sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Angola | Construir ou reconstruir


Sousa Jamba | Jornal de Angola | opinião

Um dos meus livros favoritos é intitulado a “Tirania das Palavras.” Publicado em 1936 pela Stuart Chase, o cerne do argumento desta obra é que às vezes ficamos tão encurralados nas palavras que perdemos a noção da realidade.

Angola está a reconstruir ou a ser construída? Quando se dá muito ênfase no termo “reconstrução” passamos cada vez mais a gastar tempo com o retrovisor da história, imaginando um passado, e facilmente caímos numa mitologia. Nova Lisboa, o Huambo do tempo colonial, foi uma grande cidade com várias salas de cinema, com salões de concertos em que figuravam artistas internacionais etc. Porém , nós os negros, não fazíamos parte de todo o esplendor desta localidade. Nós vivíamos nos bairros do Bom Pastor, Cacilhas, Bomba Alta, etc, em casas de adobe, usando água da cacimba, fogareiros a carvão e candeeiros a petróleo. O que devemos é construir um futuro em que todos os Angolanos possam viver com uma certa dignidade. 

Há jovens no Huambo hoje que não fazem a mínima noção do tempo colonial ou mesmo da guerra. Esses jovens querem e devem criar: o Estado deve criar um clima em que a sua criatividade possa brilhar. Mas eles devem ser norteados por valores baseados numa ética profunda. 

A guerra teve um efeito profundamente negativo no nosso país. Angolanos como nós da diáspora têm que ter aquela capacidade de empatia para podermos apreciar a grande tragédia que ocorreu por cá. Felizmente, já estamos a lidar com jovens, como já disse, que não conheceram a guerra – isto é, de alguma forma, uma mais valia; estes jovens não vão estar a reconstruir um passado que não viveram; a estes jovens deve é ser dada a oportunidade para criar e construir. 

Recentemente, estive na vila das Boas Águas, perto do Huambo. Esta localidade, que está ao longo do caminho de ferro, tinha a fama no tempo colonial de produzir muitas maçãs. Quando cheguei lá havia apenas uma loja, cheia de vinho português. Os habitantes da vila viviam em casas pequenas que tinham sido construídas numa iniciativa que, no papel, fazia muito sentido, mas na prática estava a provar ser um grande desastre. As casas, aparentemente, iriam resolver o problema da habitação social, etc. Pessoas que viviam em aldeias (encontrei até parentes meus) vieram para essas pequenas casas. Algumas dessas casas já tinham adições de adobe que iriam servir como currais para animais ou mesmo quartos adicionais para membros da família. Porque razão é que não se pensou em ter equipas técnicas que pudessem projectar casas usando materiais locais mas que elevassem a qualidade de vida dos cidadãos? 

Estive recentemente no Huambo a conhecer a periferia da cidade com um jovem arquitecto. Ele foi formado no Huambo. Ele disse-me que no passado tinha tido uma proposta para projectar uma loja numa aldeia que iria usar materiais locais. Infelizmente, o projecto nunca chegou a ser realizado. Há, em Angola, muito talento que deve ser explorado avidamente. Nos bairros da periferia no Huambo há muitas jóias arquitectónicas – casas que dão gosto de ver. Fala-se muito da arquitectura colonial no Huambo que é muito arrojada, o que é verdade. Isto surgiu em parte porque os jovens arquitectos vindos da metrópole sentiam uma certa liberdade em inventar. Porquê é que os nossos jovens não podem continuar a inventar? Porque razão um edifício no Huambo do pós guerra – a Biblioteca Municipal – é produto de um arquitecto português? 

Há, no Huambo, um edifício na Sanjuca – casa feita na forma de foguetões amarelos – que suscita muita emoção; muitas pessoas não podem com aquela criação. Eu discordo. Não sei quem foi o arquitecto por trás da obra – porém, noto alguém com paixão, é uma visão vibrante. Paramos diante daquele edifício e conseguimos dialogar com uma outra Angola; devemos mesmo dialogar com várias outras Angolas. É isto que dará ao país uma qualidade singular e de valor. 

Nas minhas andanças pelo Planalto, visitei três mercados municipais – do Bailundo, Kachiungo e Chinguar. No Bailundo, os produtos estavam a ser vendidos em condições que deveriam preocupar todos: carne coberta de moscas a ser vendida perto de poços em que várias coisas estavam a apodrecer; crianças cobertas de lama ou poeira a brincar por todo o lado. Claro que em todos mercados que visitei não havia nenhuma medida para garantir o mínimo de higiene. As casas de banho eram rudimentares e não havia nem água ou sabão. Depois de uma epidemia, suspeito, haverá pânico. Interroguei-me porque razão, por exemplo, é que a administração local não promovia um concurso em que vários jovens arquitectos pudessem projectar mercados municipais dignos e sustentáveis usando material local? 

Se superarmos a noção de que estamos a construir e não reconstruir então vamos ser forçados a ter um diálogo sério sobre a planificação das cidades, vilas, e mesmo das aldeias. Estou a escrever isto cá no Chiumbo, perto de Manico, aldeia fundada pelos meus avôs – Njamba e Manico. Ali há formas de cultivar que não mudaram por séculos. Outro dia vi famílias com enxadas a trabalhar o solo – tarefa que podia ser facilitada se houvesse pequenos tractores a mão usados na Índia e China, e que devem custar o mesmo preço que um gerador. Cá está uma grande oportunidade de um empresário montar uma fábrica para providenciar pequenas máquinas que seriam acessíveis a muita gente. Aqui ainda não é preciso aqueles projectos agrícolas gigantescos, apoiados com milhões do Estado, mas que resultam em muita sucata e dívidas gigantescas.

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