isso mesmo não seria mal pensado que os organizadores e participantes desse novo burburinho, fossem encarcerados em nome de uma Constituição, que proíbe explicitamente as atividades fascistas, recebendo como dose complementar a contínua visualização da série de Fernando Vendrell sobre Natália Correia, Vera Lagoa e Snu Abecassis, para entenderem quão indigente era o regime, que pretendem homenagear.

jorge rocha | Ventos Semeados

2019 | Apesar de tudo, esperança


Manuel Carvalho da Silva | Jornal de Notícias | opinião

Esperança, diz-se muitas vezes, é o mínimo que podemos desejar uns aos outros na véspera do novo ano.

Para milhões e milhões de seres humanos, velhos e novos, que se encontram acantonados, despidos de bens, de direitos, de instrumentos para ação e de condições mínimas para encarar o futuro, a recuperação da esperança poderá constituir o presente mais valioso. Mas isso só será possível se outros, voluntariamente ou obrigados, iniciarem a reposição dos roubos que lhes fizeram.

A esperança é indispensável para podermos vencer os medos vindos dos bloqueios, das nuvens negras dos tempos que estamos vivendo, dos velhos e novos "desafios mágicos" colocados às sociedades humanas, muitas vezes apresentados apenas nas suas variáveis apocalíticas com o propósito de nos subjugarem e aprisionarem. Esperança ativa construída a partir da inteligência e das capacidades de cada ser humano - convocado para agir individual e coletivamente - porque é a partir daí que se gera a confiança, a ousadia sustentada em valores, capaz de realizar a mudança radical, de transformar a sociedade, de catapultar-nos para vidas mais felizes.

Procuremos ousar exigir que os discursos militaristas e belicistas a ocidente e a leste, a norte e a sul não se transformem em escaladas de rearmamento e de guerra sempre iminente, e que diminua a imensidão de conflitos armados e de situações de sofrimento em que se encontram muitos povos. É possível valorizar e credibilizar a política pela participação dos cidadãos e pela exigência aos atores políticos de comportamentos com ética, rigor e empenho no bem comum. Está ao nosso alcance colocar o poder político a sobrepor-se ao poder económico e financeiro e a política ao serviço da paz, da construção do Estado social de direito democrático.

Vamos ter a esperança ativa de que alguma coisa seja feita para evitar uma nova crise financeira, em vez de se esperar por ela como se de uma fatalidade se tratasse; de que as alterações climáticas possam ser reconhecidas e combatidas, no pouco tempo que ainda temos para o fazer; de que não continue a aumentar o número de cidadãos que, em desespero, se deixam levar pelo fanatismo autoritário dos novos messias políticos da Direita e da extrema-direita que vêm alimentar o racismo, a xenofobia, o ódio entre grupos de pessoas e povos.

Vamos ter a esperança de que em Portugal não ocorra um retrocesso. Que seja possível continuar a desejar e a conseguir mais emprego e menos desemprego, salários dignos e menos desigualdades, mais e melhor justiça e serviços públicos capazes de responder às necessidades de todos, menos apropriação do que é de todos por interesses privados poderosos, menos emigração e mais regressos dos que foram expulsos para o estrangeiro contra a sua vontade.

Pode parecer que nos votos de ano novo como estes todos, ou quase, estamos de acordo. Que não há aqui política, nem de Esquerda, nem de Direita. Infelizmente, não é assim. Para se conseguir que os povos (e cada ser humano) tenham condições e razões para ter esperança é preciso contrariar muita coisa e vencer, em batalhas bem duras, interesses poderosos, egoísmos e muitos indivíduos que atribuem a si mesmos o direito a explorar uma imensidão de homens e mulheres. Estes votos de esperança convidam-nos a construir identidades coletivas, a afirmar a solidariedade transformadora, a combater o individualismo exacerbado e a pobreza, a uma luta sem tréguas pela dignidade e pelos direitos humanos no trabalho. Convidam-nos ao combate ideológico e à preparação e execução de desafiadores programas sociais e políticos.

2019 será um ano de escolhas políticas importantes. Relembremos o que nos disseram nos anos da troika e da governação da Direita: que a culpa dos problemas que vivíamos era do povo, logo todos os sacrifícios se justificavam e tínhamos que desistir da esperança. O que nos dizem agora? Que o problema é a criação de expectativas (ilusões, dizem eles). E o que nos propõem? Que desistamos da esperança, do sonho de viver melhor e mais felizes.

A mobilização e a ação cívicas e um debate político de qualidade podem consolidar, renovar e reforçar alternativas políticas de esperança, e evitar o retrocesso.

*Investigador e professor universitário

Brexit, piratas informáticos e populismo. O que preocupa Juncker em 2019?


Prestes a abandonar o cargo enquanto Presidente da Comissão Europeia, Jean Claude Juncker conta a um jornal alemão quais sãos as suas principais preocupações e os seus objetivos nesta fase final do mandato.

Jean Claude Juncker nega que a União Europeia esteja tentar dissuadir o Reino Unido de abandonar a Europa comunitária. Em entrevista ao jornal alemão Welt am Sonntag, o Presidente da Comissão Europeia reconhece que está preocupado com a coesão entre os 27 estados membros depois do Brexit, nada que faça com que os líderes europeus queiram, nesta altura, impedir a saída do Reino Unido.

O Presidente da Comissão Europeia garante que o objetivo da União Europeia é manter a coesão interna e começar a discutir novos traços com o Governo de Londres.

Juncker diz que respeita o resultado do referendo britânico e desmente que a União esteja a tentar manter o Reino Unido a todos os meios.

O líder europeu admite ainda que a União está pronta para negociar um novo acordo com a Grã-Bretanha, assim que o parlamento britânico aprovar o acordo de divórcio.

A cinco meses das Eleições Europeias, Juncker diz ainda estar preocupado com os desafios da Europa, a começar pela divisão dos europeus alimentada por movimentos populistas.

A crise política da Roménia é outra das preocupações, numa altura em que o Governo de Bucareste se prepara para assumir a presidência rotativa da União Europeia.

No plano externo, e no que toca ao acordo comercial sobre as tarifas dos carros, Donald Trump é outra dor de cabeça. Juncker espera que o Presidente norte-americano mantenha a palavra, caso contrário não se sente obrigado a honrar os compromissos com Washington.

O Presidente da Comissão Europeia manifesta também receio de que grupos de piratas informáticos da China e da Rússia possam influenciar as eleições europeias de 2019.

Maria Miguel Cabo com Sara Beatriz Monteiro | TSF | Foto: Vincent Kessler/Reuters

sábado, 29 de dezembro de 2018

A ladainha: "Feliz Natal e Próspero Ano Novo"

Cid Simões [*]

E com esta frase, que se pretende mágica, vamos despachando, a torto e a direito, amigos e conhecidos ou mesmo aquele em quem tropeçámos e para reforçar as devidas desculpas, desejamos-lhe "um feliz natal e um próspero ano novo". 

Nascemos a ouvir esta ladainha e como se estivéssemos programados a expressão sai-nos assim, fria, sem conteúdo como qualquer slogan publicitário que, por obsessivo, bloqueia a sua percepção.

Das prateleiras retiram-se os bolorentos cartões de "boas-festas" com as já fastidiosas árvores de natal alindadas, despidas ou iluminadas e ainda o bonacheirão pai natal de trenó, com ou sem renas e, mais recentemente, a caixa do correio electrónico fica entulhada de megabytes de bonequinhos saltitantes ou música celestial com o mesmo refrão em todas as línguas: "feliz natal e próspero ano novo".

A comunicação social reedita os clichés poeirentos dos anos anteriores, "o amor às criancinhas e aos velhinhos, os doentinhos retidos no leito e os detidos nos calabouços, os imigrantes e emigrantes longe dos entes queridos, os sem abrigo e os mal abrigados…" enfim, um nunca acabar de piedosas referências que nos pretendem enternecer.

E, no entanto, todos sabem que para milhões de portugueses esses votos caem em urna sem fundo. O Natal sonhado passa distante da felicidade que nos desejam e quanto ao próximo ano a prosperidade não terá lugar, principalmente para a maioria dos que trabalham, dos que se encontram em risco de serem despedidos e muito menos para os desempregados.

Este modo supérfluo de comportamento reflecte o desapego que, cada vez mais, se radica na relação para com os que nos rodeiam.

É indispensável mudar de discurso, deixar cair o bla-blá-blá das boas intenções, encarar a realidade de frente. Garantir a todos a quem nos dirigimos que podem contar connosco para encontrar um caminho justo às dificuldades que nos soçobram.

Afirmar-lhes que não baixaremos os braços na luta contra a injustiça provocada pelas classes que se apropriaram da nossa força de trabalho e com essa mais-valia nos oprimem.

Garantir-lhes que tudo faremos para travar o passo aos partidos da direita e aos mascarados de esquerda que nos têm roubado, consoada após consoada, e que, de ano para ano, nos arrastam para o fosso social que é urgente recusar.

Comprometermo-nos que seremos solidários não com palavras que o vento leva, mas com acções que ficam gravadas no tempo, abrindo caminho para um futuro de dignidade, rompendo esta sociedade desumana onde milhões de concidadãos vegetam com rendimentos de fome para que crápulas se conspurquem com milhões.

Não podemos esperar sentados por um Natal ou um Novo Ano à nossa dimensão, se humanos nos quisermos afirmar.

Ver também:
Estes natais sinistros , de Gabriel García Márquez 

[*] Cronista, fcidsimoes@sapo.pt . Lido na Rádio Baía.

Esta crónica encontra-se em http://resistir.info/

Nas dívidas, o declínio do Ocidente


Por não conseguir revê-las ou anulá-las periodicamente, nossa civilização mergulha em desigualdade e caos agudos – como os de agora. Há 3 mil anos, sumérios tinham uma saída

Alastair Crooke, no Strategic Culture | em Outras Palavras |  Tradução: Felipe Calabrez

A liderança da União Europeia (UE) está tentando conter uma crise que emerge em velocidade crescente: este desafio compreende a ascensão de Estados desobedientes (ou seja, o Reino Unido, Polônia, Hungria e Itália) ou de “blocos culturais” históricos desafiadores (ou seja, Catalunha). Todos estes estão explicitamente desencantados com a noção de alguma convergência forçada para uma “ordem” uniforme administrada pela UE, com suas “disciplinas” monetárias austeras. Eles até mesmo ignoram a pretensão da UE de ser, de alguma maneira, parte de uma ordem civilizacional de valores morais superiores.

Se no Pós-Guerra a UE representava uma tentativa de escapar da hegemonia anglo-americana, esses novos e desafiadores blocos de “ressurgência cultural”, que buscam se situar como espaços soberanos interdependentes, são, por seu turno, um tentativa de escapar de outra hegemonia: a de uma UE uniformemente administrada.

Para sair dessa ordem europeia particular (que, esperava-se originalmente, diferiria do império anglo-americano), a UE foi, porém, forçada a apoiar-se na arquetípica noção de “liberdade” como justificação do império (agora metamorfoseada nas quadro liberdades da UE) em que se apoiaram as “uniformidades” estritas da UE (igualdade de condições, regulação de todos os aspectos da vida, harmonização fiscal e económica). O projeto europeu passou a ser visto, por assim dizer, como algo que esvazia os distintos e antigos “modos de ser”.

O próprio fato de haver estes ensaios , em diferentes níveis e em distintas regiões geográficas culturais, indica que a hegemonia da UE já enfraqueceu a tal ponto que ela pode não ser capaz de conter totalmente o surgimento dessa nova onda. O que está em causa precisamente para a UE é saber se pode retardar e reprimir, em todos os sentidos, a emergência deste processo de “re-soberanização” cultural – que, obviamente, ameaça fragmentar a propalada “solidariedade” da UE e fragmentar sua matriz de uma união aduaneira e área de comércio comum perfeitamente reguladas.

Foi Carl Schmitt – o filósofo político – quem, no entanto, alertou veementemente contra a possibilidade do que ele chamou de “acelerador Katechon negativo”, o que parece se aplicar exatamente à situação em que a UE se encontra no presente. Trata-se de uma noção, sustentada pelos antigos, de que os eventos históricos frequentemente têm uma “dimensão de fundo contrária”, isto é, que uma dada “intenção” ou ação (por exemplo, por parte da UE) pode acabar acelerando precisamente os processos que ela visava desacelerar ou estancar. Para Schmitt, isto explica o paradoxo através do qual uma “ação de frear” (como a que está sendo realizada pela UE) pode na verdade se reverter em uma aceleração indesejada dos próprios processos a que a UE pretende se opor. Schmitt chamou isso de processo “involuntário”, uma vez que produz efeitos opostos à intenção original. Para os antigos, isso simplesmente lembrava que nós, humanos, muitas vezes somos meros objetos da história, e não seus sujeitos causais.

É possível que a “ação de frear” imposta à Grécia, à Grã-Bretanha, à Hungria – e agora à Itália – possa deslizar precisamente em direção ao fenômeno Katechon de que fala Schmitt. A Itália permaneceu no limbo económico por décadas: seu novo governo sente-se obrigado a aliviar, de alguma forma, o estresse econômico acumulado nos últimos anos e a tentar retomar o crescimento. Mas o Estado tem um alto nível de endividamento, diante do que a UE insiste que a Itália deve sofrer as consequências: deve obedecer às “regras”.

O professor Michael Hudson, em livro recente, explica como a “ação de frear” da UE em relação à dívida italiana representa uma certa vertente europeia de rigidez psíquica que ignora totalmente a experiência histórica e pode resultar precisamente em Katechon: o oposto do que se pretende. Entrevistado por John Siman, Hudson diz:

“Nas antigas sociedades mesopotâmicas, entendia-se que a liberdade era preservada protegendo-se os devedores. Um modelo corretivo de fato existiu e floresceu no funcionamento económico das sociedades mesopotâmicas, durante o terceiro e segundo milénios a.C. Pode ser chamada de Anistia de Pratos Limpos… Consistia no necessário e periódico cancelamento das dívidas de pequenos agricultores. Necessário porque tais agricultores estão inevitavelmente sujeitos – em qualquer sociedade em que se contabilizam juros sobre empréstimos – a ser empobrecidos, destituídos de sua propriedade, e, no limite, submetidos à servidão … por seus credores”.

[…] [E também necessária porque] a dinâmica constante da história tem sido o impulso das elites financeiras para centralizar o controle em suas próprias mãos e administrar a economia de forma predatória e extrativista. Sua ostensiva liberdade [vem] às custas da autoridade governante e da economia em geral. Como tal, é o oposto da liberdade – como concebida no tempo sumério …

Por isso, foi inevitável (nos séculos posteriores) que, na história grega e romana, um número crescente de pequenos agricultores tenha se tornado irremediavelmente endividado e perdido suas terras. Da mesma forma como foi inevitável que seus credores tenham acumulado enormes propriedades de terra e se estabelecido em oligarquias parasitárias. Essa tendência inata à polarização social – decorrente da noção de dívida como algo imperdoável – – é a maldição original e incurável de nosso pós-século VIII. É a marca de nascença escabrosa da Civilização Ocidental, que não pode ser lavada ou extirpada.

Hudson argumenta que o longo declínio e queda de Roma começa, não como quer Gibbon, com a morte de Marco Aurélio, mas quatro séculos antes, após a devastação de Aníbal no campo italiano durante a Segunda Guerra Púnica (218-201 aC). Depois daquela guerra, os pequenos agricultores da Itália nunca mais recuperaram suas terras, que foram sistematicamente engolidas pela prædia, as grandes propriedades oligárquicas, como Plínio, o Velho, observou. [É claro que hoje são as pequenas e médias empresas italianas que estão sendo engolidas por corporações oligárquicas e pan-europeias.]

Mas entre os estudiosos modernos, como aponta Hudson, “Arnold Toynbee está quase sozinho ao enfatizar o papel da dívida na concentração da riqueza romana e da propriedade” (p. xviii) — e assim explicar o declínio do Império Romano…

“As sociedades mesopotâmicas não estavam interessadas em igualdade”, ele disse ao entrevistador, “mas elas eram civilizadas. E possuíam a sofisticação financeira para entender que, uma vez que os juros sobre empréstimos aumentam exponencialmente, enquanto o crescimento económico segue, na melhor da hipóteses, uma curva S, isso significa que os devedores, se não protegidos por uma autoridade central, tornam-se servos permanentes de seus credores. Assim, os reis da Mesopotâmia resgatavam regularmente os devedores esmagados por suas dívidas. Eles sabiam que precisavam fazer isso. Repetidas vezes, século após século, eles proclamavam a “Amnistia dos Pratos Limpos”.

A UE puniu a Grécia por seu desregramento – e deve punir a Itália se ela burlar as regras fiscais da UE. A UE está fazendo o que Scmith denominou de “ação de frear” para manter sua hegemonia.

É, no entanto, um caso concreto em que a UE enxerga o pequeno cisco nos olhos da Itália, porém ignora a estaca em seu próprio olho. Lakshman Achutan, do Instituto de Estudos do Ciclo Económico, escreve:

“A soma da dívida dos EUA, da Zona do Euro, do Japão e da China aumentou mais de dez vezes em relação ao PIB no ano passado. É notável que a economia global – desacelerando em sincronia, apesar do endividamento galopante – encontre-se em uma situação remanescente do Efeito Rainha Vermelha. Como esta personagem diz em Alice em Através do Espelho, de Lewis Carroll, “Agora, aqui, você vê, é preciso correr o bastante para continuar no mesmo lugar. Se quiser chegar em outro lugar, você deve correr pelo menos duas vezes mais rápido que isso!”

Mas isso – correr mais rápido, assumir mais dívidas – só pode, ao final, ser resolvido com um grande calote (ou com medidas inflacionárias). Olhemos para os EUA: seu PIB está crescendo em 2,5%; a dívida federal está em 105% do PIB; o Tesouro está gastando US$ 1,5 bilhão em juros por dia, e a dívida está crescendo em 5-6% do PIB. Não é sustentável.

As demandas da Grécia e da Itália pelo alívio da dívida podem ser consideradas por alguns como um favorecimento, na esteira da má gestão económica do passado; mas as demandas dos sumérios e babilónios não se baseavam nisso – mas em uma tradição conservadora baseada em rituais de renovação do calendário-cosmo e suas periodicidades, nos diz Hudson. A ideia mesopotâmica de reforma estava longe do sentido daquilo que chamamos de “progresso social”. Em vez disso, as medidas instituídas pelo rei sobre as dívidas, em seus “jubileus” eram destinadas a restaurar uma ordem subjacente na sociedade, um maat. “As regras do jogo não eram alteradas, mas todos recebiam uma nova cartada”.

Hudson observa que “os gregos e os romanos substituíram a ideia cíclica de tempo e renovação social pela de tempo linear” [com a convergência em direção a um “fim dos tempos”]: “A polarização económica tornou-se irreversível, não meramente temporária”, assim como a ideia de renovação se perdeu. Hudson poderia ter acrescentado que o tempo linear e a perda do imperativo de despertencimento e renovação desempenharam um papel importante na sustentação de todos os projetos universalistas da Europa que buscavam um itinerário linear rumo à transformação humana (ou, o utopismo).

Esta é a contradição fudamental: a inelutável defasagem económica e polarização está transformando a Europa em um continente dilacerado por uma contradição interna insolúvel. Por um lado, castiga a Itália por suas dívidas; por outro, o Banco Central Europeu (BCE) buscou a “repressão” da taxa de juros, até reduzi-la abaixo de zero e transformou em moeda viva [por meio do “quantitative easing”] um volume de dívida equivalente a um terço da produção global da Europa. Como a UE não poderia prever que os bancos e as empresas carregassem sua dívida “positiva”? Como poderia esperar que os bancos não inflassem seus balanços com “dívida livre” a ponto de se tornarem “grandes demais para falir”?

A explosão global da dívida é um macro-problema que transcende vastamente o microcosmo da Itália. Tal como o antigo Império Romano, a UE atrofiou-se na sua “ordem” para se tornar um obstáculo à mudança. Sem alternativa, mantém uma “ação de frear” que acabará por produzir efeitos completamente contrários à intenção original; e por provocar um Katechon involuntário e negativo.

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Moçambique | 2018, um ano para esquecer?


@Verdade | Editorial

Sem sombras de dúvidas, 2018 foi mais um ano atípico para o povo moçambicano. Aliás, diga-se em abono da verdade que o cidadão moçambicano tem motivos mais do que suficientes para afirmar que 2018 foi um péssimo ano em todas as vertentes.

A começar pela forma como é conduzido o processo eleitoral (referente às eleições autárquicas) que, mais uma vez, se provou que é intrinsecamente uma trapaça, uma vez que não se vislumbrou o pleno exercício da cidadania e democracia. Ou seja, como sempre, voltámos a brincar às eleições, demonstrando que ainda prevalece um grande défice democrático no país provocado por instituições como o STAE, a CNE e o Conselho Constitucional, que na verdade foram os organismos que elegeram os presidentes de alguns dos 53 municípios deste país.

Além disso, ao longo do ano 2018, os indivíduos que dirigem o país mostraram que estão mais preocupados com o seu umbigo, relegando o bem- -estar dos moçambicanos para último plano. E um exemplo disso foi a facilidade que o Banco de Moçambique criou para as empresas multinacionais que se preparam para explorar o petróleo e o gás existente no país. Ou seja, para além de toda as estúpidas isenções e regimes especiais de tributação, as multinacionais conseguiram do Governo da Frelimo uma legislação privilegiada para movimentarem os biliões de dólares que irão ganhar no pais.

Como se essa situação não bastasse, também vimos o Governo de Filipe Nyusi anunciando que chegou a um acordo com grande parte dos credores da fantoche empresa de pesca de atum, a EMATUM, para reestruturar a dívida. Resumindo, Nyusi e os títeres decidiram fazer um acordo que vai custar o futuro de milhões de moçambicanos. O mais caricato ainda foram os deputados da bancada parlamentar da Frelimo que, no exercício das suas funções como mandatário do povo, revelaram a ignorância mórbida por que ainda se regem. Ao longo do ano, os moçambicanos foram brindados com situções bastantes preocupantes e lamentáveis, aprovando tudo e mais nada contrariando a vontade do povo que os elegeram.

E, por último, uma das situações que mexeu com a vida dos moçambicanos foi o exorbitante custo de vida. Quase todos os dias, o custo de vida agravou-se e, consequentemente, o poder de compra deteriorou-se sob olhar do Governo que passou o ano a fingir estar preocupado com a situação. Como quem zombasse do sofrimento da população, o Governo da Frelimo não perdia a oportunidade de mostrar ao país e aos moçambicanos a sua contínua falta de bom senso, falando da confiança no futuro.

Portanto, 2018 foi um ano para esquecer!

São Tomé | Nova Maioria – Reposição da legalidade nos Tribunais


Uma nota da mesa da Assembleia Nacional, que o Téla Nón teve acesso, convoca os deputados para uma sessão plenária nesta sexta feira, a partir das 10 horas.

Mas, a sessão plenária de hoje, tem uma agenda especial. No primeiro ponto do período da ordem do dia, destaca-se a necessidade do ex-ministro da defesa e administração interna Arlindo Ramos, actualmente deputado da nação, ser autorizado pela Assembleia Nacional a comparecer no Tribunal da Primeira Instância, para ser interpelado pelo Juiz como testemunha num processo que não é citado no programa parlamentar.

Informações recolhidas pelo Téla Nón, indicam que o ex-ministro da Defesa e Administração Interna, está a ser procurado pelo Tribunal da Primeira Instância, para ajudar no esclarecimento de um dos golpes de Estado, que foi denunciado pelo próprio ministro a cerca de 6 meses.

Depois, a sessão plenária desta sexta feira, pode ter efeito de uma HECATOMBE legal para a justiça são-tomense, mais concretamente os Tribunais. É que os deputados vão analisar o projecto de resolução que revoga as resoluções números 106, 107 e 110 de 2018 da Assembleia Nacional.

As tais resoluções que agora poderão ser revogadas pela nova maioria parlamentar(MLSTP-Coligação), estão relacionadas com a exoneração e aposentação compulsiva dos 4 juízes do Supremo Tribunal de Justiça, que foram afastados do sistema, em julho de 2018, após terem subscrito no dia 27 de Abril de 2018, o Acórdão que devolveu a cervejeira Rosema, ao empresário angolano Melo Xavier.

A revogação das tais resoluções aprovadas pela antiga maioria parlamentar da ADI(na foto em cima), porá também fim ao mandato dos Juízes do Supremo Tribunal Excepcional, criado pela  ex-maioria parlamentar da ADI, e que tomou posse em  julho passado sob a presidência do Juiz Conselheiro Roberto Raposo.

Se a nova maioria parlamentar(na foto) aprovar a resolução revogatória, o exonerado e compulsivamente aposentado Juiz conselheiro Manuel Silva Gomes Cravid, regressará as suas funções como Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, e acompanhado pelos seus pares, nomeadamente os juízes conselheiros exonerados pela antiga maioria parlamentar da ADI, Alice Carvalho, Frederico da Glória e Silvestre Leite.

Aliás, o documento da Assembleia Nacional diz que a sessão plenária de hoje, será para analisar a resolução que revoga as anteriores resoluções, e «consequente recondução dos 4 juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça», lê-se no documento.

O terceiro ponto da ordem do dia da sessão plenária desta sexta feira, confirma a limpeza da alegada ilegalidade que a anterior maioria parlamentar, realizou nos Tribunais. Pois diz o documento que nesta sexta – feira, os deputados vão analisar também o projecto de resolução que «revoga a resolução número 89 de 2018 da Assembleia Nacional  e consequente cessação de funções dos juízes do Tribunal Constitucional».

A nova maioria parlamentar, composta pelo MLSTP e a Coligação PCD-MDFM-UDD, poderá nesta sexta feira, por fim ao Tribunal Constitucional Autónomo, que foi criado apenas e só pelo partido ADI, e sob intervenção dos Ninjas da Administração Interna de Arlindo Ramos.
Sob ordens do Governo da ADI, os Ninjas invadiram o parlamento no dia 15 de Janeiro de 2018, para expulsar os deputados da oposição, que contestavam a modalidade de constituição do Tribunal Constitucional, só com pessoas indicadas pelo ADI.

O povo mudou a regra do jogo no dia 7 de Outubro. A anterior oposição minoritária é hoje a nova maioria em São Tomé e Príncipe. E tudo indica que hoje, por vontade do povo, a Nova Maioria, vai reformar as reformas a mão armada (Ninjas), que Patrice Trovoada e a ADI realizaram nos Tribunais Judicial e Constitucional.

Abel Veiga | Téla Nón

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Angola | Lucapa era uma terra de estrangeiros ilegais


Cerca de 316 mil cidadãos estrangeiros, maioritariamente da República Democrática do Congo (RDC) em situação migratória ilegal, que se dedicavam à exploração e tráfico ilícito de diamantes no município do Lucapa, Lunda-Norte, foram repatriados no âmbito da Operação Transparência.

A informação foi avançada quinta-feira, na cidade do Dundo, pelo administrador municipal do Lucapa, Rogério Fangana, durante o encontro com a sociedade civil da Lunda-Norte, promovido pelo governador Ernesto Muangala, que serviu para reforçar as acções de sensibilização e conjugação de esforços para o combate à imigração ilegal. 

Rogério Fangana disse que a quantidade de pessoas repatriadas para os países de origem evidencia que mais da metade da população que residia na região era composta por estrangeiros ilegais. 

Apontou que o diamante extraído no Lucapa é de alto valor comercial no mercado internacional, salientando ter sido a causa dos altos índices de imigração ilegal na região. 

Dos 316 mil estrangeiros repatriados, referiu, 32 mil saíram de forma voluntária. No município do Lucapa, acrescentou, foram encerradas 32 casas de compra e venda de diamantes, que funcionavam ilegalmente. 

O administrador do Lu-capa informou que as autoridades policiais, militares e civis do município estão a cumprir com todas as indicações deixadas pelas estruturas centrais, que visam libertar todas as áreas de ga-rimpo, e manter o controlo das mesmas. 

Rogério Fangana garantiu que três meses após o lançamento da Operação Transparência, o município do Lucapa, tido como o epicentro do garimpo de diamantes, está agora desafogado. O administrador confirmou o retorno gradual de estrangeiros às zonas de exploração de diamantes, e declarou que oficialmente as forças de defesa e segurança ainda não confirmaram a detenção de imigrantes que retornaram às áreas de garimpo.

Armando Sapalo, Dundo | Jornal de Angola

Imagem: Garimpeiros em actividade numa das localidades da Lunda-Norte / Fotografia: Edições Novembro

Um ano de João Lourenço, o "exonerador implacável" de Angola


A DW África saiu à rua para saber o que pensam os angolanos sobre os primeiros 365 dias do Presidente JLo no poder. As opiniões dividem-se: há quem destaque o combate à corrupção e quem o acuse de "artimanhas políticas".

João Lourenço tomou posse há precisamente um ano, a 26 de setembro de 2017. Quando assumiu funções, o terceiro chefe de Estado angolano assumiu o compromisso de "tratar" dos "problemas da nação" ao longo do mandato de cinco anos com uma "governação inclusiva".

"Neste novo ciclo político, legitimado nas urnas, a Constituição será a nossa bússola de orientação e as leis o nosso critério de decisão", apontou na altura João Lourenço, falando pela primeira vez como novo Presidente de Angola.

Desde aí, a administração de JLo, como é conhecido, continua a surpreender angolanos com discursos e algumas ações tais como as exonerações de vários gestores públicos, onde foram alvos figuras como a empresária Isabel dos Santos e José Filomeno dos Santos (Zenú), ambos filhos do ex-Presidente José Eduardo dos Santos. Zenú está em prisão preventiva pelo envolvimento numa transferência ilícita de 500 milhões de dólares e pela má gestão no Fundo Soberano de Angola.

Exonerações implacáveis

Em apenas um ano de governação, cidadãos angolanos, na sua maioria jovens, começam a acreditar num futuro melhor para o país, tudo devido algumas aberturas que estão se verificar no mandato de João Lourenço.

Os populares entrevistados nas ruas de Luanda deram nota positiva às exonerações e também às recentes detenções de ex-governantes. No último ano, o Presidente angolano afastou pelo menos 230 governantes, administradores de empresas públicas e altas chefias militares - e o povo passou a chamar-lhe "exonerador implacável".

O estudante de medicina Áureo dos Santos diz que agora já se pode falar de combate à corrupção em Angola. "Ele está trabalhar para as questões sobre a corrupção no nosso país. Está a forçar as pessoas a acabar com as práticas de suborno, afirma o jovem, que elogia também as políticas de investimento privado no setor do turismo.

"O país estava dependente do petróleo e ele quer diversificar a nossa economia, dando oportunidade aos empresários estrangeiros. E isso é importante para o desenvolvimento do país", sublinha Áureo dos Santos.

Política externa mais aberta

Para Sidney Jorge, estudante de Relações Internacionais, neste primeiro ano de governação o Presidente da República procurou conquistar a confiança da comunidade internacional. "A política externa do país está num processo de mais abertura para com outros atores internacionais. O Presidente está nos Estados Unidos, onde vai tratar vários assuntos para o país, e isso é vantajoso", diz.

António Pinto e Quintas Francisco, ambos funcionários públicos, apontam as exonerações como o ponto mais alto da governação. E defendem que João Lourenço deve trabalhar com pessoas comprometidas com o país. "O Presidente tirou certas pessoas que não estavam a fazer nada nos cargos que ocupavam", lembra António Pinto. "Se continuar assim, tirando aqueles que não fazem nada, acho que vamos ter uma Angola boa para viver e sentir orgulho de sermos angolanos", sublinha Quintas Francisco.

Mas também há quem quem não veja melhorias com o mandato de João Lourenço. O estudante Jair Pedro entende que o Presidente angolano só quer ganhar a confiança do povo com exonerações e discursos de combate à corrupção, para que votem nele no próximo mandato.

"Não acho que ele está a tentar fazer o que é certo, combatendo a corrupção. É só mais uma artimanha para ele ter mais credibilidade que o Zedú (José Eduardo dos Santos) e para recuperar a confiança de outros países", afirma o jovem angolano.

"Ninguém é perfeito"

A verdade é que ainda não há nada de relevante na política social da administração JLo, fora os concursos públicos para admissão de novos professores e enfermeiros. Ainda assim, alguns cidadãos acreditam que o Presidente poderá cumprir as promessas.

"Já se notam alguns passos, mas não é suficiente porque sente-se ausência da resolução das questões sociais como o saneamento básico e a saúde", afirma Sidney Jorge.

"Ninguém é perfeito. Estamos todos sujeitos a errar. Se ele se levantou e disse que é a capaz de ajudar a melhorar o país, acho que vai fazer o melhor", acredita Quintas Francisco.

António Pinto afirma que João Lourenço precisa de mais tempo para mudar o país. "As pessoas devem entender que não é em apenas um ano que ele vai dar emprego a todos", alerta o funcionário público.

Borralho Ndomba (Luanda) | Deutsche Welle

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Angola | Deputado do MPLA retoma debate sobre pena de morte


Pena de morte foi abolida em Angola em 1992. Mas pronunciamentos de deputado do MPLA, que defende a sua reintrodução, voltaram a trazer o assunto a debate. Analistas dizem que seria um retrocesso.

Não é a primeira vez que uma figura do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) defende a introdução da pena de morte abolida pela legislação de 1992. Em janeiro de 2016, Luzia Inglês, secretária-geral da OMA, a organização feminina do partido no poder, já tinha defendido esta sentença para crimes sexuais.

Dois anos depois, Monteiro Pinto Kapunga, deputado do MPLA, volta a defender a pena capital, para quem cometer crimes violentos.

Citado pela agência noticiosa angolana ANGOP, o deputado disse que "quem tira a vida de outra pessoa, lhe deve ser aplicada a mesma medida, ao invés de passar longos anos nas cadeias à custa do Estado".

Um "retrocesso"

As declarações de Monteiro Kapunga surgem no âmbito das discussões no Parlamento sobre o novo Código Penal angolano.

Reintroduzir a pena de morte implicaria uma revisão da atual Constituição angolana, aprovada em 2010, "por conta do estatuído nos artigos 59º e 30º da presente Constituição, onde se proíbe a pena de morte e o Estado protege a vida humana, que é inalienável e um dos bens jurídicos mais essenciais da vida em sociedade, se não mesmo o mais essencial", refere o jurista Agostinho Canando.

O investigador e ativista cívico Nuno Álvaro Dala sublinha que se estaria diante de "um retrocesso" no capítulo dos direitos, liberdades e garantias fundamentais em Angola.

CPLP e SADC

Esse retrocesso afetaria igualmente a posição do país nas instituições internacionais de que é membro, avança o jurista Agostinho Canando.

Abolir a pena de morte é um dos requisitos para a entrada na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Há quatro anos, a Guiné Equatorial comprometeu-se a fazê-lo para ingressar como membro de pleno direito na organização.

"Essa introdução não seria abonatória para Angola, para a CPLP, até mesmo para a própria SADC [Comunidade de Desenvolvimento da África Austral], porque representa o regressar de uma certa fase da História de Angola", comenta Canando.

No país, está em curso a reforma da Justiça e do Direito. O jurista pede à comissão encarregada de o fazer que consulte especialistas de várias áreas, para uma abordagem abrangente: "Deverá não apenas trabalhar com juristas, que são o garante do conhecimento da lei, mas acima de tudo com filósofos, psicólogos, pedagogos, antropólogos, sociólogos e tantos outros profissionais das Ciências Sociais."

Manuel Luamba (Luanda) | Deutsche Welle

Guiné-Bissau | Até onde vai o ardil de José Mário Vaz?


Intenção de Presidente guineense, José Mário Vaz, de rever a Constituição é completamente incoerente com o perfil que tem demonstrado, considera Dautarim da Costa. Analista acha que se trata de uma manobra eleitoralista.

Esta semana, o Presidente da Guiné-Bissau manifestou interesse na realização de um referendo para a revisão da Constituição.

Para José Mário Vaz, o problema do país não reside nas pessoas, mas sim nas instituições e no sistema do Governo. O estadista considera que uma revisão faria com que o chefe do Estado a ser eleito em 2019 "tenha as coisas clarificadas". Sobre esse posicionamento, que surge perto do fim do mandato do Presidente, conversamos com o analista guineense Dautarim da Costa.

DW África: A intenção de José Mário Vaz surge depois de ter ultrapassado, durante quatro anos do seu mandato, as suas competências enquanto Presidente da República e, por consequência, ter esvaziado os poderes do primeiro-ministro. Não vem tarde esta intenção?

Dautarim da Costa (DC): Não só vem tarde, como é completamente despropositada e incoerente. Estamos a falar de um Presidente da República que conseguiu a proeza de fundar um regime presidencialista dentro de um sistema semi-presidencialista. A deturpação do sistema político foi de tal forma que subverteu todas as lógicas que definiram as regras do jogo político na Guiné-Bissau. E dizer isso agora mostra um desconhecimento profundo sobre a importância do funcionamento das instituições e sobre as perceções dos próprios cidadãos guineenses. E é completamente incoerente com o perfil que tem demonstrado ao longo do seu mandato.

DW África: José Mário Vaz entende que uma revisão da Constituição possibilitaria que o chefe de Estado a ser eleito tenha as coisas clarificadas. Estaria ele a assumir que não conhecia os limites do seu poder?

DC: O Presidente da República sempre mostrou um grande desconhecimento do espírito da nossa lei fundamental e também não conseguiu encarnar o seu papel de pacificador da sociedade e de defensor da própria Constituição. Falar agora de referendo mostra-nos duas coisas: o desconhecimento sobre como as coisas devem ser tratadas e um desconhecimento também do timing em que essas coisas devem ser tratadas. O problema do nosso sistema político não está propriamente na Constituição, mas sim na falta de capacidade da generalidade dos nossos atores políticos em colocar o país como prioridade das suas ações. E isto leva sempre a que haja espaço para manobras "reinterpretativas" da Constituição. Mas a nossa Constituição é muito clara no que diz respeito aos papéis e deveres do Presidente da República e aos papéis que cabem ao Governo. Só alguém imbuído de má-fé é que reinterpreta o que está lá disposto.

DW África: O que terá originado a manifestação dessa vontade, será que José Mário Vaz percebeu muito tarde que só a Constituição lhe legitima os poderes que tanto quer? Terá sido pressionado ou não passa de mais um ato sagaz da sua parte?

DC: O Presidente sempre foi bastante intencional nas medidas que foi tomando. Paralelamente ao desconhecimento da lei, havia uma clara intenção desta Presidência da República de deturpar o funcionamento convencionado do sistema político. Para mim, o que está em causa é uma tentativa de higienização da própria imagem política do Presidente. Ou seja, está a entrar no final do seu mandato e vai entrar, provavelmente, numa fase em que quererá apresentar a recandidatura à Presidência da República e agora esforça-se por higienizar a sua imagem, todos esses solavancos que temos assistido durante o período em que tem sido Presidente.

DW África: Está a dizer então que é a continuidade da sua postura ardilosa?

DC: Para mim, é óbvio.

Nádia Issufo | Deutsche Welle

O bicentenário do nascimento de Marx


Socialismo e o ressurgimento da luta de classes internacional


“Nós não dizemos ao mundo: Cessem suas lutas, elas são tolas; nós lhe daremos o verdadeiro lema da luta. Nós meramente mostramos ao mundo pelo que ele está realmente lutando, e consciência é algo que que ele tem de adquirir, mesmo que não queira.” [Karl Marx para Arnold Ruge, Setembro de 1843]

“As armas da crítica não podem, é claro, substituir a crítica das armas; a força material tem de ser deposta por força material, mas a teoria também se torna uma força material uma vez que se apossa dos homens.” [Contribuição para a crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 1844]

“A emancipação do alemão é a emancipação do ser humano. A cabeça dessa emancipação é a filosofia, seu coração é o proletariado. A filosofia não pode se tornar realidade sem a abolição do proletariado, o proletariado não pode ser abolido sem a filosofia ter se tornado uma realidade.” [Contribuição para a crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 1844]

“Não é uma questão do que este ou aquele proletário, ou mesmo todo o proletariado, no momento interpretacomo seu objetivo. É uma questão de o que o proletariado é, e o que, de acordo com seu ser, será historicamente compelido a fazer.” [A sagrada família, 1844]
“Com a profundidade da ação histórica aumentará, portanto, o volume da massa de quem ela constitui a ação.” [A sagrada família, 1844]

“A história de toda a sociedade até nossos dias é a história da luta de classes.” [O Manifesto do Partido Comunista, 1847]

“Que as classes dominantes tremam com uma revolução comunista. Os proletários não tem nada a perder exceto suas correntes. Eles tem o mundo a ganhar. PROLETÁRIOS DE TODOS OS PAÍSES, UNI-VOS!” [O Manifesto do Partido Comunista, 1847]

***
1. Este ano (2018) marca os 200 anos do nascimento de Karl Marx, o criador da concepção materialista da história, autor de Das Kapitale, com Friedrick Engels, fundador do movimento socialista revolucionário moderno. Nascido em 5 de Maio de 1818 na cidade de Trier, na Prússia, Marx era, citando Lenin, “o gênio que continuou e consumou as três correntes ideológicas principais do século XIX, que eram representadas pelos três países mais avançados da humanidade: a filosofia alemã clássica, a economia política inglesa clássica e o socialismo francês combinado com as doutrinas revolucionárias francesas em geral.” [1]

2. Marx morreu em Londres em 14 de Março de 1883 aos 64 anos de idade. Até aquele momento, ele e Engels tinham colocado as aspirações socialistas utópicas em uma fundamentação científica e criado as bases para um movimento político revolucionário da classe trabalhadora internacional. Entre 1843 e 1847, Marx executou uma revolução no pensamento teórico que superou tanto as limitações do materialismo predominantemente mecânico do século XVIII e as mistificações idealistas da lógica dialética de Hegel.

3. Estendendo o materialismo filosófico ao domínio da história e das relações sociais, Marx provou que a necessidade do socialismo surgia das regras do desenvolvimento das contradições inerentes do sistema capitalista. Ele não alegou ter descoberto a luta de classes como a força motivadora na história. Sua contribuição inovadora para o entendimento da história, como o próprio Marx explicou em 1852, foi: “1. mostrar que a existência de classes está ligada apenas a certas fases históricas do desenvolvimento da produção; 2. que a luta de classes leva necessariamente à ditadura do proletariado; 3. que essa ditadura em si constitui nada mais do que uma transição para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes.” [2]

4. Tivesse Marx largado sua caneta depois de escrever o Manifesto Comunista, seu lugar na história ainda estaria garantido. Mas o que o elevou à estatura de uma figura histórico universal foi a escrita de Das Kapital, que fundamentou a concepção materialista da história. Nos 150 anos que se passaram desde a publicação do seu primeiro volume em 1867, várias gerações de economistas burgueses dedicaram suas vidas profissionais a refutar o trabalho de Marx. Em vão! Seus esforços foram frustrados não apenas pela força da metodologia dialética e a clareza histórica de Marx, mas também, e ainda mais, pela realidade da crise capitalista. Por mais que os professores possam protestar, o mundo capitalista “move-se”, como Marx explicou. Cada ataque sobre Das Kapital tem sido inevitavelmente seguido por uma nova demonstração prática das contradições econômicas e sociais insolúveis do sistema capitalista.

5. A última dessas lições, válida até hoje, começou com a quebra financeira global de 2008. As categorias e conceitos essenciais de economia política marxista – como força de trabalho, capital constante e variável, mais valia, a taxa de lucro em declínio, exploração, o fetichismo das mercadorias, o exército industrial de reserva e o empobrecimento relativo e absoluto do proletariado – são exigidos não apenas para um entendimento científico do capitalismo, mas mesmo para uma compreensão básica dos acontecimentos políticos, econômicos e sociais diários.

6. Pode-se ter a certeza de que o bicentenário do nascimento de Marx será marcado por numerosos seminários acadêmicos em que professores cutucarão as teorias de Marx. Muitos deles focarão no que acreditam ser seus erros ou omissões. Haverá outros, uma pequena minoria, que elogiarão o trabalho de Marx. Mas a apreciação mais verdadeira e mais objetiva da vida de Marx acontecerá fora das salas de aula.

7. Este ano novo de 2018 – o bicentenário do nascimento de Marx – será caracterizado, acima de tudo, por uma enorme intensificação das tensões sociais e uma escalda dos conflitos de classes ao redor do mundo. Por várias décadas, e especialmente desde a dissolução da União Soviética em 1991, a resistência da classe trabalhadora à exploração capitalista foi suprimida. Mas as contradições essenciais do sistema capitalista – entre uma economia globalmente interdependente e arcaico sistema de estado-nação burguês; entre uma rede mundial de produção social, envolvendo o trabalho de bilhões de seres humanos, e a propriedade privada dos meios de produção; e entre as necessidades essenciais da sociedade de massas e os interesses egoístas dos ganhos individuais capitalistas – estão agora chegando rapidamente ao ponto em que uma maior supressão da oposição das massas de trabalhadores ao capitalismo é impossível.

8. A concentração de riqueza em uma pequena camada da população alcançou níveis nunca antes vistos. E isso é uma processo global. O 1% mais rico possui metade da riqueza do mundo. [3] Os 500 indivíduos mais ricos tinham, até Dezembro de 2017, uma riqueza somada de 5,3 trilhões de dólares, 1 trilhão de dólares a mais do que em 2016. [4] Nos Estados Unidos, três pessoas – Jeff Bezos, Bill Gates e Warren Buffett – possuem mais dinheiro do que a metade mais pobre da população. Na China, 38 bilionários aumentaram em 177 bilhões de dólares suas riquezas pessoais em 2017. Apesar das sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos e Europa Ocidental, os 27 bilionários da Rússia aumentaram sua riqueza em 29 bilhões de dólares. Carlos Slim, o homem mais rico no México, aumentou sua riqueza para 62,8 bilhões de dólares, um aumento de 12,9 bilhões de dólares em relação ao ano anterior.

9. A característica distintiva dessas enormes fortunas é que estão ligadas ao estarrecedor crescimento dos mercados acionários nos últimos 35 anos, e especialmente desde a quebra de Wall Street de 2008. A política do Banco Central americano de “flexibilização quantitativa” e as políticas de baixas taxas de juros dos bancos centrais ao redro do mundo levaram a um aumento de quase quatro vezes do índice Dow Jones ao longo da década passada. Em 2017, o aumento explosivo no valor de ações dos EUA esteve conectado com a expectativa – que desde então foi realizada – de um corte de impostos massivo para os ricos.

10. O enriquecimento daqueles do topo da oligarquia capitalista vem acompanhado do empobrecimento da ampla massa da população do mundo. De acordo com um relatório publicado pelo Credit Suisse, “Na outra ponta do espectro, os 3,5 bilhões de adultos mais pobres do mundo possuem cada um bens de menos de 10.000 dólares. Coletivamente, essas pessoas, que constituem 70% da população em idade de trabalho do mundo, respondem por apenas 2,7% da riqueza global”. [5]

11. Essa brutal disparidade de riqueza não é meramente uma mancha infeliz e acidental no rosto do capitalismo contemporâneo. A extrema desigualdade social é a expressão consumada da falência do sistema social existente. Em meio a todas as urgentes necessidades da moderna sociedade de massas – educação, moradia, cuidados para os idosos, cuidados médicos de alta qualidade, desenvolvimento de sistemas de transporte de massas avançados, proteção do ecossistema global em risco, etc. – recursos incompreensivelmente vastos estão sendo desperdiçados para satisfazer os impulsos obscenos e insensatos dos super-ricos e seus descendentes. Recursos que deveriam ser aplicados para construir escolas, moradias baratas, plantas de tratamento de água e hospitais, ou para financiar museus, orquestras e outras instituições culturais vitais, estão sendo jogados fora em mansões, iates, joias e outras incontáveis extravagâncias banais.

12. As elites dominantes capitalistas modernas tornaram-se elas próprias um obstáculo absoluto ao desenvolvimento progressivo da sociedade humana. O crescimento de riqueza pessoal das elites dominantes adquiriu um caráter sombriamente cancerígeno, que provoca repulsa popular e sinaliza a queda do sistema. O estado atual da situação mundial é irracional, exatamente no sentido que foi empregado por Engels para descrever a monarquia francesa na véspera da revolução que varreria a aristocracia do poder:

Em 1789 a monarquia francesa havia se tornado tão irreal, ou seja, sem qualquer necessidade, tão irracional, que ela tinha de ser destruída pela Grande Revolução, da qual Hegel sempre fala com o maior entusiasmo. Nesse caso, portanto, a monarquia era o irreal e a revolução era o real. E assim, ao longo da trajetória do desenvolvimento, tudo o que era previamente real se torna irreal, perde sua necessidade, seu direito de existência, sua racionalidade. E diante da realidade moribunda surge uma nova, viável realidade – de maneira pacífica se a velha tem bom senso suficiente para aceitar sua morte sem resistência; à força se resistir a essa necessidade. [6]

13. Não é necessária grande clareza política para prever que os oligarcas corporativos e financeiros farão de tudo para defender sua riqueza. Acostumados a impor sua vontade sobre a sociedade, eles responderão a qualquer sinal de resistência popular com violenta repressão. Ainda assim, não há qualquer questão política e social atual – incluindo o desemprego em massa, pobreza, desigualdade social, ataques cada vez maiores aos direitos democráticos fundamentais, o perigo crescente de uma catástrofe ecológica, militarismo imperialista sem restrições e a ameaça de guerra nuclear – que podem ser resolvidas dentro do quadro do capitalismo. De fato, qualquer tentativa séria de implementar reformas sociais desesperadamente necessárias requereria, no mínimo, a expropriação de enormes fortunas privadas e uma redistribuição ampla da riqueza. Enquanto a classe capitalista mantiver o poder do estado, entretanto, tais reformas são impossíveis. Assim, a luta da classe trabalhadora para defender seus interesses leva, como Marx previu, à revolução social.

14. A conquista do poder do estado pela classe trabalhadora russa em Outubro de 1917 confirmou a concepção materialista da história e a perspectiva política elaborada por Marx e Engels no Manifesto Comunista. Mas a Revolução de Outubro não foi simplesmente o resultado de um processo histórico objetivo. A vitória da classe trabalhadora dependia da liderança de um partido político marxista que se baseasse em uma estratégia revolucionária internacional. Sem tal liderança, a revolução socialista não pode conquistar a vitória, não importa quão grande seja a crise do sistema capitalista. No Segundo Congresso da Internacional Comunista em 1920, Lenin advertiu os delegados de que não existem situações “absolutamente sem esperança” para a classe dominante.

A tentativa de “provar” desesperança “absoluta” de maneira adiantada é pedantismo vazio ou malabarismo com conceitos e palavras. Apenas a experiência pode oferecer uma “prova” real dessa ou de questões similares. A ordem burguesa está agora enfrentando uma crise revolucionária excepcional ao redor de todo o mundo. Nós precisamos agora “provar” através da prática dos partidos revolucionários que eles são suficientemente conscientes, que eles possuem organização suficiente, ligações com as massas exploradas, determinação e entendimento para utilizar essa crise para uma revolução bem sucedida e vitoriosa. [7]

15. A advertência de Lenin foi confirmada tragicamente. Nos anos e décadas que se seguiram à Revolução de Outubro, não faltaram situações revolucionárias que criaram a possibilidade da classe trabalhadora tomar o poder. Apesar de duas guerras mundiais devastadoras, revoltas populares em massa ao redor do globo e numerosos episódios de severa instabilidade econômica e colapso total do sistema, a sobrevivência do capitalismo no século XX pode ser atribuída, o limite, à ausência de uma necessária liderança política revolucionária na classe trabalhadora.

16. Com o início da Primeira Guerra Mundial, os partidos sociais-democratas da Segunda Internacional passaram para o lado do imperialismo, aceitaram o programa de “defesa nacional” e traíram o levante revolucionário pós-guerra da classe trabalhadora. Na União Soviética, o crescimento da burocracia stalinista levou à destruição da Terceira Internacional (Internacional Comunista). O programa stalinista de “socialismo em um país”, desvelado em 1924, levou à subordinação da Terceira Internacional aos interesses nacionais do estado soviético conforme determinado pela burocracia dominante.

17. A transformação dos partidos sociais-democratas e stalinistas em agências políticas do imperialismo levou à derrotas devastadoras da classe trabalhadora internacional nos anos 1920 e 1930. As piores dessas derrotas foram a destruição do Partido Comunista Chinês em 1927, a vitória dos nazistas em 1933 e o esmagamento do movimento socialista na Alemanha, e a traição da Revolução Espanhola e a chegado ao poder do regime fascista de Franco (1936 – 1939).

18. Em 1938, Leon Trotsky fundou a Quarta Internacional. A fundação da Quarta Internacional foi a culminação de sua luta política, iniciada em 1923, contra a perversão nacionalista do socialismo pelo regime stalinista, a supressão da democracia dos trabalhadores, e o abandono do programa da revolução socialista mundial. No documento de fundação da nova Internacional, Trotsky identificou a “crise da liderança revolucionária” como o problema central da transição do capitalismo ao socialismo.

19. Oitenta anos depois, em um novo período de crescente crise global do sistema capitalista e uma cada vez maior militância da classe trabalhadora, a questão precisa ser levantada: quais são as possibilidades para a resolução da crise da liderança revolucionária? É possível que a Quarta Internacional conquiste a confiança das seções avançadas da classe trabalhadora, da juventude socialmente consciente e dos elementos mais progressivos entre a intelligentsia, e lidere as lutas de massa da classe trabalhadora para a vitória na revolução socialista mundial?

20. A resposta a essa questão requer que o estudo do problema seja colocado em um contexto histórico mais amplo.

21. Outro aniversario será comemorado este ano: os 50 anos dos eventos de Maio-Junho de 1968, a greve geral em massa que trouxe a França capitalista à beira de uma revolução socialista. Os eventos de 1968 ainda ressoam na imaginação popular: além dos protestos em massa e a greve geral na França, foi o ano da Ofensiva do Tet no Vietnã, extrema instabilidade nos Estados Unidos (expressa em dois assassinatos políticos e no surgimento de revoltas em grandes cidades americanas), e a Primavera de Praga anti-stalinista na Checoslováquia, que foi suprimida em Agosto pela intervenção armada da URSS e o Pacto de Varsóvia.

22. Os eventos de 1968 colocaram em movimento um processo de radicalização da classe trabalhadora internacional. O período entre 1968 e 1975 foi marcado pelo maior movimento revolucionário internacional da era pós-Segunda Guerra Mundial, incluindo ondas de greves na Itália, Alemanha, Grã-Bretanha, Argentina e nos Estados Unidos. Os sociais-democratas formaram seu primeiro governo na Alemanha desde a vitória dos nazistas de Hitler. O governo de Allende chegou no poder no Chile em Setembro de 1970. Uma greve de mineiros na Grã-Bretanha no inverno de 1973-74 forçou a renúncia do governo conservador Tory. A junta militar grega foi derrubada em Julho de 1974. Encarando o impeachment, Richard Nixon renunciou a presidência americana em Agosto de 1974. O regime fascista que havia estado no poder em Portugal desde 1926 entrou em colapso em Abril de 1975. A morte de Franco em Novembro de 1975 expôs a fragilidade, não apenas da velha ditadura, mas do governo capitalista na Espanha. Movimentos anti-imperialistas poderosos de libertação nacional varreram o Oriente Médio e a África.

23. E ainda assim, apesar do escopo internacional dessas lutas de massas, o sistema capitalista não apenas sobreviveu às revoltas, como foi capaz de infligir derrotas (como na derrubada do regime de Allende no Chile em 1973) e criar a base para um contra-ataque sobre a classe trabalhadora. Isso foi iniciado pela classe dominante no final dos anos 1970 com a chegada ao poder de Margaret Thatcher no Reino Unido (seguida logo depois pela eleição de Ronald Reagan nos EUA).

24. A sobrevivência do capitalismo em meio às mudanças globais entre 1968 e 1975 dependeu, acima de tudo, do fato de que os partidos stalinistas e sociais-democratas e os sindicatos ainda eram forças dominantes nos movimentos de trabalhadores de massas da época. Com milhões de membros, eles empregaram seu poder burocrático para restringir, desviar, minar, e, onde necessário, orquestrar a derrota das lutas da classe trabalhadora. O regime stalinista na União Soviética e o regime maoísta na China falsificaram sistematicamente o marxismo e usaram todos os recursos à sua disposição para subverter movimentos revolucionários que ameaçavam seus esforços para melhorar as relações com os Estados Unidos e outras potências imperialistas. Nos países atrasados, os regimes stalinistas e maoístas buscaram manter a influência de vários movimentos burgueses nacionais sobre a classe trabalhadora, assim minando a luta contra o capitalismo e o imperialismo.

25. Durante esse período crítico, o Comitê Internacional da Quarta Internacional lutou contra a influência política do stalinismo, da social-democracia e do nacionalismo burguês. Mas o fez sob condições de extremo isolamento político que foram impostas sobre o Comitê Internacional não apenas pelas grandes organizações burocráticas dos sociais democratas e dos stalinistas, mas também pelo papel político sinistro das organizações oportunistas que haviam rompido com o Trotskismo nos anos 1950 e no começo dos anos 1960.

26. Nomeadas em referência ao principal teórico do revisionismo anti-trotskista, as organizações Pablistas rejeitaram especificamente a necessidade de construir partidos revolucionários independentes da classe trabalhadora baseados no programa da Quarta Internacional. Michel Pablo e seu principal companheiro político, Ernest Mandel, rejeitaram a caracterização de Trotsky da burocracia stalinista como contrarrevolucionária. Eles defendiam que a burocracia soviética, sob pressão dos eventos objetivos e do movimento espontâneo das massas, poderia ser compelida à levar adiante políticas revolucionárias. Da mesma maneira, a pressão de eventos objetivos poderia compelir os sociais-democratas e os nacionalistas burgueses a assumirem um papel revolucionário.

27. A conclusão que seria tirada desse amplo revisionismo do Trotskismo era de que não seria necessário construir a Quarta Internacional. Os Pablistas encontraram e glorificaram incontáveis “alternativas” ao Trotskismo, como Fidel Castro em Cuba e Ben Bella na Argélia. Por se recusar a aceitar a liquidação política da Quarta Internacional, os Pablistas denunciaram o Comitê Internacional como sendo “sectários de extrema-esquerda”.

28. Cinquenta anos atrás, os sociais-democratas, os stalinistas, os maoístas, e vários formas do nacionalismo burguês exerciam enorme influência sobre a classe trabalhadora e movimentos anti-imperialistas de massas. Mas o que resta dessas organizações hoje?

29. A União Soviética não existe mais, e a rede global de partidos stalinistas em grande medida desapareceu. Na China, o Partido Comunista é a organização política e de estado da elite dominante capitalista. Os partidos sociais-democratas são praticamente indistinguíveis dos partidos burgueses mais de direita. Em lugar nenhum os trabalhadores os veem como defensores dos seus interesses. Na medida em que os sociais-democratas tentam preservar um pingo de credibilidade executando um blefe para a esquerda (i.e., Corbyn na Grã-Bretanha), esse movimento fraudulento será exposto como uma farsa assim que alcançar o poder político, como ocorreu na Grécia.

30. Com relação aos movimentos nacionalistas burgueses, nada resta de suas pretensões anti-imperialistas e anti-capitalistas. A evolução do Congresso Nacional Africano, que se tornou o partido governante da África do Sul – defendendo implacavelmente os interesses dos ricos e fuzilando trabalhadores em greve –, é a expressão mais ilustrativa da trajetória histórica e da essência de classe do nacionalismo burguês.

31. Finalmente, as organizações Pablistas, junto com os vários movimentos que compõem a pseudo-esquerda, integraram-se ao establishment político burguês. O Syriza (A Coalizão Radical de Esquerda), na Grécia, é a maior expressão dessa integração, que desde sua chegada ao poder, em 2016, impõe as medidas de austeridade e as políticas anti-imigrantes exigidas pelos bancos europeus.

32. A explicação para o colapso político e o fim dessas organizações se encontra na contradição profundamente enraizada entre seus programas nacional-reformistas provinciais e o desenvolvimento do capitalismo como um sistema econômico globalmente integrado.

33. O elemento político comum das organizações stalinistas, maoístas, sociais-democratas, burguesas nacionalistas e Pablistas oportunistas era a dependência de seus programas da possibilidade de alcançar reformas dentro do quadro econômico do estado nacional. Conforme o processo de globalização econômica se acelerou nos anos 1980, a perspectiva e o programa dessas organizações nacionais perdeu toda sua viabilidade.

34. O potencial para a resolução bem-sucedida da crise da liderança da classe trabalhadora reside no alinhamento do programa do Comitê Internacional da Quarta Internacional com o processo objetivo de desenvolvimento econômico global e o desenvolvimento internacional da luta de classes. Essa é a base real para a vasta mudança, desde 1968, na relação de forças políticas entre o Trotskismo, conforme representado pelo Comitê Internacional da Quarta Internacional, e todos os representantes políticos do anti-marxismo e do pseudo-esquerdismo.

35. Trinta anos atrás, depois da expulsão dos remanescentes finais do oportunismo Pablista da Quarta Internacional, o Comitê Internacional desenvolveu a análise política internacional que guiaria seu trabalho nas décadas que se seguiram. Essa perspectiva, publicada em 1988, insistia que partidos revolucionários da classe trabalhadora poderiam ser desenvolvidos apenas através de um programa internacional que correspondesse às tendências objetivas do desenvolvimento capitalista. Ela explicava que o “desenvolvimento massivo das corporações transnacionais e a integração global resultante da produção capitalista produziram uniformidade sem precedentes nas condições dos trabalhadores do mundo”. [8]

36. O Comitê Internacional tirou dessa análise a seguinte conclusão estratégica:

Há muito tempo tem sido um princípio básico do marxismo que a luta de classes é nacional apenas em sua forma, mas que é, em essência, uma luta internacional. Entretanto, dadas as novas características do desenvolvimento capitalista, mesmo a forma da luta de classes precisa assumir um caráter internacional. Mesmo as lutas mais elementares da classe trabalhadora colocam a necessidade de coordenar suas ações em uma escala internacional. [9]

37. No Décimo Terceiro Congresso Nacional da Liga dos Trabalhadores (antecessora do Partido Socialista pela Igualdade nos Estados Unidos) em Agosto de 1988, as implicações práticas dessa análise foram explicadas:

A busca por soluções nacionais para a crise internacional leva inevitavelmente à subordinação de cada movimento nacional trabalhista às políticas de guerra comercial da burguesia. Não há saída para esse impasse exceto através do internacionalismo revolucionário, e nós dizemos isso não como uma frese de efeito. A suprema tarefa estratégica que enfrenta o movimento Trotskista é a unificação da classe trabalhadora de todo o mundo no que Trotsky uma vez se referiu como “uma única organização internacional proletária de ação revolucionária possuindo um centro mundial e uma orientação política mundial”.

Nós não concebemos isso como algum tipo de missão utópica. Nossa análise científica da época e da natureza da crise mundial atual nos convence não apenas que essa unificação do proletariado é possível; mas também que apenas um partido cujo trabalho diário é baseado nessa orientação estratégica pode se tornar enraizado na classe trabalhadora. Nós antecipamos que o próximo estágio das lutas proletárias vai se desenvolver inexoravelmente, sob a pressão combinada das tendências econômicas objetivas e a influência subjetiva dos marxistas, através de uma trajetória internacionalista. O proletariado vai tender cada vez mais a se definir na prática como uma classe internacional; e os internacionalistas marxistas, cujas políticas são a expressão dessa tendência orgânica, cultivarão esse processo e darão à ele forma consciente. [10]

38. A partir dessa análise, o Comitê Internacional implementou mudanças significativas no seu trabalho organizacional e prático. Até 1995 as seções do Comitê Internacional existiam como ligas. Em Junho daquele ano, a Liga dos Trabalhadores nos Estados Unidos estabeleceu o Partido Socialista pela Igualdade, uma mudança na forma organizativa que expressava, em meio à crise e o colapso das velhas organizações burocráticas de massas, a emergência de uma nova relação entre a tendência marxista revolucionária e a classe trabalhadora. A escolha do nome para o novo partido identificou a luta pela igualdade como o grande objetivo do socialismo e antecipou a raiva popular contra a desigualdade capitalista. Nos meses que se seguiram, todas as seções do Comitê Internacional realizaram a mesma reorganização política. Seguindo a transformação das velhas ligas em partidos, o Comitê Internacional adotou uma nova forma de trabalho político, utilizando a tecnologia de comunicações associada com o desenvolvimento da internet. O lançamento do World Socialist Web Site, quase exatamente vinte anos atrás, em Fevereiro de 1998, foi uma iniciativa política verdadeiramente revolucionária. Como o Comitê Internacional explicou:

Nós estamos confiantes de que o WSWS se tornará uma ferramenta sem precedentes para a educação política e a unificação da classe trabalhadora em escala internacional. Ele ajudará trabalhadores de diferentes países a coordenar suas lutas contra o capital, assim como as corporações transnacionais organizam sua guerra contra o trabalho através das fronteiras nacionais. Ele facilitará a discussão entre trabalhadores de todas as nações, permitindo-os comparar suas experiências e elaborar uma estratégia comum.

O CIQI espera que a audiência mundial do World Socialist Web Site cresça conforme a internet se expanda. Como uma forma rápida e global de comunicação, a internet tem implicações democráticas e revolucionárias extraordinárias. Ela pode permitir a uma audiência em massa ganhar acesso aos recursos intelectuais do mundo, desde bibliotecas e arquivos até museus. [11]

39. A publicação diária do World Socialist Web Site ao longo de um período de 20 anos é, por qualquer medida objetiva, uma conquista política extraordinária. A capacidade do quadro do Comitê Internacional de sustentar a publicação por um período tão extenso, sem perder um único dia programado de publicação, atesta sua clareza teórica e política e sua grande união e força organizacional. Não há outra publicação no mundo que relembre mesmo remotamente o World Socialist Web Site. Ele é não apenas a única publicação socialista de referência, analisando e comentando sobre os eventos principais do dia. É também o estrategista e a tribuna da classe trabalhadora em luta.

40. Ao longo do ano passado, o Google tentou colocar em uma lista negra e censurar o World Socialist Web Site. Esses esforços não estão dando certo. O número de leitores do WSWS continua aumentando. Ele está ganhando força do movimento emergente da classe trabalhadora e da juventude.

41. O passado é prólogo. Todo o trabalho teórico, político e prático do Comitê Internacional foi a preparação para o ressurgimento da luta de classes internacional. A tarefa mais importante é a de construir uma liderança revolucionária, sistematicamente, conscientemente e agressivamente. É sobre essa tarefa que uma resolução progressiva para a questão básica encarando a humanidade – socialismo ou barbárie – depende. O desafio de 2018 é de expandir o trabalho do Comitê Internacional da Quarta Internacional, estender o alcance de suas seções entre trabalhadores e a juventude que começam a lutar, conquistar novas forças para o programa da Revolução Socialista Mundial, e assumir a educação deles a partir da história e da perspectiva científica mundial do marxismo. O Comitê Internacional da Quarta Internacional celebrará o bicentenário do nascimento de Karl Marx de acordo com a sua máxima mais famosa:

“Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o objetivo, entretanto, é transformá-lo”.

*Publicado originalmente em 03 de Janeiro de 2018

Referências:
[1] Karl Marx, em Collected Works, Volume 20 (Moscou, 1964), p. 50
[2] Carta de Karl Marx para Joseph Weydemeyer, 5 de Março de 1852, publicada em Marx-Engels Collected Works (Nova Iorque, 1983), Volume 39, pp. 64–65
[3] “Richest 1% own half the world’s wealth, study finds”, publicado em https://www.theguardian.com/inequality/2017/nov/14/worlds-richest-wealth-credit-suisse
[4] “World’s Wealthiest Became $1 Trillion Richer in 2017”, publicado em https://www.bloomberg.com/news/articles/2017-12-27/world-s-wealthiest-gain-1-trillion-in-17-on-market-exuberance
[5] https://www.theguardian.com/inequality/2017/nov/14/worlds-richest-wealth-credit-suisse
[6] Ludwig Feuerbach and the End of Classical German Philosophy, publicado em Marx-Engels Collected Works, Volume 26 (Moscou, 1990), pp. 358-59
[7] The Second Congress of the Communist International, Volume 1 (Londres, 1977), p. 24
[8] “The World Capitalist Crisis and the Tasks of the Fourth International”, Fourth International, Volume 15, Nos. 3-5, Julho-Dezembro 1988, p. 4
[9] Ibid
[10] David North, “Report to the Workers League Thirteenth National Congress”, Fourth International, Vol. 15, Nos. 3-4, Julho-Dezembro 1988, pp. 38-39
[11] https://www.wsws.org/en/special/about.html


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