Percebe-se a perplexidade da SIC:
se o formato existe há tanto tempo em países "civilizados" sem
problemas de maior, como é que no nosso humilde e pequeno e pacóvio Portugal
sucede isto?
Fernanda Câncio | Diário de Notícias
| opinião
Um reality show que visa exibir
crianças "mal comportadas" no seio da família, as suas birras e as
reações dos pais e a forma como uma suposta especialista -- a "super
ama" -- as disciplina e ensina a comportarem-se estreou há uma semana em
Portugal. O programa foi criado em 2004, no Reino Unido, e desde então teve
versões em mais de 20 países. Em nenhum terá havido tão imediatas reações de
repúdio como as verificadas cá: várias instituições de defesa dos direitos das
crianças, com a estatal Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção
das Crianças e Jovens à cabeça, tomaram posição pública, declarando que o
programa viola direitos dos menores em causa, exigindo a retirada, de todas as
plataformas, das imagens da menina retratada no primeiro episódio (este está
disponível on line, no site da estação, assim como vários "teasers")
e apelando à suspensão do mesmo. E a presidente da CNPDPCJ, Rosário Farmhouse,
fez, no Expresso de sábado, um aviso que é uma ameaça: "Se houver mais
pais que cedam os direitos de imagem, a situação será muito mais grave e não
poderemos dar o benefício da dúvida. Aí a comissão com competência territorial
terá de agir de forma mais dura, de acordo com o perigo a que a criança está
exposta, com os pais já plenamente conscientes desse perigo."
Independentemente do facto de ser
óbvio que um pronunciamento deste calibre e gravidade deveria surgir em
comunicado e não numa entrevista publicada na véspera da exibição do segundo
programa -- não se pode partir do princípio de que toda a gente lê o Expresso
--, parece ser a primeira vez, desde que o formato em causa existe, que quem
permite filmagens dos filhos naquelas circunstâncias é tão claramente
notificado das possíveis consequências. O que pode causar alguma estranheza:
afinal, como alega a SIC, nos países onde o Supernanny estreou ao longo dos
últimos 14 anos também há legislações de proteção dos direitos das crianças,
"tão exigentes ou mais que a portuguesa", e nada de semelhante
aconteceu.
Percebe-se a perplexidade da SIC:
se o formato existe há tanto tempo em países "civilizados" sem
problemas de maior, como é que em Portugal, no nosso humilde e pequeno e
pacóvio Portugal, sucede isto? Sobretudo tendo em conta a tendência de
crescente compressão dos direitos de imagem e de privacidade que se verifica na
mentalidade geral e até nas decisões dos tribunais: quase 20 anos após a
estreia do Big Brother no país e dezenas de reality shows depois, esperar-se-ia
talvez que já ninguém se lembrasse de se indignar com um programa de expõe crianças,
perfeitamente identificadas, a chamar nomes aos pais, a agredi-los, a chorar, a
tomar banho, a levar estalos. Que ninguém pensasse no efeito dessa exposição e
na perversidade de colocar uma equipa de estranhos a filmar cenas íntimas com
menores, a "conduzi-los" e a "estimulá-los" nessas cenas --
porque toda a gente sabe que, mesmo que não se faça um "script" para
os comportamentos das crianças, elas percebem o que é esperado delas. Pois bem:
não estamos ainda todos completamente embrutecidos, as leis e a Constituição
não são (ainda) letra morta e as instituições cuja função é defender os
direitos das crianças não dormem. Num ano em que Portugal acaba de surgir, num
ranking mundial sobre a qualidade da democracia, em nono lugar, a par da
Dinamarca (nós, a completar 42 anos desde as primeiras eleições livres, em
1976, a ombrear com os países nórdicos, uau), a reação à estreia do Supernanny
deve encher-nos de orgulho. Se formos o primeiro país em que o formato tão bem caracterizado por Ana Sousa Dias no sábado neste jornal é
retirado da emissão, ou -- é o mínimo -- alterado para proteger a identidade
das crianças, será uma enorme vitória não só para os direitos das crianças mas
para os direitos humanos em geral. A decência, enfim.
Mas, seja o que for que suceda,
deveremos questionar-nos sobre como foi possível existir um programa destes,
que tantos gabinetes jurídicos de produtoras e canais tenham achado que não
havia problema desde que pais assinassem um contrato a ceder os direitos de
imagem e de devassa da intimidade dos filhos -- direitos que não têm o direito
de alienar, como tantos juristas já frisaram, porque são da criança e só dela
--, que dezenas de países tenham convivido com várias séries disto com grandes
êxitos de audiência. Porque houve um processo até aqui chegarmos, um processo
que nos foi insensibilizando, baralhando prioridades e critérios, que nos foi
alheando de valores fundamentais, criando um vale tudo que promove uma ideia
equivocada de "liberdade de expressão" e de "direito do público
a saber e ver" para fazer triunfar uma lógica de puro lucro.
São tempos terríveis os que
vivemos, aqueles em que os media, desesperados por viabilidade financeira,
vendem o que lhes resta de alma -- se alguma lhes resta --, em que a justiça,
ao invés de, como é seu dever, constituir garante dos direitos fundamentais da
privacidade e do direito à imagem, é a primeira a desvalorizá-los e a favorecer
a sua violação, e em que todos nós, armados de um telemóvel com câmara, achamos
que podemos e devemos filmar e fotografar tudo e todos e divulgar onde, quando
e como nos apetecer. Se o Supernanny servir para nos fazer pensar em tudo isso
terá tido pelo menos essa grande utilidade.
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