Isabel Moreira | Expresso | opinião
Esta semana, Assunção Cristas
“anunciou” que o CDS vai votar contra a autodeterminação da identidade de
género e que está preocupada com o “sentido” da lei. Mais acrescenta que após
debate interno ficou claro que todos os deputados do CDS discordam da proposta
em causa.
Vamos ser claros.
Na primeira reunião das dezenas e
dezenas que tiveram lugar na especialidade deste processo legislativo, o
Deputado Nuno Magalhães afirmou perentoriamente que o CDS votaria contra fosse
qual fosse o resultado das audições das entidades relevantes para a matéria e
das próprias pessoas trans.
Ou seja, Cristas não “anunciou”
nada.
O CDS não é contra a
autodeterminação da identidade de género aos 16 anos porque está preocupado com
uma eventual corrida desenfreada da população às conservatórias do registo
civil para mudar de sexo “porque sim”, agora que se pretende, na senda de
recomendações internacionais, dar autonomia às pessoas trans acabando com a
agressão da sujeição a pareceres médicos como se fossem doentes.
O CDS é contra a autodeterminação
da identidade de género aos 16 anos porque o CDS foi contra, é contra e será
sempre contra o reconhecimento dos direitos das pessoas LGBT.
Afinal, se Cristas está
preocupada com o “sentido” da lei, qual é o sentido que deveria ter a mesma?
Quando a lei da identidade de
género foi aprovada em 2011, exigindo pareceres médicos e maioridade, o CDS
votou contra, pelo que talvez o único “sentido” das declarações de Cristas seja
o de reafirmar o reacionarismo de um Partido que, sabendo do seu eleitorado,
dorme bem com a homofobia e a transfobia legal.
As pessoas LGBT não devem nada ao
CDS, antes têm marcada na sua história pessoal de luta o combate acérrimo do
“democratas-cristãos” contra a igualdade.
Revendo as votações do CDS “cristão”
onde “todos têm lugar” – para usar uma expressão de Cristas – o Partido votou
contra a proteção jurídica dos casais do mesmo sexo, votou contra o casamento
igualitário, votou contra a coadoção em casais do mesmo sexo agredindo crianças
de carne e osso com progenitores não reconhecidos, viabilizou um referendo
pornográfico aos direitos das crianças filhas de casais do mesmo sexo (que o TC
travou), votou contra a adoção por casais do mesmo sexo, votou contra a
procriação medicamente assistida para todas as mulheres, independentemente do
seu estado civil ou da sua orientação sexual, votou contra tudo e votará sempre
contra estas pessoas e estas crianças.
Para o CDS, aquele artigozinho da
Constituição que proíbe discriminações em função de várias categorias, como o
sexo ou a religião, vincula-nos, exceto na parte “desagradável” em que também
proíbe a discriminação em função da orientação sexual e, implicitamente, da
identidade de género.
O “anúncio” e a “preocupação” de
Cristas são, por isso, risíveis.
O “anúncio” mais não foi do que a
constatação – recorrente – de quem é Assunção Cristas.
É a líder de um Partido que
“acolhe” com espírito cristão as pessoas LGBT, desde que estas não se atrevam a
ser, efetivamente, pessoas. Isto é, pessoas com os mesmos direitos de todas as
outras.
Para o CDS, o amor ente duas
pessoas do mesmo sexo não tem relevância social; para o CDS os casais do mesmo
sexo, se quiserem ter filhos, através da adoção ou da PMA, são “egoístas” que
não pensam no “superior interesse da criança”; para o CDS, as pessoas trans
“sofrem muito”, mas paciência.
Para o CDS, os dadores de
esperma, anónimos ou não (aguarda-se decisão do TC), são “pais”, como referiu
no plenário desta República (sim, não foi no Estado Novo) a Deputada Vânia Dias
da Silva. Na sua cabeça, se o TC reverter a sua doutrina (o que é possível), as
crianças nascidas através de PMA (em casais do mesmo sexo ou de sexo diferente)
poderão vir a saber quem é o “pai”. Não, senhora Deputada, poderão aceder à
identidade do dador, mas o dador não figurará como “pai”, está a ver? Os bancos
de esperma não são paizinhos armazenados.
Aproxima-se o momento da votação
final global da lei que estabelece o direito à autodeterminação da identidade
de género e expressão de género e o direito à proteção das características
sexuais de cada pessoa.
Cada Deputada e cada Deputado é
evidentemente livre de votar como quiser.
Que nunca se diga que o trabalho
na especialidade não foi intensivo e histórico (ouvir menores trans e as suas
mães não é coisa que se faça todos os dias).
Que fique para quem quiser o
papel de caricaturar a lei – “vai tudo mudar de sexo porque sim, uma
insegurança jurídica” - ou de, ao contrário, ler e ouvir o que resulta da
ciência, de recomendações internacionais e da empatia.
Que cada uma e cada um de nós
decida se quer fazer parte do historial do CDS (não, porque não) ou se quer
consultar no site do Parlamento o que disseram a ILGA, os especialistas em
pessoas trans, os juristas como a Professora
Doutora Teresa Pizarro Beleza, os jovens trans, as mães desses jovens, a
AMPLOS e então, talvez, perceber que ninguém sabe melhor quem é do que cada
pessoa.
O diploma não tem nada a ver com
alterações físicas das pessoas. Ninguém poderá fazer tratamentos médicos irreversíveis
antes da maioridade. Só está em causa o reconhecimento legal de quem se é.
Cabe-nos a decisão de manter
gente de carne e osso em sofrimento, em sofrimento diário, quando mostram o
passe social ou o cartão de cidadão, em sofrimento quando, ao contrário de mim,
têm de “provar” a terceiros quem são, em sofrimento quando não entendem por que
razão não os entendemos.
Cristas anunciou quem é.
E tu? Quem és tu?
Sem comentários:
Enviar um comentário