Miguel Guedes | Jornal de Notícias
| opinião
Continuamos a assistir a um
Portugal marialva que não se rende. Encontramo-lo à volta da arena em pose
estéril e rija, a toque de corneta a que atribuem significado olímpico,
ensaiando salamaleques à conta da história e da tradição dos avós de linhagem.
Lamentavelmente, isto não é do povo nem das elites. As touradas são um
espectáculo abominável que foi sucessivamente extinto em todos os países do
Mundo à excepção dos oito países que restam. Portugal é um deles.
"E diz o inteligente que
acabaram as canções". O projecto de lei a dar entrada na Assembleia da
República, pela mão do PAN, para acabar com as touradas em Portugal é um ajuste
de contas com uma história que se faz incompreensivelmente tarde. Talvez por
falta de coragem, os "espectáculos tauromáquicos" que tão bem
serviram para Tordo e Ary ilustrar a ditadura no ocaso continuaram a resistir
às alterações legislativas que, ao longo do tempo, foram contrapondo a
civilização à barbárie. Fazer das touradas uma actividade para maiores de 18
não chega, a não ser que alguém me convença de que alguém que acabe de chegar à
maioridade fica menos bem servido com a "Laranja mecânica" de Kubrick
pela brutalidade comparada. A cultura de violência numa arena, exibida como
mestria de execução com bandarilhas, não tem idade e saqueia a destempo a
herança cultural de um povo.
A herança cultural do
entretenimento atira o que já passou para os documentários. Ou para os filmes
de época. Apesar da televisão pública ter insistido em transmitir corridas de
touros durante anos a fio, elas já não fazem obra de actualidade. Em Portugal,
o número de espectáculos tauromáquicos tem caído a pique (181 em 2017),
enquadrando-se regionalmente em Albufeira (26) e Lisboa (13). Em 50% das 27
praças de touros existentes, arrenda-se o espaço a fantasmas na maioria dos
dias que sobram entre a realização de uma ou duas corridas anuais. Desde 2010,
as liturgias com touros sofreram um abalo de 53% do seu público de fiéis.
Imperativo civilizacional: parar de chamar herança cultural a uma actividade
que se eleva pela imagética da bestialidade e não põe fim à sua vida antes da
morte que se anuncia. Parte da herança cultural de um povo, aquela que noticia
e informa futuro, é a de saber pôr um ponto final ao que já não encontra
descendentes.
Isto dos direitos das pessoas
também dá muito trabalho. Coloca-se muita ênfase no sofrimento animal. Que
existe, indigno e evidente. Mas ultrapassa a compreensão dos mortais que
continuemos a assistir a financiamento público para uma actividade torcionária
que se implica com crianças, jovens e adultos para exaltar uma parte do pior
que têm em si em nome do brilho de uma espólio de brutalidade decadente. Que se
extinga.
O autor escreve segundo a antiga
ortografia
* Músico e jurista
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