sábado, 3 de março de 2018

PORTUGAL | Marcelo e as virgens impolutas


Domingos de Andrade | Jornal de Notícias | opinião

No fim toda a gente fica feliz. Ou quase. Porque no fim fica tudo na mesma. Ou quase. Na verdade, a lei do financiamento dos partidos volta a Belém sem ceder às duras apreciações feitas por Marcelo Rebelo de Sousa há cerca de dois meses, quando vetou a primeira versão do diploma. Sendo também verdade que o chefe de Estado não deixou claro se as críticas o eram à forma ou ao conteúdo.

Vamos ao conteúdo, para ir à forma. Cai uma das normas controversas, relativas ao regime de isenção de IVA, é verdade, mas quanto ao outro ponto mais polémico os partidos não alteram uma vírgula e mantêm decretado o fim do limite para a angariação de fundos. Lá se vão multiplicar as festas dos partidos. E as festas dos partidos a terem lucros exponenciais.

Na forma, o presidente da República não vê lugar para tristezas. Ele ficou "feliz". Expressão do próprio. Sempre se mexeu nalguma coisa. Houve discussão parlamentar e a sociedade teve direito ao debate aberto e transparente que tinha sido exigido. Mais feliz, disse o presidente da República, porque adicionalmente houve um esforço para ir ao encontro de algumas posições que ele próprio havia manifestado.

Se no essencial o diploma mantém donativos sem travão, o balanço mais positivo a retirar, seguindo o raciocínio de Marcelo, será o do debate em volta do tema. Vale a pena, por isso, olhar para o que ontem se passou no Parlamento. A discussão foi carregada de trocas de acusações acintosas, para não lhe chamar violentas.

Do lado dos dois únicos partidos que mantiveram o voto contra a lei - CDS e PAN - ouviu-se dizer que o futuro regime transforma os partidos em "lavandarias" e que se acaba com os radares capazes de fazer abrandar o risco de promiscuidade entre políticos e empresas. Do lado contrário da barricada, o discurso foi igualmente duro. Considerou-se que na vida pública não há "virgens impolutas". Que as críticas ao diploma estão rodeadas de "demagogia" e "populismo". Que as críticas à lei foram envolvidas em mentiras e tomaram a forma de uma campanha "reacionária" e de "pendor fascizante".

Chegados aqui, parece evidente a conclusão a retirar de todo o processo. É legítimo defender que os partidos, como peça essencial que são na democracia, justificam um modelo de financiamento mais sustentado. E esse debate deve ser feito com transparência e sem demagogia. Mas para a maioria dos deputados isso não chega. Desconstruir as incoerências discursivas do processo de aprovação desta lei, ou discordar abertamente do fim de um teto aos donativos, é motivo para receber mimos como os acima citados.

Na casa da democracia continua a haver quem pense que a pluralidade de pensamento como conceito é bonita, até ao dia em que toca nas contas. Em matéria de dinheiros, parece não haver liberdade que resista nem ética que subsista. Se é a isto que se chama um "debate aberto", estamos esclarecidos.

*Diretor-executivo do JN

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