País derrota, nas urnas,
globalização sem esperança e maré conservadora que varre América Latina. Mas
que poderá Lopez Obrador frente à ditadura dos mercados?
Antonio Martins | Outras
Palavras | Vídeo: Gabriela Leite
Infeliz no jogo, o México está
feliz na política – ou, pelo menos, cheio de esperanças e desafios. Na Rússia,
sua seleção de futebol foi eliminada pela brasileira. Mas numa disputa mais
crucial – na qual se define o que virá após a crise civilizatória em que
estamos mergulhados – o cenário é outro. Quase 25 anos depois de afundarem numa
globalização sem democracia, os mexicanos jogaram, no domingo (1º/7), um
pequeno grão na máquina. Num pleito presidencial claramente plebiscitário,
Lopez Obrador, o candidato do Movimento de Regeneração Nacional (Morena), foi
eleito presidente da República, com mais de 53% dos votos. Criado há apenas
quatro anos, o Morena lidera uma coalizão (Juntos faremos História) que parece
prestes a obter maioria na Câmara e Senado. Uma mulher – Cláudia Sheinbaum –
foi eleita pela primeira vez para governar a capital.
Mas há inúmeras dúvidas.
Derrotada, a ditadura dos mercados vinga-se. Como Lopez Obrador enfrentará um
sistema que apequenou o poder dos Estados, diante das transnacionais e das
instituições financeiras – e que exige dos governantes rendição sem meios
termos? Vítima de suas próprias ambiguidades, ele cederá? Será destroçado? Ou
se somará a uma busca por alternativas que se espalha pelo mundo, mas para a
qual ainda não há projeto claro?
II.
Pouco presente no cenário
geopolítico atual – e por isso, pouco notado, pelas novas gerações – o México
foi grande centro de turbulências e transformações, num passado relativamente
recente. Em 1910, sete anos antes da Rússia, o país abriu a grande série de
revoluções anti-oligárquicas do século passado, ao derrotar pelas armas uma longa
ditadura e instaurar um governo popular tumultuado e contraditório. Embora
traído, o movimento – que teve entre seus heróis Emiliano Zapata – deixou
sementes. Em 1934, um de seus herdeiros, o general Lázaro Cárdenas, elegeu-se
presidente. Liderou um governo nacionalista e popular, que mudou a face do
país. Expropriou os latifúndios, distribuiu terra aos camponeses, estatizou o
petróleo – grande riqueza nacional –, assegurou o voto das mulheres, resgatou
direitos indígenas e liderou uma reforma educacional que instituiu o ensino
laico.
O impacto e popularidade destas
transformações asseguraram ao partido de Cárdenas – Partido da Revolução
Mexicana (PRM) – hegemonia por 71 anos na vida política do México. Mas o ímpeto
transformador do presidente arrefeceu ao longo dos mandatos de seus sucessores,
até se transformar em caricatura. O México urbanizou-se e industrializou-se.
Mas o próprio PRM trocou seu nome para Partido Revolucionário Institucional
(PRI) e filiou-se, embora com ressalvas importantes, à ordem internacional
comandada por seu vizinho do norte.
No fim do século, começam os
sobressaltos que levarão à encruzilhada atual. Em 1983, uma grande alta das
taxas internacionais de juros, comandada pelos Estados Unidos, impede o México
de continuar rolando sua dívida externa. O FMI intervém. O PRI, conformado,
aceita abrir mão das políticas que o ligavam às maiorias. O presidente Miguel
de la Madrid comanda um enorme corte de gastos sociais e uma série de
contra-reformas que eliminam direitos. O país também negocia a adesão à
“Nafta”, uma zona de “livre” comércio com os Estados Unidos e o Canadá. No dia
exato em que ela entra em vigor (1º/1/1994), eclode, em Chiapas, a revolta
zapatista. Ela sugerirá que a a História não acabou, ao contrário do que diziam
os teóricos do neoliberalism então vitorioso. Também projetará o subcomandante
Marcos como portador de uma nova esperança anticapitalista.
III.
Lopez Obrador, o novo presidente,
expressa, à sua maneira, uma das vertentes da resistência mexicana ao sistema.
Não é um radical: seria tolo compará-lo com Marcos ou os zapatistas. Filho de
pequenos comerciantes no estado sulista (e pobre) de Tabasco, estudou Ciência
Política na Universidade Nacional Autônomia (a legendária UNAM) onde se formou,
em 1976. No mesmo ano, aos 23, ingressou no PRI – a época, a meio caminho entre
as grandes reformas de Cárdenas e a deriva neoliberal. Em 89, tornou-se um
dissidente. Inconformado com as adesão do partido às políticas duras do
capitalismo, foi um dos fundadores do PRD, Partido da Revolução Democrática.
Repetirá o mesmo gesto em 2014, quando deixará um PRD adormecido e
burocratizado para fundar o Morena. Carismático e impetuoso (um “Messias
Tropical”, ao olhar sarcástico da revista britânica Economist), Obrador
elege-se prefeito da Cidade do México em 2000.
A partir de então, sua
ambiguidade manifesta-se mais claramente. Numa metrópole marcada por
desigualdade e precarização, lança um conjunto de programas sociais em favor
dos mais pobres, dos idosos, dos descapacitados. Ao mesmo tempo, lidera um
programa de “recuperação” do centro histórico da cidade marcado, segundo os
críticos, pela gentrificação. Para tocá-lo, estabelece parceria com o grupo
empresarial do Carlos Slim, desde então um dos homens mais ricos do mundo. Para
enfrentar a violência urbana, sua opção é pedir a Rudy Giuliani, ex-prefeito de
Nova York um plano baseado nas políticas discriminatórias de “tolerância zero”.
Em 2006, quando deixa a prefeitura para disputar a Presidência, tem 84% de
aprovação popular – mais do dobro de seu percentual de eleitores.
Em 2006, terminam no México as
sete décadas de ambiguidade do PRI. Mas Lopez Obrador (PRD) é derrotado nas
eleições presidenciais por Felipe Calderón, do PAN, de direita. As suspeitas de
fraude são múltiplas. Obrador não reconhece o resultado e lidera, por meses, a
ocupação do Zócalo, a praça mais central e importante da capital.
Para alguns, este movimento influenciará, mais tarde, o Occupy Wall
Street. A atitude despertará, para sempre, a desconfiança do establishment. Como
lidar com um político que pode, a qualquer momento, ser sensível às pressões de
sua base e insurgir-se contra as regras da ditadura financeira?
IV.
As duas décadas e meia passadas
desde a adesão do México ao Nafta desfiguram o pais. O Norte, onde as empresas
estadunidensess instalam maquiladoras para tirar proveito da mão de
obra barata, prospera – mas a riqueza concentra-se em cada vez menos mãos. O resto
do país patina na pobreza. As contra-reformas desestruturam o mercado de
trabalho e empurram milhões de mexicanos – especialmente jovens – para os
Estados Unidos, em busca de condições de vida menos miseráveis. A produção
camponesa, que marcava por séculos a paisagem do país, declina. Mesmo o milho,
produto nacional típico, passa a ser importado do corn belt norte-americano,
onde agricultores capitalizados recebem subsídios do Estado.
Os dois últimos governos – de
Felipe Calderón (PAN) e de Enrique Peña Nieto (de um PRI já completamente
desfigurado) completam as contra-reformas. Em 2013, uma delas permite às
transnacionais petroleiras explorar o petróleo mexicano. Junto com a pobreza,
vem a violência – e a tentativa fracassada de combatê-la por meios militares.
Desde 1995, ordens executivas, sem respaldo na Constituição, convocam o
Exército e a Marinha a participar de atividades de segurança pública.
O crime, ao invés de regredir,
conquista novos soldados. Tropas de elite das Forças Armadas bandeiam-se e
ajudam a formar grupos criminosos – o Cartel do Golfo, Os Zetas. Crimes como a
chacina de Ayotzinapa (2014), em que 43 estudantes foram executados,
multiplicam-se. Em 2018, após um quarto de século de neoliberalismo e
militarização, a sociedade mexicana está esgotada – e o sistema político,
exaurido.
V.
Em muitos aspectos, Lopez Obrador
assemelha-se a um Lula. Ele rejeita conflitos. Sua abordagem dos grandes
problemas mexicanos é sempre conciliatória. Por anos crítico do Nafta, ele diz
agora que não pretende mais questionar o acordo. Fala em “austeridade fiscal” e
em “não aumentar impostos”, num país de sistema tributário tão injusto quanto o
brasileiro. Em oposição à “guerra às drogas”, propôs, durante a campanha,
anistiar os presos que cometeram pequenos delitos. Diante da reação irada da
mídia, recuou.
Ainda assim, este homem propenso
à conciliação foi rejeitado e é temido pelo sistema – porque não abre mão de
algumas ideias simples. Num país cansado de uma casta política autossuficiente
e autista, quer reduzir os vencimentos e vantagens dos ocupantes de postos
públicos mais altos (inclusive o seu mesmo), para elevar os salários dos
servidores públicos que atuam na ponta. Pretende dobrar o valor das
aposentadorias – contrariando toda a lógica que recomenda privatizá-las. Quer
abrir as universidades públicas a todos os mexicanos. Fala em submeter a
entrega do petróleo a um referendo popular. Vislumbra a chance de
reindustrilizar o México, começando pela construção de novas refinarias de
petróleo. Talvez a verdade e a simplicidade deste programa, que pode se
compreendido por cada mexicano, tenham lhe dado a vitória, num país de 120
milhões de habitantes e PIB entre o da França e o da Itália.
Lopez Obrador será capaz de
cumpri-lo? Dias depois de sua eleição, a mídia corporativa das grandes praças
do mundo duvida. “Ele terá de atrair capitais estrangeiros, ou tornará a
situação do povo ainda mais dura que a atual”, escreveu o New York
Times. Em meio à crise civilizatória, nada está assegurado. Oxalá Obrador
e sua leve rebeldia sejam capazes de teimar, de resistir e sustentar, de abrir
caminhos. Este mínimo será muito, na tempestade que atravessamos.
* Antonio Martins é Editor do Outras Palavras
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