Faz hoje 50 anos que António de
Oliveira Salazar caiu de uma cadeira na sua casa de férias no Estoril. Um
momento que marcou o início do fim do Estado Novo. Em Macau só soube do
ocorrido em Setembro e chegou a celebrar-se uma missa onde os crentes pediram as
rápidas melhoras do presidente do Conselho. O incidente não aligeirou a força
do regime no território, onde censura persistiu até depois de 1974.
Homem de hábitos e regras
escrupulosamente seguidas, António de Oliveira Salazar passava habitualmente
férias no Forte de Santo António do Estoril. Há 50 anos, no dia 3 de Agosto,
aconteceu o que ninguém esperava: o presidente do Conselho de Ministros, que havia
instaurado o Estado Novo em 1933, caía de uma cadeira de lona. O episódio
marcou o início do fim não só da sua carreira política e revestiu-se de
simbolismo. O regime fascista entrava no derradeiro declínio.
Em Macau, as notícias chegavam a
conta-gotas e estavam dependentes da vontade da censura. Por isso, só em
Setembro o jornal Gazeta Macaense, dirigido por Damião Rodrigues, deu a notícia
da queda de Salazar publicando o seu boletim clínico na primeira página.
Aquando da publicação do terceiro boletim, Salazar tinha uma “função renal
normal” e mostrava “sinais de franca recuperação motora e sensorial”.
Como era um diário “visado pela
censura”, o Gazeta Macaense publicava, três edições depois, o sexto boletim
clínico de António de Oliveira Salazar na íntegra, acompanhado de um telegrama
que havia sido enviado pelo governador Nobre de Carvalho ao Ministério do
Ultramar. Neste lia-se que na sessão da Câmara Municipal das Ilhas se tinha
falado do nome de Salazar, tendo sido apresentados “desejos ardentes dum
completo e rápido estabelecimento”. Nessa mesma reunião decidiu-se pela
realização de uma missa no dia seguinte, “pelas nove horas” e “pela evolução
favorável do convalescente”.
As imagens da missa voltaram a
fazer manchete do Gazeta Macaense na sua edição de 20 de Setembro de 1968 com o
título “Macau reza por Salazar”.
“Promovido pelo Leal Senado da
Câmara de Macau, realizou-se ontem na Igreja de São Domingos uma missa pelo
pronto restabelecimento do presidente do conselho, o professor doutor António
Oliveira Salazar. Uma grande multidão, gentes de todas as camadas sociais,
desde as mais altas individualidades até aos mais humildes funcionários, bem
como o numeroso público, português, chinês e de outras nacionalidades, encheu o
vasto templo assistindo à missa celebrada pelo reverendo padre José Barcelos
Mendes”, pode ler-se.
CIDADÃO DE MACAU
Dois anos antes, no dia 24 de
Maio de 1966, Salazar foi proclamado, por unanimidade, “cidadão honorário da
cidade de Macau”, e “quatro dias depois o seu retrato tinha sido descerrado nos
Paços do Conselho”, escreveu o jornal.
Além de umas breves notícias do
matutino, que incluíam a reprodução de telegramas, sem assinatura de qualquer
jornalista, pouco se escreveu sobre o incidente que levaria ao fim do regime e
à substituição de Salazar por Marcello Caetano na presidência do Conselho de
Ministros.
De acordo com António Cambeta,
que à época tinha deixado a Marinha e trabalhava numa empresa chinesa, pouco se
falava do assunto no seio das comunidades portuguesa e macaense. “Poucas
notícias foram dadas sobre o assunto”, garantiu ao HM. “Não houve diferenças
nenhumas, mesmo depois do 25 de Abril de 1974. A censura continuou até depois
dessa data, continuou a existir a polícia secreta e a polícia judiciária. E se
perguntar a outros portugueses que na altura já residiam cá, vão dizer-lhe
exactamente a mesma coisa.” No que diz respeito à comunidade chinesa, esta “não
fazia ideia do que se passava”, uma vez que “os chineses nunca ligaram à
política portuguesa”, adiantou António Cambeta.
João Guedes, jornalista e autor
de vários livros sobre a história de Macau, garantiu que “o impacto desse
acontecimento foi nulo” e só existiu “no coração dos defensores do salazarismo,
que estavam todos no poder aqui”. “De resto não houve alterações visíveis
nenhumas. As coisas sabiam-se mais tarde e a censura só deixava sair as coisas
na altura que o Governo entendia que deveriam sair, nem que fosse um ano
depois. Não se notou nenhuma diferença, a censura perdurou até ao 25 de Abril,
sem alterações.”
A última notícia do estado de
saúde de Salazar, vinda da “Lusitânia”, dava conta de que “o presidente do
Conselho estava gravemente doente”. Novamente com grande destaque na primeira
página, lia-se que “o professor Salazar foi esta manhã observado pelo
neurologista americano, doutor Huston Merritt, especialista do Instituto
Neurológico de Nova Iorque, que se deslocou propositadamente a Lisboa a fim de
tratar o presidente do Conselho, após o oferecimento do Governo dos Estados
Unidos para enviar a Portugal o especialista que os neuro-cirurgiões
portugueses julgassem mais indicado para observar o ilustre enfermo”.
MARCELLO, O “ALUNO EXCEPCIONAL”
A 27 de Setembro de 1968
tornou-se inevitável o afastamento de Salazar do poder, uma vez que o acidente
provocou-lhe graves danos cerebrais que viriam a culminar na sua morte, em
1970. Marcello Caetano tomou posse nesse dia, mas, segundo declarações ao
Diário de Notícias do historiador Filipe Ribeiro de Meneses, autor de “Salazar
– Biografia Política”, “Salazar não tinha a mais pequena intenção de largar o
poder”.
A Gazeta Macaense publicou a
notícia da substituição e uma breve biografia de Marcello Caetano cheia de
elogios. Num texto sem assinatura, o último presidente do Conselho de Ministros
foi descrito como um “aluno excepcional que sempre se impôs à admiração dos
mestres e condiscípulos pela lucidez da sua inteligência e apego ao trabalho,
que lhe valeram elevadas classificações”.
Licenciado em Direito “com raro
brilho”, em 1931, Marcello Caetano publicou o Manual de Direito Administrativo
em 1937. Tal como o seu antecessor, era um nome bastante considerado na classe
jurídica portuguesa.
Jorge Fão, hoje dirigente da
Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas de Macau, recorda-se que,
em Macau, aceitou-se bem a chegada de Marcello Caetano como o novo dirigente do
Executivo da metrópole. “As comunidades portuguesa e macaense reagiram bem à
entrada do Marcello Caetano no Governo, porque o Salazar tinha a fama de ser um
ditador. O Marcello Caetano, para nós, tinha uma outra imagem, não era tão
ditador como o outro. A comunidade aceitou-o de bom grado, mas passados uns
anos as pessoas fartaram-se dele, porque em Portugal continuou a existir um
partido único.”
Depois do invernoso acidente de
mobiliário que alerou a história de Portugal, seguiu-se a “Primavera
Marcelista”, que trouxe uma muito ligeira aragem à Assembleia Nacional, hoje
Assembleia da República. O parlamento passou a ter, depois de 1969, deputados
da ala liberal, que lutavam por uma abertura do regime à democracia.
Contudo, em Macau, nenhuma
mudança se fez notar com essa abertura. “Havia uma maior liberdade em Portugal
mas em Macau sentiu-se muito pouco essa liberdade. Mesmo depois do 25 de Abril
a liberdade era relativa. No caso da chegada de Marcello Caetano, para nós
significou exactamente a mesma coisa. Continuava a existir o partido único e o
governador era o homem máximo, ditava todas as regras e ninguém ia contra o
governador”, recorda Jorge Fão.
O presidente da APOMAC destaca,
no entanto, a influência que o novo presidente do Conselho tinha na área do
Direito, mesmo a quilómetros de distância. “O Marcello Caetano tinha uma certa
vantagem, era muito bom em Direito. Nós [na Função Pública] tínhamos de estudar
certos manuais de Direito e ele era um homem de cabeça. Ainda hoje se cita o
manual de Direito Administrativo de Marcello Caetano”, frisou.
Na mesma entrevista que concedeu
ao Diário de Notícias, o autor da biografia de Salazar lembrou que o tratamento
depois da queda da cadeira demorou a chegar, pois poucos tiveram noção das
consequências. O ex-dirigente do Estado Novo nunca havia perdido a consciência.
“Houve naturalmente alguma consternação depois da queda, mas só alguns dias
mais tarde foi Salazar visto pelo seu médico, e isso em função de uma consulta
previamente marcada – e o Dr. Eduardo Coelho nada notou de anormal.”
Filipe Ribeiro de Meneses
adiantou ainda que, a 3 de Setembro, o ditador ainda presidiu à reunião do
Conselho de Ministros. “Segundo Franco Nogueira, Salazar estava claramente
afectado nessa reunião, durante a qual pouco falou. Esta deterioração é aliás
bem visível no diário de Salazar – a escrita deteriorou-se muito nestes dias de
Setembro. Mas ninguém ousou sugerir que o ditador precisava de cuidados
médicos”, referiu o historiador.
Andreia Sofia Silva – Diana do
Mar | Hoje Macau
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