domingo, 29 de abril de 2018

PORTUGAL | Dos discursos às práticas


Manuel Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião

A sessão comemorativa do 44.º aniversário do 25 de Abril, realizada na Assembleia da República, teve discursos de significativo interesse num ambiente mais saudável do que aquele vivido em tempos de maioria PSD/CDS ou da (prolongada) ressaca da sua derrota. A propósito do evento, o primeiro-ministro lembrou o fim do velho conceito de "arco da governação", mas na sessão não faltaram sinais de fortes empenhos na defesa de compromissos do centrão associado àquele arco, e os últimos tempos têm mostrado que uma parte do Partido Socialista anseia uma guinada à direita. Entretanto, a partir das mensagens do presidente da República e do presidente da Assembleia da República (AR), rapidamente a comunicação social apresentou como grandes desafios para o país a "reforma do regime" ou a "revisão da Constituição da República".

Como sabemos, a palavra reforma é uma das mais manipuladas das últimas décadas e os cidadãos têm fortes razões para ficarem de pé atrás quando a ouvem invocar. Sendo inquestionável que há sempre acertos a fazer face à evolução da sociedade e das mudanças que nela se vão produzindo, e às exigências que se colocam para que a democracia se vitalize, será que Portugal e os portugueses precisam mais da revisão do seu regime político e da sua Constituição da República (CR) ou de políticas que lhes garantam efetividade?

Ferro Rodrigues trouxe à memória o "inconformismo de Abril" como arma eficaz para se agir na afirmação "da liberdade, da democracia e da solidariedade", que "é sempre um projeto inacabado". Enunciando, em algumas áreas fundamentais, o que se conseguiu e o que está em défice, o presidente da AR afirmou admirar-se "com a força das nossas instituições e com o papel notável que o sindicalismo e os contrapesos institucionais desempenharam "no período de fundamentação e imposição de políticas de austeridade que nos empobreceram", o que o conduziu a considerar que é "muito ao nível das desigualdades económicas e sociais que o desempenho democrático tem de melhorar". A questão social tem, pois, de surgir pelo menos a par da renovação democrática das instituições.

A corrupção e as promiscuidades entre funções de governação e interesses privados não emanam da conceção e valores do nosso regime político, mas sim do seu desrespeito. A existência de ministros que no passado desavergonhadamente se comportaram como empregados (em efetividade de funções ou em estágio) de grandes grupos económicos e financeiros choca com os princípios constitucionais, e a determinação de regras que impeçam tais práticas constituirá, tão-só, um aprofundamento do que a CR consagra. Os deputados terem de dar atenção ao cumprimento de princípios éticos para além de regras instituídas, ou necessitarem de aprofundar a sua relação com os eleitores, não exige nenhuma revisão constitucional.

Na CR está claro que a participação política não é dissociável da participação social e cívica, e será na defesa da conjugação delas que os deputados encontrarão caminhos para criarem proximidade com os eleitores. O Governo ter em conta o que reivindicam as pessoas e as instituições de mediação da sociedade é uma obrigação institucional inerente ao regime democrático instituído. Faz parte do nosso regime ser o Parlamento o espaço central do debate e dos compromissos, com todas as forças políticas em igualdade de deveres e direitos, e não qualquer outro processo de construção de compromissos que gere exclusões.

É hoje muito mais fácil mobilizar milhares de milhões de euros para salvar um banco levado à ruína por roubo ou má gestão privada, do que mobilizar algumas centenas de milhões para melhorar os programas da saúde ou da educação, ou para repor rendimentos devidos a trabalhadores e reformados, mas isso não acontece por imposição constitucional.

Neste 1.º de Maio, há que dar expressão à luta contra as desigualdades, a pobreza e as precariedades, por mais e melhor emprego, por direitos no trabalho, por salários justos e por uma melhor distribuição da riqueza. Se o Governo, o Parlamento e o presidente da República responderem positivamente, a democracia será reforçada e os portugueses confiarão mais nos políticos.

*Investigador e professor universitário

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