Jackson Lears*, London Review of Books, vol. 40, n. 1, pp. 15-18, 4/1/2018
“Pelo sim, pelo não, já começaram
as prisões. Mas o que mais chama a atenção nessas prisões é que as acusações
nada têm a ver com interferência de russos em alguma eleição.
Houve muitas conversas sobre a
possibilidade de os acusados apresentarem provas contra Trump em troca de sentenças
mais leves, mas não passavam de especulação.”
A política nos EUA só muito
raramente exibiu espetáculo mais desalentador. As atitudes repelentes,
grotescas e perigosas de Donald Trump são incômodas que chegue, mas também é
horrorosamente incômodo o fracasso da liderança do Partido Democrata, que absolutamente
não é capaz de se dar conta do que significou a campanha eleitoral de 2016. O
desafio que Bernie Sanders impôs a Hillary Clinton, combinado ao triunfo de
Trump, revelou a extensão da fúria popular contra a política de sempre, dos EUA
– essa mistura de política doméstica neoliberal e política externa
intervencionista que é consenso em Washington. Os neoliberais celebram a
serventia do mercado como único critério de valor; os intervencionistas exaltam
o aventureirismo militar em outros continentes como meio para combater o mal,
de modo a preservar o progresso global. Essas duas agendas já se mostraram
calamitosas para a maioria dos norte-americanos.
Em 2016, muitos registraram seu
desagrado. Sanders é social-democrata, e Trump não passa de charlatão demagogo,
mas as respectivas campanhas trouxeram fortemente marcado um repúdio
generalizado do tal consenso de Washington. Durante uma semana depois da
eleição, especialistas só fizeram discutir a possibilidade de alguma estratégia
melhor e mais hábil, para os Democratas. Até chegou a parecer que o partido
aprenderia alguma coisa, da derrota da Clinton. Então, de repente, tudo mudou.
Uma história que circulara
durante a campanha sem grande alarido voltou a circular: tinha a ver com a
acusação de que agentes russos teriam invadido e hackeado os
servidores do Comitê Nacional Democrata, revelando e-mails comprometedores
que teriam minado as chances da Clinton. Com velocidade espantosa, uma nova
ortodoxia centro-liberal brotou do nada e envolveu toda a grande mídia-empresa
e o establishment dos dois partidos em Washington. Essa religião
secular atraiu hordas de neoconvertidos durante o primeiro ano do governo de
Trump. Em sua capacidade para excluir o contraditório, é evento de construção
de opinião pública como jamais vi em toda a minha vida adulta, embora me faça
lembrar algumas memórias infantis desbotadas, do tempo da histeria
anticomunista durante o início dos anos 1950s.
A pedra de toque da nova fé,
baseada nas acusações de hacking, é a crença de que Vladimir Putin teria
orquestrado um ataque contra a democracia norte-americana e ordenado que seus
asseclas interferissem na eleição a favor de Trump. Essa história logo virou
evangelho pregado e acreditado com estonteante rapidez e completamente. Quem
não creia e duvide é declarado herege, defendedor(a) de Trump & Putin, os
dois males gêmeos, e cúmplices da conspiração que atacou o coração da
democracia norte-americana. Responsabilidade pela total ausência de debate cabe
em grande parte aos grandes veículos das grandes mídia-empresas.
O modo acrítico como abraçaram e
puseram-se a repetir sem parar o conto dos hackersrussos, fez do conto um
fato consumado na mente dos cidadãos. Difícil estimar até onde vai a fé popular
nessa nova ortodoxia, mas não parece ser credo pelo qual rezem só os insiders de
Washington. Se você questiona em conversas casuais a narrativa que todos
recebem já pronta e embalada, expõe-se ao risco de provocar olhares da mais
vida reprovação e de furiosa hostilidade – até de velhos e queridos amigos.
Para mim, é desconcertante e preocupante; em alguns momentos vieram-me à mente
as mais alucinadas fantasias da cultura pop (traficantes de órgãos
humanos, o ‘batismo’ com refrigerante envenenado para suicídio coletivo).
Como qualquer ortodoxia que valha
o que custe, a religião do hacking russo não depende de haver provas,
mas só, exclusivamente, de haver ‘sumidades’ que repitam seus sermõesex cathedra –
instituições e respectivos sacerdotes senis. As escrituras sobre as quais se
assenta a nova religião são uma mistura confusa e absolutamente sem provas
chamada ‘avaliação’ produzida em janeiro passado por um grupo de ‘especialistas
escolhidos a dedo’ – como os descreveu James Clapper, diretor da Inteligência
Nacional – da CIA, do FBI e da Agência de Segurança Nacional dos
EUA, ASN-EUA. As acusações dessa última foram feitas com certeza apenas
‘moderada’. O rótulo de Avaliação pela Comunidade de Inteligência gera a
enganadora impressão de que haveria unanimidade. Mas fato é que só três, das 16
agências de inteligência dos EUA, contribuíram para o tal relatório da tal
‘avaliação’.
E, verdade seja dita, a própria
‘avaliação’ inclui uma admissão crucialmente importante: “Nossas avaliações não
visam a significar que temos provas de que alguma coisa seja fato. As
avaliações baseiam-se em informações coletadas, as quais muito frequentemente
são incompletas ou fragmentadas, assim como a lógica, a argumentação e os
precedentes.” Pois apesar de tudo a ‘avaliação’ entrou na imaginação da
mídia-empresa e de seus jornalistas como se fosse fato sobejamente demonstrado
e comprovado, o que permitiu que os jornalistas assumissem imediatamente como
fato o que ainda teriam a obrigação de demonstrar.
Ao fazê-lo, os próprios
jornalistas passam a operar como avalistas do que digam as agências de
inteligência ou, no mínimo, como avalistas dos tais ‘especialistas escolhidos a
dedo’.
Não é a primeira vez que as
agências de inteligência desempenharam esse papel. Quando ouço falar de
Avaliação pela Comunidade de Inteligência referida como fonte confiável, sempre
recordo o papel que teve o New York Times no serviço de legitimar a
ameaça que seriam as inexistentes armas de destruição em massa de Saddam
Hussein; para nem falar da longa história do projeto de desinformar a opinião
pública (hoje mascarado como crítica às ‘fake-news’), como tática para
propagandear a agenda política de um ou outro governo ou grupo que mais
interesse às empresas de mídia e seus proprietários e acionistas.
Hoje, mais uma vez, a
empresa-imprensa e as mídia-empresas estabelecidas operam para legitimar pronunciamentos e ‘declarações’ que façam
os Pais da Igrejinha. Clapper está entre os mais vigorosos desses
pronunciadores e declaradores (no Brasil, o ex-FHC e atual nada é – ou ele mesmo supõe que devesse ser –
incansável pronunciador & declarador). Em 2013 Clapper cometeu crime de
perjúrio, quando negou perante o Congresso que a ASN havia ‘deliberadamente’
espionado cidadãos norte-americanos – mentira e crime de perjúrio pelos quais
jamais foi formalmente acusado e devidamente processado. Em maio de 2017, disse
a Chuck Todd da rede NBC que os russos muito provavelmente teriam agido em
colusão com a equipe de campanha de Trump, “porque são quase geneticamente
dados a cooptar, furar, invadir, obter favores, o que for, o que é típica
técnica russa”. A atual ortodoxia isenta os Pais da Igreja de responder às leis
às quais estão submetidos os cidadãos comuns; e condena os russos – e dentre
eles o pior de todos, Putin – como o mal encarnado, como “quase geneticamente”
diabólicos.
É difícil para mim compreender
como o Partido Democrata, que antes tantas vezes mostrou-se cético e crítico do
modo como operam as agências de inteligência, aceita hoje a CIA e o FBI como
fontes de verdade indiscutível. Uma explicação possível é que a eleição de
Trump tenha gerado uma emergência permanente na imaginação mais progressista,
baseada na fé que ensina que a ameaça ‘trumpeana’ é única, raríssima, sem
precedentes.
É verdade que Trump é ameaça
visceralmente real. Mas George W. Bush e Dick Cheney foram ameaças tão reais
quanto Trump. O dano causado por Bush e Cheney – que destruíram o Oriente
Médio, legitimaram a tortura e expandiram o poder executivo inconstitucional –
foi, aquele sim, realmente sem precedentes e, provavelmente, permanente. Trump
é ameaça sem precedentes aos imigrantes sem documentos e a viajantes muçulmanos
– pessoas cuja proteção é dever urgente e necessário para todos os cidadãos de
bem. Mas na maioria das questões Trump não passa de mais um problema
Republicano padrão. Está perfeitamente à vontade com a agenda de arrocho [não é
‘austeridade’; é ARROCHO (NTs)] de Paul Ryan, que envolve gigantescas
transferências de riqueza para os norte-americanos já mais privilegiados. Está
tão comprometido quanto qualquer outro Republicano com derrubar a [lei] Affordable
Care Act, de Obama. Durante a campanha posou como apóstata do livre comércio e
opositor das intervenções militares dos EUA em outros países; mas agora, já
instalado no poder, sua ‘visão de mundo’ sobre o livre comércio e sua política
externa já voltou a ser ditada por uma equipe de generais com imaculadas
credenciais pró-intervencionismo.
Trump está comprometido com dar
prosseguimento ao financiamento pródigo de um já inchado Departamento da
Defesa, e sua Fortaleza EUA é versão supurada e indisciplinada da ‘nação
indispensável’ de Madeleine Albright. Ambos, Trump e Albright assumem que os
EUA devem poder fazer o que lhes dê na telha na arena internacional: Trump
porque é o maior país do mundo; Albright porque é força excepcional para o bem
global. Tampouco há qualquer novidade em Trump desejar uma détente com
a Rússia, a qual, até pelo menos 2012 foi posição oficial do Partido Democrata.
Sem precedentes, no que tenha a ver com Trump é o estilo ofensivo: desdenhoso,
de provocação, inarticulado, perfeito para apelar à ira e à ansiedade de seu
público alvo. Seus excessos já permitem racismo escancarado e vaidosa misoginia
dentre alguns de seus apoiadores. Isso é causa para denúncia, mas não me parece
que justifique a mania anti-Rússia.
À parte o que seria suposto ‘sem
precedentes’ em Trump, há dois pressupostos por trás do furor em Washington:
primeiro, que o ataque de hackers russos realmente aconteceu,
indiscutivelmente; segundo, que os russos são inimigos implacáveis dos EUA. O
segundo garante a carga emocional que alimenta o fogo do primeiro. Na minha
avaliação, os dois são problemáticos. Quanto ao primeiro, não há qualquer prova
para as acusações de hacking e é bem provável que tudo continue como
está. Edward Snowden e outros que conhecem a Agência de Segurança Nacional
dizem que, se tivesse havido hacking de longa distância, a agência
teria monitorado e conheceria todos os detalhes e poderia divulgar a operação
sem comprometer as próprias fontes e métodos secretos.
Em setembro, disse à revista Der
Spiegel que a ASN-EUA “provavelmente sabe muito bem quem foram os
invasores”. Mesmo assim “não apresentou qualquer prova, embora eu suspeite que
existam. A pergunta é: por que não? Suspeito que descobriram outros invasores
nos sistemas, talvez houvesse seis ou sete grupos em ação.” A capacidade da
ASN-EUA para rastrear a ação de hacking até as fontes é questão de
registro público. Quando a agência investigou o bem-sucedido hacking chinês
em instalações militares dos EUA e em pontos da indústria da defesa, ela foi
perfeitamente capaz de rastrear os hackersaté o local de onde partira a
ação – um prédio do Exército Popular de Libertação em Xangai. A informação foi
publicada no New York Times, mas dessa vez o fato de a ASN-EUA não
ter oferecido qualquer prova passou estranhamente sem comentários. Quando The
Intercept publicou uma matéria sobre a suposta descoberta, pela ASN, de
que a inteligência militar russa tentara invadir os sistemas eleitorais dos EUA
e locais, as falas sem qualquer prova documental da Agência sobre as origens
russas do hackingapareceram e lá ficaram, sem que ninguém questionasse
coisa alguma; e rapidamente passaram a ser tratadas como se a simples notícia
fosse alguma espécie de autoconfirmação por poder midiático divino.
Entrementes, formou-se uma bruma
espessa de acusações complementares, que incluíam acusações muito mais amplas e
vagas de colusão da equipe de campanha de Trump e o Kremlin. Permanece possível
que Robert Mueller, ex-diretor do FBI agora nomeado para investigar
as acusações, apareça com alguma prova aproveitável de qualquer contato entre o
pessoal de Trump e vários russos. Surpreendente seria se um procurador
experiente, dotado de poderes que lhe permitem levar a cabo investigação séria,
acabe o trabalho sem ter o que mostrar. Pelo sim, pelo não, já começaram as
prisões. Mas o que mais chama a atenção nessas prisões é que as acusações nada
têm a ver com interferência de russos em alguma eleição.
Houve muita conversa sobre a
possibilidade de os acusados fornecerem provas contra Trump em troca de
sentenças mais leves, mas não passa de especulação. Paul Manafort, que foi
diretor de campanha de Trump no início do período pré-eleitoral, declarou-se
inocente nas acusações de que não teria registrado sua empresa de Relações
Públicas como agente estrangeiro, nos órgãos do governo da Ucrânia; e de que
teria ocultado os milhões de dólares que recebeu por serviços. Mas tudo isso
aconteceu antes da campanha de 2016. George Papadopolous, ex-conselheiro de
política exterior, declarou-se culpado na acusação de ter mentido ao FBI sobre
esforços que empreendeu para conseguir um encontro entre o pessoal de Trump e o
governo russo – oportunidade que a campanha de Trump dispensou. O preso mais
recente de Mueller, Michael Flynn, islamófobo obcecado que serviu por pouco
tempo como Conselheiro de Segurança Nacional de Trump, declarou-se culpado nas
acusações de ter mentido ao FBI sobre reunião com o embaixador russo
em dezembro – semanas depois da eleição. Trata-se aí do tipo de diplomacia de
bastidores que acontece rotineiramente no período entre um governo que sai e o
que o substituirá. Absolutamente não se pode cogitar de crime de colusão com
autoridade estrangeira.
Até aqui, depois de meses de
‘petardos’ que acabaram por se revelar traques de salão, ainda não há sequer
uma prova prestável de que o Kremlin tenha ordenado alguma interferência nas
eleições nos EUA. Ao mesmo tempo, surgiram graves suspeitas quanto aos
fundamentos jurídicos das acusações de promotores e seus investigadores.
Observadores independentes já disseram que o mais provável é que os emails tenham
sido vazados [de dentro para fora], não hackeados [de fora para
dentro]. Nesse front, o caso mais persuasivo foi construído por um grupo
chamado “Profissionais Veteranos da Inteligência, pela Sanidade” [ing. Veteran
Intelligence Professionals for Sanity, VIPS], todos ex-funcionários de
agências da inteligência dos EUA que ganharam fama e respeito quando, em 2003,
desmascararam as mentiras de Colin Powell sobre as tais ‘armas de destruição em
massa’ que Saddam Hussein teria no Iraque, apenas horas depois de Powell ter
exibido sua falsa ‘prova’ na ONU. (Há membros dos VIPS que discordam
das conclusões do relatório da organização; mas os argumentos deles são
rebatidos pelos autores do relatório.) As descobertas dos VIPS não
mereceram qualquer atenção dos grandes veículos, exceto de Fox News – o que, do
ponto de vista do centro-esquerda é ainda pior do que ser ignorado por Fox News.
A mídia-empresa dominante descartou o relatório dos VIPS como ‘teoria
da conspiração’ (aparentemente, não se aplicaria à fábula dos hackers russos).
A questão crucial aqui e em todos
os demais locais é que já foram completamente excluídas da discussão pública
todas e quaisquer perspectivas de crítica à narrativa ortodoxa, mesmo quando a
crítica vem de gente com credenciais profissionais e respeitável currículo.
As duas histórias, a dos hackers que
teriam invadido o Comitê Nacional Democrata, e a dos e-mails que envolveram os emails de
John Podesta, agente da equipe de campanha de Clinton, têm, ambas, a
colaboração de uma gangue de supostos hackers supostos russos
chamados Fancy Bear – também conhecidos entre o pessoal técnico como APT28
[ditos “Anonymous”]. O nome Fancy Bear foi introduzido por Dimitri Alperovitch,
chefe de tecnologias da empresa Crowdstrike, firma de segurança cibernética
contratada pelo Comitê Nacional Democrata para investigar o roubo de seus emails.
Alperovitch é também membro do
Conselho Atlântico [ing. Atlantic Council], think-tankanti-Rússia que
opera em Washington. No relatório que apresentou, a empresa Crowdstrike não
apresentou sequer uma prova, que fosse, que desse algum fundamento à
‘conclusão’ de que os russos seriam responsáveis pelo ataque, e, isso, para nem
falar da ideia, que o relatório promove ativamente, de que os ‘hackers russos’
seriam ligados à inteligência militar russa.
Pois mesmo assim e sem que
ninguém apresentasse prova alguma de coisa alguma, desse ponto em diante já
ninguém questionou a ‘conclusão’ de que teria havido um ciberataque russo aos
computadores do CND.
Quando o FBI chegou à
cena, os seus agentes nem pediram acesso nem algum acesso lhes foi negado, aos
servidores do Comitê Nacional Democrata; em vez disso, o FBIconfiou
integralmente na análise da empresa Crowdstrike. E a empresa Crowdstrike,
naquele momento, estava também dedicada a rastrear outra acusação: de que os
russos teriam hackeado com sucesso o sistema de orientação da
artilharia ucraniana. Os militares ucranianos e o Instituto Internacional
Britânico para Estudos Estratégicos desmentiram essa ‘conclusão’; Crowdstrike
recuou. Mas a análise que Crowdstrike entregou, do caso do Comitê Nacional
Democrata continuou valendo e chegou, até, a ser tomada por base para a
Avaliação que a Comunidade de Inteligência distribuiu em janeiro.
A boataria em torno da ação de hackers jamais
teria chegado a ter o caráter de urgente gravidade que adquiriu, não fosse por
um segundo pressuposto que vinha com ela: o de que a Rússia seria inimiga
excepcionalmente perigosa, com a qual se deve evitar qualquer contato. Sem essa
fé auxiliar, os encontros entre o advogado-geral Jeff Sessions e autoridades
russas em setembro de 2016 teriam sido vistos como reuniões de rotina entre um
senador e autoridades de outro país. As conversas pós-eleições entre Flynn e o
embaixador russo tampouco pareceria suspeita e não passaria também de rotina.
Os esforços de asseclas de Trump para conseguir negócios na Rússia seriam só
imorais. O encontro entre Donald Trump Jr. na Trump Tower com a advogada russa
Natalia Veselnitskaya seria transformado, de um melodrama de roteiro ruim, numa
comédia de erros – com o filho do candidato esperando obter informação a ser
usada contra Clinton, até se dar conta de que Veselnitskaya só queria falar
contra as sanções e da retomada do fluxo de órfãos russos para os EUA. E o
próprio Putin seria convertido em mais um autocrata daqueles com os quais as
democracias podem ter negócios, sem ter de endossá-los.
Vozes céticas, como as dos
especialistas VIPS, foram afogadas num tsunami de desinformação. Matérias
claramente mentirosas, como a que o Washington Post publicou, segundo
a qual os russos teriam hackeado a rede elétrica de Vermont, são
publicadas, e 24 horas depois, desmentidas. Às vezes – como as matérias sobre
interferência dos russos nas eleições francesas e alemãs – nunca são
desmentidas, nem depois de já estarem completamente desmascaradas e
desacreditadas. Essas matérias vêm sendo desmontadas completamente pelos
serviços de inteligência de França e Alemanha, mas nem por isso param de
circular, envenenando a atmosfera e desnorteando a discussão social. A ideia de
que os russos teriam hackeado os sistemas de votação nos EUA já foi
refutada por autoridades eleitorais dos estados da Califórnia e de Wisconsin,
mas as considerações dessas autoridades só geraram sussurros, se comparados à
gritaria e ao alarido gerados pela mentira inicial. A pressa para publicar sem
suficiente atenção à correção da informação já está convertida em nova
normalidade no jornalismo comercial. Retratação ou correção praticamente nada
valem, porque a mentira publicada já fez o que foi concebida para fazer.
***
Consequência disso é uma confusão
sempre crescente que tudo envolve. O niilismo epistemológico prospera, mas
algumas pessoas e instituições têm mais poder que outras para definir o que
constituirá uma realidade ‘combinada’ para satisfazer essas pessoas e instituições,
mais que outras. E quem diga o que aqui digo, arrisca-se a ser descartado e
expulso da ordem humana como o mais desprezível dos desprezíveis no léxico da
Washington contemporânea: o divulgador de teorias da conspiração. Seja como
for, fato é fato e permanece: às vezes, gente muito poderosa dá jeito de
‘noticiar’ e repetir, repetir, repetir ideias que só beneficiam interesses
comuns daqueles poderosos. Não faz qualquer diferença se se chama a isso
hegemonia, conspiração ou simples e puramente privilégio. O que importa é o
poder para criar o que Gramsci chamou de “senso comum” de toda uma sociedade.
Ainda que grande parte dessa sociedade seja indiferente ou desconfie do senso
comum oficial, mesmo assim ele é incorporado entre os pressupostos tácitos que
fixam os limites da “opinião responsável”.
O establishment Democrata
(e uns poucos Republicanos) e os grandes veículos da mídia-empresa converteram
em senso comum do atual momento uma dita ‘interferência dos russos’. Que tipo
de serviço cultural presta esse senso comum? Quais as consequências do
espetáculo que a mídia-empresa batizou e chama (com a originalidade que lhe é
característica) de ‘Russia-gate’?
A consequência mais imediata é
que, ao encontrar demônios estrangeiros que podem carregar toda a culpa pela
ascensão de Trump, a liderança dos Democratas encontrou local para onde
transferir a culpa pela derrota, depositando-a bem longe das próprias políticas
democratas, sem ter de questionar nenhum dos pressupostos básicos daquelas
políticas. Em pleno afastamento geral para cada vez mais longe de Trump, os
Democratas deram jeito, até, de se apresentar como dissidentes – ‘#a
resistência’, com os clintonistas logo se autodenominaram, apropriando-se da
expressão logo nos dias que se seguiram à eleição. Os Democratas vedetes
começaram a servir-se da palavra ‘progressista’ para designar uma plataforma
que se reduz a pouco mais que a preservação do Obamacare, com muita
gesticulação na direção de maior igualdade de renda e de proteção às minorias.
É agenda tímida demais. Nada diz sobre enfrentar a influência da concentração
de capitais no campo político, sobre reduzir o super inchado orçamento da
Defesa nem sobre retirar militares dos EUA superdistendidos, de já quase
incontáveis compromissos em terras estrangeiras; contudo, sem iniciativas
nessas direções decisivamente importantes, até a mais tímida das políticas
igualitaristas enfrenta obstáculos insuperáveis.
Estão em gestação insurgências
mais genuínas, que confrontam o poder das grandes empresas e conectam as
políticas internas à política externa, mas terão de enfrentar duros combates
morro acima contra o dinheiro e o poder que já se entrincheirou na liderança
Democrata – gente feito Chuck Schumer, Nancy Pelosi, os Clintons e o Comitê
Nacional Democrata. Russia-gate oferece às elites Democratas um modo
para promover a unidade partidária contra Trump-Putin, enquanto o Comitê
Nacional Democrata expurga os apoiadores de Sanders.
Para o Comitê Nacional Democrata,
a grande valia da fábula dos hackers russos é que ela foca a atenção
bem longe da questão de o quê, afinal de contas, estava realmente escrito nos
tais emails.
Os documentos revelaram
organização profundamente corrupta, cuja fachada de imparcialidade nunca passou
de puro engodo. Até o sempre pro-Clintons Washington Postjá admitiu que
‘muitos dos emails mais comprometedores sugerem que o Comitê tentava
ativamente minar a campanha presidencial de Bernie Sanders.’ Mais provas de que
a máquina Clinton cometeu crime de colusão com o Comitê Nacional Democrata apareceram
recentemente num memorial redigido por Donna Brazile, que se tornou presidenta
interina do Comitê Nacional Democrata depois que Debbie Wasserman Schultz
renunciou nos primeiros dias das revelações dos emails. Brazile relata ter
descoberto um acordo, datado de 26/8/2015, que especificava (ela escreve):
“que em troca de levantar
dinheiro e investir no Comitê Nacional Democrata, Hillary controlaria as
finanças e a estratégia do Partido, além de todo o dinheiro levantado. A
campanha dela tinha o direito de vetar nomes para o cargo de diretor de
comunicações do Partido e tomaria decisões finais sobre todos os nomes para
todos os cargos da equipe. O Comitê Nacional Democrata também teria de
consultar a campanha da candidata sobre todos os indicados para todos os
cargos, sobre decisões de orçamento, de dados, analíticos e distribuição de
material por correio (ing. mailings).”
Antes mesmo de as primárias
começarem, o supostamente neutro Comitê Nacional Democrata – que estivera à
beira de falir – já fora arrendado pela campanha de Clinton.
Outra recente revelação de
táticas do Comitê Nacional Democrata diz respeito à investigação de supostos
laços entre Trump e Putin.
A história começou em abril de
2016, quando o Comitê Nacional Democrata contratou uma empresa de pesquisa com
sede em Washington, de nome Fusion GPS, para descobrir quaisquer conexões entre
Trump e a Rússia. O negócio envolveu o pagamento de ‘dinheiro em troca de lixo’
[ing. ‘cash for trash’], como a campanha de Clinton gostava de dizer. A
empresa Fusion GPS conseguiu produzir o lixo que se esperava dela, um relato
redigido em tom sinistro pelo ex-agente da inteligência britânica, Christopher
Steele, baseado em boatos e comprado de fontes russas anônimas. Entre
prostitutas e chuveiros de ouro, afinal havia uma história: o governo russo há
anos estaria chantageando e subornando Donald Trump, a partir do pressuposto de
que seria presidente e poderia servir aos interesses do Kremlin. Nesse conto de
realismo fantástico, Putin é pintado como vidente com dotes sobrenaturais,
capaz de adivinhar o futuro. Como outras acusações de colusão, essa também
foi-se tornando mais e mais vaga à medida que o tempo passava, tornando cada
dia mais obscura a atmosfera e sem oferecer nem fiapo de prova de coisa alguma.
A campanha de Clinton tentou
persuadir os veículos da mídia-empresa do establishment a dar
publicidade ao dossiê Steele. Mas com surpreendente compostura, todos se
negaram a promover aquele repugnante lixo político. Mas parece que o FBI levou
a sério o dossiê Steele, o suficiente, pelo menos, para incluir um apêndice
secreto que havia nele na Avaliação da Comunidade de Inteligência.
Duas semanas antes da posse,
James Comey, diretor do FBI, descreveu o dossiê para Trump. Depois que o
comunicado de Comey vazou para a mídia, o website Buzzfeed publicou a
íntegra do dossiê – que gerou histeria e gargalhadas no establishment em
Washington.
O dossiê Steele habita um reino
penumbroso onde ideologia e inteligência, desinformação e revelação
sobrepõem-se. É a antecâmara do sistema mais amplo de niilismo epistemológico
criado por várias facções rivais na comunidade de inteligência: a ‘árvore de
fumaça’ que, para o romancista Denis Johnson, simbolizava as operações da CIA no
Vietnã. Inalei, eu, pessoalmente, aqueles fumos em 1969-70, quando trabalhava
como criptógrafo com acesso aos mais altos escalões Top Secret num
navio da Marinha dos EUA que transportava mísseis armados com ogivas nucleares
– cuja existência era absolutamente negada. Perdi minha autorização Top
Secret e adiante fui demitido com desonra, quando me recusei a ser
integrado ao Sistema do Autenticador Selado, que autorizaria o lançamento das
tais armas nucleares supostas inexistentes. Desde então a árvore de fumaça só
fez crescer e tornar-se mais impalpável e mais complexa.
Mesmo assim, agora, o Partido
Democrata embarcou num processo de reabilitação em escala total da comunidade
de inteligência – ou, pelo menos, da parte dela que apoia a ‘hipótese’ do hacking russo.
(Pode-se ter absoluta certeza de que há desacordo por trás do palco.) E não é
só que o establishment Democrata esteja abraçando o estado profundo.
Parte da base do Partido, convencida de que Trump e Putin são irmãos siameses
unidos pelo osso pélvico, dedica-se a vociferar sobre ‘traição’, como uma neo-Sociedade
John Birch.
Pensei em todas essas ironias
quando visitei em Londres a exposição na Tate Modern intitulada Soul of a
Nation: Art in the Age of Black Power [Alma de uma nação: arte na era do
Black Power], que reúne trabalhos de artistas norte-americanos negros dos anos
1960s e 1970s, quando agências de inteligência (e agentes provocadores)
comandavam um ataque das autoridades contra militantes negros, contra os que se
opunham ao recrutamento militar obrigatório, aos desertores e a ativistas
pacifistas. Entre as pinturas, colagens e assemblages havia uma
bandeira dos Confederados cercada de sombrias reminiscências do passado de Jim
Crow – um membro da KKK em traje completo, um cadáver negro pendurado numa
árvore. Também lá estavam pelo menos meia dúzia de bandeiras dos EUA,
justapostas ou em pedaços a imagens da opressão racista contemporânea que
poderia ter acontecido em qualquer ponto dos EUA: cadáveres de homens negros
presos em máquinas de tortura por esqueletos em uniformes de policiais; um
prisioneiro negro amarrado a uma cadeira, à espera da tortura. A ideia era
mostrar contraste bem visível entre as pretensões da “terra dos livres” e as
práticas das forças do estado de segurança nacional e polícias locais.
Os artistas negros daquela era
conheciam bem o inimigo: os negros não estavam sendo mortos e encarcerados por
algum nebuloso inimigo estrangeiro, mas pelo FBI, a CIA e a
polícia.
O Partido Democrata desenvolveu
hoje uma nova visão de mundo, uma parceria mais ambiciosa entre os
intervencionistas humanitários liberais e os militares neoconservadores, do que
a que existiu sob Obama, o cauteloso. A consequência mais desastrosa para o
Partido Democrata, da nova ortodoxia anti-russos, pode ser a seguinte: perderam
a oportunidade para formular uma política externa mais humana e mais coerente.
A obsessão com Putin apagou qualquer chance de complexidade, do quadro que os
Democratas se fazem do mundo, e criou um vácuo que foi rapidamente preenchido
pelas fantasias monocromáticas de Hillary Clinton e de seus aliados
excepcionalistas.
Para gente como Max Boot e Robert
Kagan, a guerra é um estado de coisas desejável, especialmente quando vista do
camarote confortável de seus teclados, e o resto do mundo – exceto uns poucos
maus rapazes – está cheio de populações que só fazem ansiar por construir
sociedades exatamente como as nossas: pluralistas, democráticas e abertas aos negócios.
É difícil pôr abaixo essa fantasia, quando se adere a algum sentimento
humanitário. No mundo há sofrimento horrendo; os EUA têm recursos abundantes
para ajudar a aliviá-lo; o imperativo moral é claro.
Há incontáveis formas de
engajamento internacional que não envolvem intervenção militar. Mas a trilha
pela qual opta a política dos EUA, muito mais frequentemente do que suporia a
retórica humanitarista não passa de tênue cortina para cobrir as vergonhas de
uma geopolítica muito mais mundana – que define o interesse nacional dos EUA
como se fosse global e virtualmente sem limites.
Tendo chegado à maioridade
durante a Guerra do Vietnã, consequência calamitosa dessa visão deformada de
interesse nacional, sempre me senti atraído pela crítica realista do globalismo.
Realismo é rótulo maculado para sempre pela associação com Henry Kissinger, que
usava a expressão como argumento a favor de intervenções clandestinas e não
clandestinas nos assuntos de outros países. Mas há outra tradução mais humana
de realismo, de George Kennan e William Fulbright, a qual enfatiza os limites
da força militar e insiste em que todo grande poder exige grande contenção.
Essa tradição desafia a doutrina da mudança de regime escondida sob a máscara
da promoção da democracia, a qual, apesar dos fracassos abissais no Iraque e na
Líbia – ainda preserva desconcertante legitimidade na Washington oficial. Russia-gate renovou
a vida útil do realismo de farsa.
*
Para aferir o impacto corrosivo
da fixação dos Democratas contra a Rússia, pode-se começar por perguntar por
tudo de que os Democratas não falam, quando falam do ‘hacking russo’.
Para começar, não falam de outros
tipos de interferência na eleição, como os muitos meios do Partido Republicano
para expurgar os direitos de votantes que se incluam em grupos minoritários.
Também não falam sobre o orçamento de um trilhão de dólares da Defesa, que já
extingue, no berço, a possibilidade de serviço social de atendimento à saúde
pago por família [ing. single-payer healthcare] e outros programas sociais
urgentemente necessários; nem falam sobre a modernização do arsenal atômico dos
EUA, que Obama iniciou e Trump planeja acelerar, e que aumenta o risco de
calamidade ambiental irremediável, de guerra nuclear – ameaça hoje mais grave
do que jamais foi em décadas de animosidade dos EUA contra a Rússia. A ambição
de derrubar Trump por impeachment, condenando-o por crime de colusão com a
Rússia, gerou uma atmosfera de ansiedade quase frívola entre os Democratas, o
que os fez esquecer que o resto do Partido Republicano é constituído de vários
políticos muito mais astutos para operar nos subterrâneos de Washington do que
o presidente Trump jamais será.
A busca de alternativas à
catástrofe gerada pelas políticas dos Republicanos não está sendo liberada pelo
Partido Democrata: há um plano de impostos que afogará os pobres e a classe
média para beneficiar os ricos; uma caçada ensandecida a reservas de
combustíveis fósseis que já resultou na contaminação do sistema de fornecimento
de água ao povo Dakota; e há continuado apoio para políticas de militarização
das polícias e encarceramento em massa.
As populações locais é que são
ameaçadas por vazamentos de petróleo e espancamentos pelas polícias –, e nessas
populações sobrevive o popularismo humano. Uma multidão de grupos insurgentes
começaram a usar a indignação contra Trump como alavanca para empurrar o
Partido na direção de políticas igualitaristas: Justice Democrats, Black
Lives Matter, Democratic Socialists of US, além de grande número de
organizações locais e regionais. Essas organizações reconhecem que há razões
muito mais urgentes – e genuínas – para fazer oposição a Trump, que vagas
alegações não provadas e provavelmente falsas do começo ao fim, de colusão com
a Rússia. E essas organizações impõe um desafio muito necessário ao longo
reinado do neoliberalismo e à arrogância tecnocrática que levou à derrota da
Clinton nos estados do “Cinturão
da Ferrugem“. Convencidos de que a liderança atual jamais conduzirá
mudanças significativas, esses grupos buscam fundos e financiamento bem longe
do Comitê Nacional Democrata. Essa é a verdadeira resistência, e nada tem a ver
com ‘#theresistance’.
Em algumas questões importantes,
como o apoio que se alastra ao sistema de assistência à saúde por família;
aumento no salário mínimo ou garantia de proteção a imigrantes sem documentos,
contra as formas mais flagrantes de exploração – esses insurgentes conquistam
apoios cada dia mais amplos. Candidatos como Paula Jean
Swearengin, filha de mineiro de carvão de West Virginia [a canção é
homenagem dos tradutores (NTs)]e candidata às primárias do Partido Democrata,
aspirante à indicação para o Senado dos EUA, desfiam hoje o establishment Democrata
que insiste no rosto colado com os Republicanos para mais bem servirem ao
capital concentrado. Contra Swearengin concorre Joe Manchin, que o Los
Angeles Times comparou a Doug Jones, outro Democrata ‘muito conservador’
que venceu recentemente a eleição no Alabama para o Senado dos EUA, derrotando
por poucos votos um Republicano acusado repetidas vezes de agressão sexual
contra meninas de 14 anos. Esse resultado causa-me algum alívio, mas nem por isso
me integro-me ao êxtase coletivo dos Democratas, o qual só revela o insuperável
comprometimento do Partido com a velha política de sempre. Os líderes
Democratas se autopersuadiram (e persuadiram também grande parte da base) de
que a única coisa que falta à república é restaurar o status quo ante Trump.
Mantêm-se cegos e surdos ante a impaciência popular ante as velhas fórmulas.
Jess King – menonita, graduada pelo Bard College e fundadora de uma ONG
local sem finalidades de lucro que concorre ao Congresso pelo grupo Justice
Democrat em Lancaster, Pensilvânia – pôs a coisa nos seguintes termos:
‘Vemos uma paisagem política em
transformação nesse momento, que não se pode aferir pelas políticas de esquerda
e de direita de antes, mas por políticas de baixo para cima. Na Pensilvânia e
em muitos outros lugares nos EUA vê-se crescer um popularismo econômico de
base, que se organiza contra o establishment e o status quo que
não se ocuparam com ajudar e salvar a vida e o futuro de tantos seres humanos
em nosso país.’
Democratas insurgentes também
estão construindo uma crítica popular contra a húbris imperial que patrocinou
incontáveis cruzadas fracassadas, exigiu sacrifício monstro da classe
trabalhadora e mobilizou apoio a Trump – porque se apresentou (embora nunca
tenham cumprido a promessa) como opositor do intervencionismo sem fim. Na
política exterior, os insurgentes enfrentam oposição ainda mais ferozmente
entrincheirada que na política interna: um consenso bipartidário altamente
inflamável pelo ultraje ante a ameaça que o ‘hacking russo’ imporia à
democracia. Mesmo assim, encontraram uma saída tática à frente, focando-se na
carga desigual que pesa muito mais sobre os pobres e a classe trabalhadora,
para promover e manter o império norte-americano.
Essa abordagem anima Autopsy: The Democratic
Party in Crisis, documento de 33 páginas, de vários autores, entre os quais
Norman Solomon, fundador de um lobby insurgente tecido na rede, RootsAction.org. ‘O mote do
Partido Democrata, de que lutaria por ‘famílias trabalhadora’, foi gravemente
minado pela recusa dos Democratas a se opor em desafio contra o poder dos
empresários, o que permitiu que Trump aparecesse travestido em guerreiro pelos
direitos do povo’ – lê-se em Autopsy. Mas a especificidade desse
documento, que o diferencia da maior parte de outras críticas progressistas, é
a conexão necessária, inescapável, que o ensaio aponta entre a política de
classes doméstica e a política exterior dos EUA.
Para os que mal sobrevivem no
Cinturão da Ferrugem, frequentemente o serviço militar surgia como única via de
fuga das ruínas que as políticas neoliberais deixaram por ali; mas o preço da
fuga já está alto demais. Como Autopsy observa, “a lógica da guerra continuada”
– que Clinton chama de “liderança global” –
era [em 2016] muito mais
compreensível para o correligionário médio dos Democratas do que para os
norte-americanos das regiões que sentiam diretamente a tragédia dos soldados
mortos, dos mutilados, dos traumatizados de guerra. Depois de uma década e meia
de guerras ininterruptas, pesquisas de dados extraídos de padrões de voto
sugerem que a campanha da Clinton, movida por intransigente propaganda
pró-guerras, influenciou contra a candidata Democrata as comunidades de
trabalhadores mais duramente feridas pelas baixas de militares no Iraque e no
Afeganistão.
Francis Shen da Universidade de
Minnesota e Douglas Kriner da Boston University analisaram os resultados das
eleições em três estados chaves – Pensilvânia, Wisconsin e Michigan – e
descobriram que, “mesmo operando em modelo estatístico que admitia várias
outras explicações alternativas, podemos afirmar que há forte relação, muito
significativa, entre a proporção de militares sacrificados em cada comunidade,
e o apoio a Trump.”
O currículo de Clinton, de apoio
acrítico a intervenções militares, permitiu que Trump ganhasse eleitores pelos
dois lados: tanto ao se beneficiar do ressentimento jingoísta, quanto ao se
apresentar como quem defendesse o fim das guerras superprolongadas e sem
sentido. Kriner e Shen concluem que os Democratas talvez tenham de “reexaminar
a própria postura na política externa, se quiserem superar os ganhos eleitorais
que Trump obteve em blocos de eleitores exauridos e alienados da realidade
política próxima, por 15 anos de guerra.”
Se os movimentos insurgentes
dentro do Partido Democrata começarem a formular uma política externa
inteligente e crítica, nesse caso é possível que os eleitores reconsiderem. E o
mundo poderá ser analisado sob foco mais fino, como lugar onde o poder dos EUA
é limitado, assim como também é limitada a virtude dos EUA. Para mim, como
Democrata, é resultado que todos devemos desejar com devoção. É projeto de
longo prazo, mas as coisas já começaram a acontecer por aí, perto de nós.
*Em Oriente Mídia | Traduzido por
Vila Vudu
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