A chacina de centenas de
são-tomenses pela administração colonial e fazendeiros no massacre de Batepá de
1953 é largamente ignorada em
Portugal. Mas contribuiu para criar uma consciência política em São Tomé e Príncipe.
No livro "Espectros de
Batepá. Memórias e Narrativas do Massacre de 1953 em São Tomé e Príncipe”,
apresentado esta quinta-feira (06/09) em Lisboa, a investigadora portuguesa
Inês Nascimento Rodrigues expõe as memórias e narrativas desse
"acontecimento incómodo”, cujos contornos e relatos remetem para a
necessidade de mais investigação para melhor se interpretar o passado.
Mas se é algo de que não se fala
em Portugal, de acordo com a professora são-tomense, Inocência Mata, que
apresentou o trabalho, o massacre de 3 de fevereiro a maio 1953 contribuiu para
despertar a consciência política dos são-tomenses e a necessidade de um
movimento contra o colonialismo favorável à independência.
Tensão entre colonos e a
população local
O "Massacre de Batepá”
ocorreu na localidade do distrito de Mé Zóchi (chamada Batepá). A
historiadora Inês Nascimento Rodrigues, do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra, não vê a chacina como uma simples explosão de
violência isolada. "Para [entendermos] este massacre temos que perceber um
contexto prévio”, disse à DW África.
Segundo a investigadora, os
acontecimentos foram a consequência das relações laborais e sociais no sistema
colonial de então, que distinguia os fôrros – grupo etno-cultural dominante em São Tomé não sujeito ao
estatuto de indigenato – dos trabalhadores contratados oriundos de Angola,
Moçambique e Cabo Verde. Estes últimos eram considerados inferiores e levados
para as ilhas para trabalhar nas roças de cacau e café, tarefas que os fôrros
se recusavam a fazer por as considerarem incompatíveis com a sua posição.
"Toda esta tensão acumulada
entre os vários segmentos populacionais do arquipélago e o facto de nos anos 50
ter havido uma diminuição da mão de obra – porque foi proibido importar mão de
obra de Angola, que precisava dessa força de trabalho –, levou a que as tensões
em São Tomé
entre a administração colonial e as populações se adensassem”, diz a
investigadora, acrescentando: "O massacre acaba por ser o culminar desse
processo que envolveu vários micro processos de repressão e de violência nos
meses imediatamente anteriores ao 3 de fevereiro”.
Despertar da consciência política
O massacre consistiu em vários
atos de violência, prisões em massa, o desterro para o campo de trabalho
forçado em Fernão Dias ,
onde se previa a construção de um cais acostável, além de torturas em cadeira
elétrica e exílio para a ilha do Príncipe de alguns elementos mais destacados
da elite são-tomense. Também houve violações, casas incendiadas e roubo de
terrenos que pertenciam aos fôrros: "O massacre foi mais intenso entre 3 e
7 de fevereiro, mas prolongou-se durante vários meses. E, portanto, acaba por
ser um momento muito marcante da história de São Tomé e Príncipe”, diz Inês
Nascimento Rodrigues.
Para além de ter entrevistado
alguns poucos sobreviventes, durante a pesquisa em São Tomé e Príncipe, a
investigadora falou com pessoas que eram muito jovens na altura do massacre,
mas herdaram memórias repassadas por elementos da família vítimas dos atos
perpetrados pelo regime colonial. Para Rodrigues, há um motivo pelo qual um dos
períodos negros da história colonial é pouco conhecido: "Por não ter
decorrido no contexto das guerras coloniais e de libertação. Por ser anterior,
acaba por passar um pouco mais despercebido. Portanto, falar deste massacre não
era do interesse da administração portuguesa”.
E o que significou o massacre de
Batepá para o movimento de luta pela independência de São Tomé e Príncipe?
Rodrigues afirma não ter encontrado evidências concretas da relação direta com
os processos de luta de libertação. Mas para a investigadora santomense,
Inocência Mata, que fez a apresentação do livro de Inês Rodrigues, o massacre
de 1953 foi um acontecimento que despertou a consciência política dos
são-tomenses, porque «ele foi dirigido contra a elite». O então governador
colonial, Carlos Gorgulho, dizia que era a elite que incentivava os
são-tomenses a não aceitarem os contratos para trabalhar nas roças - lembra.
"De maneira que eu acho – aliás, muitos historiadores dizem isso – que o
massacre de 1953 foi espolete para uma consciência política e a necessidade de
um movimento contra o colonialismo”.
Necessidade de confrontar a
História
Por ser pouco conhecido, Inês
Nascimento Rodrigues concorda que é importante o papel da investigação para
esclarecer o que foi "este passado incómodo difícil de se falar”. É
fundamental continuar com as investigações, sublinha. "Por outro lado, a
minha grande ambição é que este livro funcione como um arquivo de imaginação do
massacre, que permita que outras leituras possam ser feitas a partir dele, até
de outras perspetivas ou outras áreas disciplinares”, disse à DW África.
Inês Rodrigues diz que ainda há
muito por explorar, de modo a potencializar também o diálogo e o conhecimento
entre as pessoas, de acordo com o que vivenciou em São Tomé e Príncipe:
"Foi muito comovente ver como as pessoas tinham sede de falar sobre estes
acontecimentos”.
Portugal e São Tomé e Príncipe
têm por essa via a oportunidade de quebrar o silêncio sobre esse período da
História dos dois países. "É uma história comum a Portugal e a São Tomé e
Príncipe. É uma história que, com certeza, passa de geração em geração de modos
muito diferentes, obviamente com impactos muito diferentes tanto em Portugal
como em São Tomé
e Príncipe e que é importante debater”, concluiu a investigadora.
João Carlos (Lisboa) |
Deutsche Welle
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