Manuel Carvalho da Silva | Jornal
de Notícias | opinião
António Arnaut bateu-se
literalmente até ao fim da sua vida pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS). Nos
últimos anos pressentiu que o sistema tinha sido deliberadamente desequilibrado
a favor de prestadores privados e que a provisão pública, de acesso universal e
tendencialmente gratuita, estava em perigo. Sem hesitações esteve na primeira
linha dos que denunciaram esse descarrilamento. Arnaut tinha razão em estar
preocupado.
A Direita opôs-se ao SNS desde
sempre - o PSD e o CDS votaram contra a sua aprovação - com o pretexto de que
assentava numa filosofia coletivista que transformaria todos os profissionais
de saúde em funcionários. Nunca teve coragem para assumir abertamente o
objetivo de privatizar o sistema de saúde, mas jamais se eximiu a, de forma reptícia,
trabalhar nesse sentido, contando em várias ocasiões com a conivência de
responsáveis do partido de António Arnaut.
Em todas as oportunidades foram
reduzindo o financiamento, incapacitaram serviços e lançaram suspeição sobre o
empenho dos seus trabalhadores. Depois, constatando que o serviço não dá as
respostas necessárias, fomentaram o protesto e subcontrataram no privado os
serviços que o público deixou de ter capacidade de prestar. Ao mesmo tempo o
setor privado avançou estratégias de atração de profissionais descontentes com
as insuficiências e as cada vez piores condições de trabalho no SNS. Por vezes,
a acumulação de dívidas a subcontratados foi instrumental. Periodicamente
gritaram, aqui-d"el-rei que a dívida do SNS aumentou muito. No final
constata-se que ocorreu uma enorme transferência de recursos públicos para o
setor privado, propiciando-lhe elevados lucros.
Sempre existiram, e hoje ainda
mais, fortes razões para que a saúde não seja uma indústria privada ou um
negócio. Quais são elas?
A relação médico-paciente (e
também a de outros profissionais, como os enfermeiros) caracteriza-se por uma
vincada assimetria. O médico sabe sempre muito mais acerca da doença do
paciente, e da forma de a curar, do que o paciente que a ele se dirige. Se a
relação fosse puramente comercial, isto é, se o médico e outros profissionais
do setor tivessem como objetivo obter uma vantagem monetária poderiam usar a
assimetria da relação a seu favor, contra os interesses materiais do paciente
ou até contra a sua saúde. Por isso mesmo, a relação nunca foi pensada como uma
relação meramente comercial.
Em regra, um médico vive do seu
trabalho. É justo ter um estatuto e um reconhecimento social de relevo, mas o
seu objetivo não é, ou não deve ser, enriquecer. O seu objetivo é cuidar bem do
paciente. Por isso, o médico e outros profissionais de saúde têm, desde tempos
imemoriais, uma deontologia profissional. Essa deontologia coloca-lhes
exigências e impõe-lhes tarefas que também chocam com a mercantilização do seu
trabalho.
O que hoje está em causa com a
privatização da saúde não é um regresso ao tempo em que a medicina era
sobretudo uma profissão liberal. Estamos agora na era da industrialização da
saúde, em que os profissionais se convertem em assalariados de empresas,
deixando de estar sujeitos aos ditames da sua consciência e da deontologia
profissional. As organizações para quem trabalham são empresas capitalistas que
têm como objetivo remunerar, o mais possível, os capitais dos seus
proprietários. Existe um enorme potencial de descoincidência de motivações e
interesses entre os compromissos deontológicos dos profissionais da saúde e o
objetivo de lucro das empresas. E o drama que o país está a viver é que os
pressupostos gestionários do privado se estão a impor também no setor público.
O diminuto tempo para consultas, a subcontratação de médicos, enfermeiros e
outros técnicos, a destruição de condições para a constituição e estabilização
de equipas multidisciplinares, a falta de capacitação de trabalhadores com
funções auxiliares, bem como as baixas remunerações de muitos profissionais são
alguns dos problemas que se acumulam no SNS.
Sem dúvida que no SNS público
também existem conflitos de interesses. Mas há uma grande diferença entre o SNS
e a indústria da saúde. O SNS não é um negócio orientado para extrair
dividendos financeiros de situações de carência e aflição.
*Investigador e professor
universitário
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