A ousadia de construir um País
digno e útil na arena internacional: As linhas de força da política externa
cabo-verdiana
Quem governa em democracia não
pode esconder-se do Parlamento e furtar-se ao debate. Pelo contrário deve estar
sempre disponível para a justificação pública
José Maria Neves* | A Nação |
opinião
Em 1975, na apresentação do
Programa do Governo, no Mindelo, o Primeiro Ministro Pedro Pires define as
linhas da política externa: Cabo Verde terá relações com todos os países do
mundo, na base do respeito mútuo, da não ingerência nos assuntos internos e da
igualdade e reciprocidade de vantagens; defenderá os princípios das Nações
Unidas; será membro ativo da comunidade africana e estabelecerá relações
privilegiadas com os países que acolhem as comunidades cabo-verdianas.
Optou Cabo Verde por uma politica
de paz e de solução pacífica dos conflitos, tendo recusado, no quadro do seu
não alinhamento, desde o início, a instalação no seu território de bases
militares.
Segundo Renato Cardoso, em Cabo
Verde, Uma Opção por uma Política de Paz, a política externa de Cabo Verde,
considerando a sua pequenez e pobreza, estribou-se nos princípios do realismo,
flexibilidade, independência de pensamento e ação, defesa dos interesses do
país e seriedade e coerência política. Todavia, é o próprio Cardoso a reconhecer
a extrema dificuldade de um país pobre e pequeno fazer uma politica externa
autónoma: “Nessas condições, a própria realização dessa política é, em si
mesma, uma batalha. O País tem de conquistar uma credibilidade própria para que
se lhe permita desempenhar um papel útil na cena internacional e prosseguir a
sua opção própria”.
Esses princípios são, no
essencial, mantidos, tendo a Constituição de 92, estabelecido claramente que “O
Estado de Cabo Verde recusa a instalação de bases militares”. (n.4, art.11 da
CRCV. Todavia, no quadro da segunda revisão ordinária da
Constituição (2010), o MPD propõe a seguinte nova redação para o número 4: “O
Estado de Cabo Verde pode assinar convenções internacionais com outros Estados
ou organizações internacionais para garantir a soberania sobre todo o
território sob a sua jurisdição exclusiva e a segurança do povo cabo-verdiano”;
com o argumento de que dado à pequenez dos seus recursos, Cabo Verde só pode
prevenir ou combater a agressão de um outro Estado no quadro da cooperação
internacional. O PAICV manteve o princípio da recusa de instalação de bases
militares, considerando que, nos termos da Constituição, Cabo Verde pode
estabelecer acordos com parceiros internacionais, nos domínios da defesa e da
segurança, sem abdicar dos seus princípios constituintes.
O certo é que Cabo Verde fez
prudentemente um caminho ousado e é, hoje, um país útil e que goza de grande
credibilidade e prestígio na arena internacional.
EUA, um dos mais importantes
parceiros de Cabo Verde
No seu estudo “A Historicidade
dos Contactos Cabo-verdiano-Americanos”, parte integrante do livro Combates
Pela História, António Correia e Silva diz-nos que os cabo-verdianos “são o
primeiro povo africano a ir aos Estados Unidos da América de modo livre sem ser
enquanto escravos”. E Gabriel Fernandes, em a Diluição de África,
revela-nos que “a primeira leva de emigrantes de que se tem notícias seguiu
para os Estados Unidos entre 1685 e 1700”. Hoje, milhares de cabo-verdianos
vivem nos Estados Unidos, constituindo-se na maior comunidade cabo-verdiana no
exterior.
Com a independência de Cabo
Verde, os dois países estabelecem relações diplomáticas e são nomeados os
respetivos Embaixadores em Washington e na Praia.
Os Estados Unidos assumiram-se,
desde cedo, como uns dos principais parceiros de desenvolvimento do
arquipélago, tendo atribuído centenas de bolsas de estudos e financiado
importantes projetos de desenvolvimento.
Com o crescimento do país,
reduziram a ajuda. Em finais de 90, a USAID deixa a Cidade da Praia e na
primeira década de 2000 é o Corpo da Paz a fazê-lo. Neste mesmo período,
termina o programa da ajuda alimentar.
Os dois Compactos do MCA
Durante a Cimeira da ONU sobre o Financiamento do Desenvolvimento (Março de 2002), em Monterrey, México, o Presidente George W. Bush anunciou uma ajuda de 5 mil milhões de dólares, a partir de 2004, aos países em desenvolvimento, tendo criado o Millenium Challenge Account (MCA).
Em 2004, para gerir o MCA, foi
criado o Millenium Challenge Corporation (MCC) e anunciada uma seleção
competitiva dos países beneficiários com base em 17 indicadores que avaliam a
justeza da governação, os investimentos nas pessoas e as liberdades económicas.
Cabo Verde competiu e ganhou.
Considerei que simbolicamente conquistáramos a segunda independência. Tínhamos
conseguido, num processo altamente competitivo, com base no nosso trabalho de
casa, fundos para financiar o desenvolvimento.
Fomos o primeiro país a assinar o
Compacto, em 2005, no valor global de 110 milhões de dólares. Tendo beneficiado
as ilhas de Santiago, Santo Antão e Fogo, o programa foi executado com sucesso
e teve um enorme impacto na modernização da administração pública, na busca de
novas parcerias para o financiamento das infraestruturas, no crescimento
económico e na redução da pobreza.
O I Compacto foi concluído com
sucesso em 2010. Cabo Verde foi considerado um case study de implementação do
programa e, em várias ocasiões, estive no Congresso norte-americano para falar
do impacto do MCA no desenvolvimento.
Em Junho de 2011, Cabo Verde é o
primeiro país a ser selecionado para um II Compacto, no v alor de 66,23 milhões
de dólares.
Em nenhum momento os Estados
Unidos estabeleceram uma ligação direta entre os compactos do MCA e o Status of
Forces Agreement (SOFA). Na verdade, desde as minhas primeiras visitas – estive
pelo menos duas vezes no Centro de Estudos Estratégicos para a África e tive
vários encontros com Paula Dobriansky, Sub Secretária de Estado para os
Assuntos Globais, do Governo Bush – as autoridades americanas aventaram
a possibilidade de assinarmos um acordo do género, para o reforço da
cooperação, particularmente nos domínios do terrorismo, narcotráfico e
criminalidade organizada.
A primeira proposta do SOFA
Contudo, a primeira proposta do
SOFA só foi formalmente apresentada ao Governo de Cabo Verde, em 2008. Tínhamos
toda a abertura para as negociações, já porque os Estados Unidos são um dos
nossos mais importantes parceiros de desenvolvimento, já porque temos interesse
estratégico em reforçar as relações de cooperação nos domínios da defesa e da
segurança, e os únicos limites eram as disposições constitucionais.
Foi criada, em 2011, uma comissão
interministerial para estudar todas as implicações do Acordo e apoiar o Governo
no processo negocial. Foram solicitados pareceres a juristas e a diversos
ministérios e serviços. Uns pareceres apontavam no sentido da
inconstitucionalidade de algumas normas e outros sugeriam ajustamentos na
redação de partes do draft.
Entretanto, recebemos duas
visitas do Comandante da AFRICOM, General William Ward (2008) e General Carter
Ham (2012). Em 2013, os Chefes de Estado e de Governo da Africa Ocidental e
Central, com o apoio da Nações Unidas, dos Estados Unidos, da AFRICOM e do
Centro de Estudos Estratégicos para a África, aprovaram a Estratégia para a
Segurança Marítima em Yaoundé, Camarões e, em 2014, foi assinado entre Cabo
Verde e os Estados Unidos o Acordo sobre a Cooperação no Combate às Atividades
Marítimas Transnacionais Ilícitas.
Mesmo sem a conclusão das
negociações do SOFA, as relações entre Cabo Verde e os Estados Unidos foram
sendo reforçadas e consolidadas, nos mais diferentes domínios. Lembre-se que,
em 2009, a Secretária de Estado Hillary Clinton fez a sua primeira visita a
Cabo Verde, quando ela disse que “este é um país onde a mudança está a
acontecer” e “que é possível a boa governação em África. Olhem para Cabo
Verde”.
Diplomacia para a Segurança
Em 2013, o Presidente Obama
convidou-me para uma Cimeira em Washington, juntamente com os Presidentes do
Senegal, da Serra Leoa e do Malawi, um reconhecimento da excelência das
relações entre os dois países, da democracia e da boa governação de Cabo Verde,
tendo feito, então, rasgados elogios ao nosso país.
Durante essa visita, fui recebido
pelo Secretário da Defesa, Chuck Hagel, a quem o então Ministro da Defesa
Nacional, Dr. Jorge Tolentino, fez a entrega de um ambicioso programa de
cooperação para a modernização da Guarda Costeira, envolvendo formação,
treinamento e aquisição de equipamentos navais e aéreos, incluindo barcos,
aviões e três helicópteros.
Houve grande abertura da parte do
Governo dos Estados Unidos, mas ficou evidente para nós que sem SOFA não
haveria cooperação a esse nível. Por isso mesmo o nosso empenhamento nas
negociações. No momento da transição do governo, em 2016, estávamos a trabalhar
para fazer propostas de alterações e adaptações que nos permitissem chegar a um
acordo conforme à Constituição e nos abrisse portas ao aprofundamento das
relações nos domínios da defesa e da segurança.
Até porque o Governo tinha
conduzido as complexas negociações que levaram à assinatura do Acordo com a
Aliança do Atlântico Norte (NATO) para a realização dos seus primeiros
exercícios militares em África, na Ilha de São Vicente, em 2006.
Na altura, foram envolvidos o
Presidente da República, os serviços jurídicos da Presidência, o Presidente do
Parlamento, os Líderes Parlamentares, a Comissão dos Assuntos Jurídicos e
Constitucionais, a Comissão da Relações Exteriores e da Defesa da Assembleia
Nacional, os Líderes do MPD e da UCID e várias personalidades independentes. O
Acordo foi aprovado por unanimidade no Parlamento e promulgado pelo Presidente
da República.
Há uma mudança estrutural da
esfera pública em Cabo Verde. A sociedade é mais policêntrica e a comunidade
dos empreendedores políticos está a ampliar-se. As pessoas interessam-se muito
mais pelos assuntos da polis, querem ter uma palavra nas discussões dos
problemas e, conseguintemente, o processo de formulação das políticas públicas
deve ser mais aberto e participado. Quem governa em democracia não pode
esconder-se do Parlamento e furtar-se ao debate. Pelo contrário deve estar
sempre disponível para a justificação pública, a cada momento, das suas
decisões.
Ex-primeiro-ministro de Cabo Verde
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