"Quando se demoniza a
democracia, vem esse populismo, de extrema direita, e o Bolsonaro é exatamente
uma expressão disso, uma consequência indireta da Lava Jato", diz
sociólogo português
Glauco Faria, da RBA
São Paulo
– "Todas as pessoas são a favor da luta contra a corrupção, mas
a corrupção não pode ser a única luta do Judiciário em nenhum país, não pode
estar separada da legitimidade, de princípios fundamentais e da defesa do
sistema democrático, porque levada ao excesso dessa forma pode contribuir para
a destruição do próprio sistema democrático." A avaliação é
do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, que aponta os riscos
para o Brasil de um cenário no qual não se distinguem os três poderes da República.
Paradoxalmente, aquele que seria
o mais autônomo entre eles é quem mais depende do poder político. "Nessa
medida, é muito fácil criar o ódio, sobretudo quando temos uma televisão
midiática extremamente monopolizada, com os brasileiros passando quatro a cinco
horas por dia vendo esses programas, no sentido de demonizar os políticos em
geral e a democracia", aponta. "Quando se demoniza a democracia, vem
esse populismo, de extrema direta, e o Bolsonaro é exatamente uma expressão
disso, uma consequência indireta da Lava Jato ou, se quiser, da forma como foi
conduzida, e portanto há que viver com essa realidade."
Na entrevista exclusiva concedida
à RBA, em meio ao 24º Seminário Internacional de Ciências
Criminais, Boaventura traça um panorama das transformações pelas quais
passaram a América Latina e o Brasil desde o início dos anos 2000, com a
emergência de movimentos e governos progressistas que tiveram de enfrentar a
resistência da direita e a interferência de atores externos. "A direita
ganharia mais facilmente as eleições de 2018 se não tivesse ocorrido o golpe.
Portanto eles devem pensar duas vezes no custo político em que se envolveram,
mas aqui há muitos agentes internacionais por trás deles que permitiram toda
essa impaciência para destruir o 'perigo petista'.
Confira abaixo os principais
trechos da primeira parte da entrevista.
A América Latina no início dos
anos 2000 e o Fórum Social Mundial
Era um momento de muita esperança
neste continente, o governo Chávez tinha de alguma maneira inaugurado em 1998
uma certa renovação, havia um grande fermento que vinha e que resultava
diretamente, no caso da Argentina e do Brasil, dos próprios processos de
democratização que tinham ocorrido nos vinte anos anteriores. Começam os
movimentos, nos anos 1980, quando surge o MST e, portanto, esses movimentos,
muito fortes, vão dar uma ideia de que este continente era um continente de
esperança, depois de tanto martírio, de tanta guerra e tantas ditaduras, morte
e violência.
E realmente essa esperança estava
de alguma maneira bem fundamentada, porque havia uma riqueza dos movimentos
sociais, basta ver que era o único continente onde começava a se falar de
alguma maneira do socialismo do século XXI, não se falava disso em nenhuma
outra parte do mundo fora da América Latina. O Fórum Social Mundial surge
justamente nesse contexto e nesse caldo que aponta para fortalecimento da luta
da esquerda. Muitos dos governos progressistas que vieram a surgir na América
Latina devem alguma coisa à mobilização do Fórum Social Mundial. Lembro de
Fernando Lugo, antes de ser presidente, que veio do Paraguai de ônibus porque
não tinham dinheiro para pagar a passagem.
Portanto, houve realmente uma
mobilização muito grande. Em 2003 temos o Lula no governo, um momento de muita
esperança em geral, mas não apenas ao nível dos partidos e dos governos, mas
dos movimentos sociais que continuaram muito fortes, com alianças
intercontinentais, inclusive a que nós temos hoje, por exemplo, com a Via
Campesina ou a Marcha Mundial das Mulheres, que nasceram e se fortaleceram
acima de tudo no Fórum Social Mundial. Também foi um momento enorme para
interconhecimento, para o movimento indígena, por exemplo, que praticamente nem
se conheciam uns aos outros na América Latina e dentro do próprio Brasil.
Os governos progressistas e o
recuo
O que aconteceu, entretanto, é
que os governos progressistas chegaram e uma corrente de esquerda de muitos
intelectuais aqui da América Latina, com os quais devo dizer que não estou
totalmente de acordo, fazem uma distinção entre progressivismo e esquerda, isto
é, os governos eram progressistas, mas não eram de esquerda. Penso que essa
distinção não faz muito sentido, eram de esquerda e se equivocaram, e
obviamente cometeram erros. Eram progressistas, mas não reacionários, que é o
que se opõe, e eram de esquerda e não de direita. Por que essa distinção começa
a ser feita? Porque realmente é o sinal do desespero e de frustração, porque
foi um continente que criou grande expectavas e numa década as expectativas
transformaram-se em frustrações.
Como é que se transformam tão
rapidamente? Por erros obviamente internos dos próprios governos progressistas
e por uma influência externa que é o imperialismo norte-americano, muito
claramente, sobretudo a partir de 2009. Havia uma situação muito específica
naquela altura e tempo, de crescimento do mercado internacional das matérias
primas provocado pelo impulso e desenvolvimento da China, com uma rentabilidade
enorme para os países que as produziam. O Brasil era um deles, outros países da
América Latina também, como a Argentina. Houve aqui um ambiente extraordinário
que permitiu uma dinâmica social orientada por estes governos, que vinham de movimentos
sociais e tinham uma política muito semelhante à da social-democracia
europeia – era assim que o Lula designava seu governo, como
social-democracia à latino-americana, lamentando aliás que os
europeus a estivessem abandonando.
Tudo isso era possível para
aquela conjuntura, mas sem se tocar na matriz econômica, na estrutura de classe
e no modelo de desenvolvimento. Sem tocar no modelo financeiro e midiático.
Isso fez com que a certa altura os próprios movimentos sociais começassem a
sentir uma grande frustração. Em outros países, como no caso da Bolívia,
houve uma divisão total entre os movimentos, como no caso equatoriano.
Influência dos Estados Unidos
Mas há também uma intervenção
externa que começa a ter lugar sobretudo a partir de 2009, com o golpe das
Honduras, e não foi antes porque o Estados Unidos estavam completamente
envolvidos desde 2003 na guerra do Iraque e, portanto, haviam se esquecido praticamente
da sua política na América Latina por estarem ligados ao Oriente Médio. A essa
altura, em 2009, começam a olhar outra vez para o continente e a ver que o que
estava surgindo aqui uma dinâmica autonomista que se opunha em causa ao
princípio fundamental de toda a diplomacia e domínio norte-americanos, que se
resumem a uma expressão: acesso aos recursos naturais.
Estavam a surgir aqui muitas
coisas e um dos casos mais graves era obviamente o Brasil, na medida em que o
país hegemonizava aqui na América Latina, não só pela sua dimensão, mas também
pelo fato de ser um membro importante dos Brics. Portanto, estava a ser uma
alternativa que entrava em linha de confrontação com o dólar, unindo Rússia,
China, Brasil, Índia e África do Sul.
Como não havia nesse momento,
digamos, a ameaça comunista – era difícil de se inventar agora, como
se inventaram antes as ditaduras por haver a Revolução
Cubana – passam a se fazer golpes institucionais usando o
Judiciário. Já se fazia, há décadas, grandes investimentos no Ministério
Público, por parte da CIA e das organizações. Estudei isso por conta do caso
colombiano no qual, para se fazer a tal luta contra a corrupção, contra a
guerrilha, se fez um Judiciário musculoso, muito agressivo, inquisitorial e
nada respeitoso em relação aos processos em nome da luta contra as drogas e
contra o terror.
Esse modelo começou a dar esses
frutos em 2009/2012, pulou para o Paraguai e depois chegamos em 2016. O que se
passou no Brasil desde então não se pode explicar sem exatamente analisar essa
necessidade de se liquidar, neutralizar qualquer política de autonomia no
continente, garantindo o acesso (dos EUA) aos recursos naturais. Obviamente, o
imperialismo norte-americano é uma coisa muito diferente do imperialismo de
antes, não é apenas a CIA ou os militares como a gente pensa, mas uma série de
organizações, muitas vezes privadas, financiadas pelos irmãos Koch. Estes
são realmente os grandes potencializadores das políticas conservadoras nos
Estados Unidos, de extrema direita mesmo, mais conservadora, que tem outras
ramificações. A Atlas (Foundation), que é um reduto importante,
onde está o Instituto Milllenium, Instituto Mises e muitos outros
institutos que estão em funcionamento no Brasil e que fizeram com que hoje os
valores de direita fossem quase "chiques".
Os custos políticos para a
direita
Portanto, houve eventos internos
e uma interferência externa que levaram à situação em que o Brasil se encontra
hoje, uma situação muito complexa, precisamente por ser no país que sediou o
Fórum Social Mundial. Ainda hoje muita gente me pergunta, no mundo, enquanto
estou fazendo minhas palestras, como foi possível neste país tantos retrocessos
em tão pouco tempo, e de uma maneira tão violenta e com tão pouca resistência.
E realmente assim foi. Penso que os movimentos sociais já estavam de alguma
maneira desmobilizados, por diferentes razões, como os que pensavam que já não
era necessária mobilização social porque o governo era amigo, e outros que
tinham sido hostilizados pelo governo e que portanto não estavam em pé de
guerra para defender as suas reivindicações.
Estão acordando agora. Os
retrocessos que se cometeram nos últimos dois anos foram de tal ordem que
transformaram esse político genial que é Lula da Silva em um mártir, e os
lados, digamos, mais frágeis e críticos dos seus governos não podem se discutir
hoje. O que é também problemático, penso que devemos fazer uma discussão desses
erros, até porque o tipo de governo que ele fez não se pode reproduzir no
futuro.
A direita ganharia mais
facilmente as eleições de 2018 se não tivesse ocorrido o golpe. Portanto eles
devem pensar duas vezes no custo político em que se envolveram, mas aqui há
muitos atores internacionais por trás deles que permitiram toda essa
impaciência para destruir o “perigo petista”.
Os poderes que se confundem
Nós temos vários candidatos de
esquerda e vários candidatos de direta neste momento, mas a simetria termina
aqui. Sempre digo que a direta está fragmentada até o segundo turno, dando uma
aparência de fragmentação exatamente para garantir que haja apenas candidatos
de seu campo no segundo turno. No segundo turno, ela será brutal em liquidar
aquilo que não quiser, e vai fazer com todos os instrumentos e toda força que
tem.
Pode o jogo sair das mãos (da
direita), porque há muito atores no jogo brasileiro, o populismo está aí, o
Bolsonaro é o exemplo, mas ele responde não só a uma política de grande
descrédito da democracia levada a cabo muitas vezes pelas próprias instituições
democráticas. Todas as pessoas são a favor da luta contra a corrupção, mas a
corrupção não pode ser a única luta do Judiciário em nenhum país, não pode
estar separada da legitimidade, de princípios fundamentais e da defesa do
sistema democrático, porque levada ao excesso dessa forma pode contribuir para
a destruição do próprio sistema democrático. E é esse o risco que corremos
nesse momento, porque qualquer político que tenha o seu nome associado em uma
delação, que tenha sido feita sem nenhuma prova, tem o seu currículo obviamente
manchado e a sua carreira comprometida.
Nessa medida, é muito fácil criar
o ódio, sobretudo quando temos uma televisão midiática extremamente
monopolizada, com os brasileiros passando quatro a cinco horas por dia vendo
esses programas, no sentido de demonizar os políticos em geral e a
democracia. Quando se demoniza a democracia, vem esse populismo, de
extrema direta, e o Bolsonaro é exatamente uma expressão disso, uma
consequência indireta da Lava Jato ou, se quiser, da forma como foi conduzida,
e portanto há que viver com essa realidade.
Os mercados querem um candidato
de direita, não tem que ser o Bolsonaro, provavelmente pode ser ele na medida
em que apoie a liberalização, privatização de tudo, como quer o Instituto
Millenium e o Mises, a ala mais conversadora da direita. Um Alckmin
provavelmente acabará por fazer mais ou menos a mesma coisa.
Isso é feito pelo interesse
internacional, obviamente que não foi algo impensado, foi tudo calculadíssimo
para que isso se desse e provavelmente pode até ter êxito. Só que nunca tem
êxito completo porque a sociedade felizmente tem outras dinâmicas, a sociedade
começa a mover-se, as pessoas começam a fazer comparações sobre como era nos
“terríveis tempos do Lula”. Como é que se vive hoje? Começam a fazer
comparações, “ah, mas esse senhor não foi que o nos pintaram” e, portanto, as
pessoas começam a acordar, e isso começa a notar-se já, na opinião pública.
Quem defende a democracia é a
esquerda
Tenho defendido que nesse momento
em que vivemos é a esquerda que tem que defender a democracia, e não a direita.
E não é só aqui, penso isso na Europa. Porque a direita se vendeu de tal
maneira aos interesses do neoliberalismo que não tem capacidade, mesmo que
queira, para poder impor alguma regra ao capitalismo. Se não houver regras ao
capitalismo é o capitalismo que impõe regras, situação em que nos encontramos
neste momento.
A esquerda, até porque perdeu
realmente a vertente revolucionária, perdeu a vertente comunista, digamos
assim, de uma alternativa total, hoje garante a democracia em todo o mundo. É
dela que eu espero isso, acho que a direta está totalmente deslegitimada. A
dirita brasileira é golpista, quer dizer, não consigo identificar no Brasil
ninguém genuinamente de direita, com uma política de direita que tenha sido
contra o golpe, que tenha visto as limitações da Lava Jato e esses perigos.
Isto é, colocados a democracia e o interesse republicano acima do interesse
partidário. Não, porque é uma sociedade de extração colonial, que
realmente continua com muitos vieses colonialistas, oligárquicos, em que sempre
privatizaram o Estado, onde o Executivo, o Legislativo e o Judiciário
praticamente não se distinguem uns dos outros.
Com o Judiciário mais autônomo do
mundo, nenhum outro que eu conheço entre os grandes países do mundo tem o
controle do próprio orçamento como tem o vosso Judiciário e, no entanto, acaba
sendo o mais dependente do poder político. Isto é muito estranho, o candidato
que vier a ganhar tem que tirar as lições do passado. Se for um candidato de
esquerda tem que ter muito realismo, porque houve muita destruição nesse
processo e é preciso nesse momento neutralizar algumas destas contrarreformas
que foram feitas, por exemplo, o Teto de Gastos, obviamente um suicídio social,
um absurdo.
Só isso vai levar muito tempo. Um
governo de esquerda vai tentar em um primeiro momento minimizar os danos já
causados, não vai ter nenhuma possibilidade de poder avançar com as políticas
que nós podíamos ter avançado no início da primeira década do milênio, a
reforma política, reforma da mídia e a reforma tributária, que era fundamental.
Vai, acima de tudo, reduzir os riscos e começar a partir daí a criar condições
para uma outra hegemonia, que a meu entender pode e tem que passar pela unidade
da esquerda, e eventualmente, quem sabe, o surgimento de mais algum partido de
esquerda. O Brasil, sendo um país com muitos movimentos sociais, não tem nenhum
partido de movimentos como existe em outros países, por exemplo, na Espanha,
com o Podemos. Aqui, os partidos sempre ficaram relativamente tentando ser os
proprietários dos movimentos, mas os movimentos não pertencem a ninguém e, portanto,
eles próprios podem sair organizados.
Esquerda confrontacional
Se for um governo de esquerda, eu
mesmo apoiarei enquanto for reconhecidamente de esquerda, e não vou entrar
nestas distinções se “é de esquerda” ou “é progressista” porque isso não faz
muito sentido. Acho que vai ser uma política de realismo numa primeira fase,
para começar a ver se há forças para atravessar esse cenário internacional de
crises, no qual o mercado financeiro tem um controle como nunca havia tido
antes.
Portanto, se não se tirar dos
ricos, não haverá nada para dar aos pobres. E isso pode ser o fim de qualquer
expectativa nova em um governo de esquerda. Será necessário tirar dos ricos, a
única maneira ou, digamos, mais simples que se pode fazer, é a via tributária.
Uma política tributária nova que finalmente permita que se faça aquilo que a
democracia pensava, quem tem mais paga mais, quem tem menos paga menos. Estamos
em uma situação absolutamente inversa.
Mas o realismo não é cedência, o
realismo vai ser confrontacional, porque foram muito agressivos e não vão abrir
mão daquilo que já quiseram fazer. Até agora não conseguiram abrir mão da
Previdência, que é a mãe de todas as reformas, mas conseguiram no caso do
pré-sal, que já está profundamente minado. Aquilo que se puder fazer será de
enfrentamento, não tenho dúvidas.
Nós criamos um momento de tão
baixa intensidade de democracia que, aqui no Brasil, qualquer medida, por
pequena que seja no sentido contrário, será confrontacional, não vai ser uma
política de alianças. E, portanto, se um governo de esquerda pensar em alianças
nesse momento, vai ser traído em um segundo momento. E não é preciso esperar
por um Temer, vai ser uma coisa muito mais grotesca e mais rápida. Vão ter que
aprender que não há e não vai haver uma conciliação de classes nos próximos
tempos porque a direita mostrou que efetivamente isso não é um arranjo de
conjuntura, ela quer continuar a ter o poder todo nas mãos, o poder político,
econômico e social.
RBA – Rede Brasil Atual |
Cortesia para PG de Alberto Monteiro de Castro
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