Pedro Filipe Soares | Diário de
Notícias | opinião
Esta é a história de uma
aldrabice. Começo pelo fim, é certo, mas a conclusão é tão forte, que domina
toda a história. As personagens principais são uns poderosos que julgam que
quando falam o país estremece e o povo se curva. São de um tempo antigo,
acham-se acima da lei, mas ainda assombram os nossos dias. Vamos, então, à
história.
Os administradores da Altice
tomaram posição pública, indignando-se perante a Assembleia da República. Ato
imediato, pedem uma reunião ao presidente da casa da democracia. O objetivo era
dar um puxão de orelhas aos deputados. A todos? Não, aos deputados e deputadas
do Bloco de Esquerda, em particular a Heitor de Sousa. O crime de
lesa-majestade terá sido o de ousar criticar o incumprimento que esta empresa
faz das suas obrigações perante o Estado e o país.
"Não pode valer tudo",
dizia o presidente executivo da Altice Portugal, Alexandre Fonseca. Por isso, a
Altice "foi junto deste órgão de soberania fazer um esclarecimento cabal
daquilo que são um conjunto de assuntos que foram trazidos à praça pública e
onde efetivamente estavam presentes um conjunto de inverdades, um conjunto de
situações pouco factuais e apenas, eu não conseguiria classificá-las se não de
outra forma, demagógicas e populistas".
Ficamos sem perceber qual a
dificuldade na classificação das situações: foi devido à ausência de
impropérios mais elaborados, ali, à mão de semear? Aquele dicionário de bolso,
tão jeitoso, tinha ficado em casa? Cada um e cada uma que tire as suas conclusões.
Cá por mim, foi apenas porque a realidade já tinha tirado o tapete a tão
respeitosa administração. Mas já lá vamos.
Tudo começou com um relatório da
Anacom (a entidade reguladora do setor das telecomunicações), de janeiro
passado. Nesse relatório, a Anacom estudou o alargamento da oferta de serviços
de programas na televisão digital terrestre. O crime maior dos deputados foi
lerem o relatório e compreenderem o que lá dizia. E cito, para não haver
dúvidas: "Deve ser analisada e equacionada a implicação, em termos de
conflito de interesses, de a MEO - empresa titular - ser a mesma (ou estar
inserida no mesmo grupo de empresas) que um operador concorrente à TDT."
Para utilizar um trecho ainda mais claro desse relatório, "não parece
possível que o atual detentor do direito de utilização das frequências tenha
qualquer incentivo para o alargamento da oferta". É fácil compreender o
problema, não é?
A primeira reação da Altice ao
relatório da Anacom foi "estranheza". A segunda reação foi
incompreensão: a Altice "não consegue compreender as conclusões deste
relatório". Será que é a falta daquele dicionário de bolso? Agora, até
pode ser consultado na internet...
Com tamanha incompreensão, não
estranha que as declarações de Alexandre Fonseca à saída do Parlamento pareçam
saídas de uma realidade paralela, uma espécie de twillight zone portuguesa:
"Viemos aqui também esclarecer questões como aquilo que são as
responsabilidades sobre postos públicos, aquilo que é a rede SIRESP [Sistema
Integrado de Redes de Emergência e Segurança de Portugal] e aquilo que é a rede
TDT, viemos repor a verdade quando se diz que estes três serviços são serviços
que não estão a funcionar, que não cumprem contratos estabelecidos, nós viemos
mais do que dar opiniões, que alguns têm vindo a fazer, nós viemos entregar
factos." Parece que Trump está a fazer escola e já temos seguidores da
teoria dos factos alternativos aqui em Portugal.
A Altice parece querer passar um
atestado de estupidez ao país. Os soluços da TDT pelo país fora,
particularmente no interior, são matéria de facto. Que a Anacom o reconheça, é
apenas a constatação do óbvio. Que a Altice tem um conflito de interesses na
TDT, isso também é incontestável. Que esse conflito de interesses será agravado
se a Altice comprar a TVI, mais uma verdade insofismável. E as falhas do SIRESP
só não fazem parte do anedotário nacional porque é um problema demasiado sério
para ser alvo de brincadeira.
A prepotência de um grupo
económico que julga poder disciplinar deputados só compara com a arrogância que
impede que vejam o ridículo da situação. O desespero explica-se pelo combate
que está a ser feito a uma empresa que julga que Portugal é uma república das
bananas. No que toca ao Bloco de Esquerda, bateram à porta errada, não nos
metem medo.
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