quarta-feira, 12 de setembro de 2018

São Tomé e Príncipe | O massacre esquecido de Batepá


A chacina de centenas de são-tomenses pela administração colonial e fazendeiros no massacre de Batepá de 1953 é largamente ignorada em Portugal. Mas contribuiu para criar uma consciência política em São Tomé e Príncipe.

No livro "Espectros de Batepá. Memórias e Narrativas do Massacre de 1953 em São Tomé e Príncipe”, apresentado esta quinta-feira (06/09) em Lisboa, a investigadora portuguesa Inês Nascimento Rodrigues expõe as memórias e narrativas desse "acontecimento incómodo”, cujos contornos e relatos remetem para a necessidade de mais investigação para melhor se interpretar o passado.

Mas se é algo de que não se fala em Portugal, de acordo com a professora são-tomense, Inocência Mata, que apresentou o trabalho, o massacre de 3 de fevereiro a maio 1953 contribuiu para despertar a consciência política dos são-tomenses e a necessidade de um movimento contra o colonialismo favorável à independência.

Tensão entre colonos e a população local

O "Massacre de Batepá” ocorreu na localidade do distrito de Mé Zóchi (chamada Batepá). A historiadora Inês Nascimento Rodrigues, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, não vê a chacina como uma simples explosão de violência isolada. "Para [entendermos] este massacre temos que perceber um contexto prévio”, disse à DW África.

Segundo a investigadora, os acontecimentos foram a consequência das relações laborais e sociais no sistema colonial de então, que distinguia os fôrros – grupo etno-cultural dominante em São Tomé não sujeito ao estatuto de indigenato – dos trabalhadores contratados oriundos de Angola, Moçambique e Cabo Verde. Estes últimos eram considerados inferiores e levados para as ilhas para trabalhar nas roças de cacau e café, tarefas que os fôrros se recusavam a fazer por as considerarem incompatíveis com a sua posição.

"Toda esta tensão acumulada entre os vários segmentos populacionais do arquipélago e o facto de nos anos 50 ter havido uma diminuição da mão de obra – porque foi proibido importar mão de obra de Angola, que precisava dessa força de trabalho –, levou a que as tensões em São Tomé entre a administração colonial e as populações se adensassem”, diz a investigadora, acrescentando: "O massacre acaba por ser o culminar desse processo que envolveu vários micro processos de repressão e de violência nos meses imediatamente anteriores ao 3 de fevereiro”.

Despertar da consciência política

O massacre consistiu em vários atos de violência, prisões em massa, o desterro para o campo de trabalho forçado em Fernão Dias, onde se previa a construção de um cais acostável, além de torturas em cadeira elétrica e exílio para a ilha do Príncipe de alguns elementos mais destacados da elite são-tomense. Também houve violações, casas incendiadas e roubo de terrenos que pertenciam aos fôrros: "O massacre foi mais intenso entre 3 e 7 de fevereiro, mas prolongou-se durante vários meses. E, portanto, acaba por ser um momento muito marcante da história de São Tomé e Príncipe”, diz Inês Nascimento Rodrigues.

Para além de ter entrevistado alguns poucos sobreviventes, durante a pesquisa em São Tomé e Príncipe, a investigadora falou com pessoas que eram muito jovens na altura do massacre, mas herdaram memórias repassadas por elementos da família vítimas dos atos perpetrados pelo regime colonial. Para Rodrigues, há um motivo pelo qual um dos períodos negros da história colonial é pouco conhecido: "Por não ter decorrido no contexto das guerras coloniais e de libertação. Por ser anterior, acaba por passar um pouco mais despercebido. Portanto, falar deste massacre não era do interesse da administração portuguesa”.

E o que significou o massacre de Batepá para o movimento de luta pela independência de São Tomé e Príncipe? Rodrigues afirma não ter encontrado evidências concretas da relação direta com os processos de luta de libertação. Mas para a investigadora santomense, Inocência Mata, que fez a apresentação do livro de Inês Rodrigues, o massacre de 1953 foi um acontecimento que despertou a consciência política dos são-tomenses, porque «ele foi dirigido contra a elite». O então governador colonial, Carlos Gorgulho, dizia que era a elite que incentivava os são-tomenses a não aceitarem os contratos para trabalhar nas roças - lembra. "De maneira que eu acho – aliás, muitos historiadores dizem isso – que o massacre de 1953 foi espolete para uma consciência política e a necessidade de um movimento contra o colonialismo”.


Necessidade de confrontar a História

Por ser pouco conhecido, Inês Nascimento Rodrigues concorda que é importante o papel da investigação para esclarecer o que foi "este passado incómodo difícil de se falar”. É fundamental continuar com as investigações, sublinha. "Por outro lado, a minha grande ambição é que este livro funcione como um arquivo de imaginação do massacre, que permita que outras leituras possam ser feitas a partir dele, até de outras perspetivas ou outras áreas disciplinares”, disse à DW África.

Inês Rodrigues diz que ainda há muito por explorar, de modo a potencializar também o diálogo e o conhecimento entre as pessoas, de acordo com o que vivenciou em São Tomé e Príncipe: "Foi muito comovente ver como as pessoas tinham sede de falar sobre estes acontecimentos”.

Portugal e São Tomé e Príncipe têm por essa via a oportunidade de quebrar o silêncio sobre esse período da História dos dois países. "É uma história comum a Portugal e a São Tomé e Príncipe. É uma história que, com certeza, passa de geração em geração de modos muito diferentes, obviamente com impactos muito diferentes tanto em Portugal como em São Tomé e Príncipe e que é importante debater”, concluiu a investigadora.

 João Carlos (Lisboa) | Deutsche Welle

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