"Poderá dizer-se que a
democracia em que vivemos, sequestrada, condicionada e amputada, é
também uma democracia leiloada."
(…) “A democracia está aí como se
fosse uma espécie de santa de altar de quem já não se esperam milagres, mas que
está aí como uma referência – a Democracia - e não se repara que a democracia
em que vivemos é uma democracia sequestrada, condicionada, amputada (…)”.
Julgo que, hoje em dia, se
justifica acrescentar mais um adjectivo a esta luminosa declaração de José
Saramago e, então, poderá dizer-se que a democracia em que vivemos, sequestrada,
condicionada e amputada, é também uma democracia leiloada, como se,
por escassez de milagres, fôssemos deparar com a santa de altar num
qualquer efémero bric-à-brac de ideias, com que a hipermodernidade encena
o seu próprio vazio.
Então não é verdade que Portugal
está em 10º lugar no ranking das democracias a nível mundial? Exclamarão,
rubros de proselitismo, os apóstolos da nossa modernidade, acentuando que assim
é dito e atestado pelo segundo Relatório da Democracia de 2018, do
projecto Variedades da Democracia (V-Dem), que avalia a “qualidade da
democracia” em 201 países de todo o mundo. Para, no mesmo lance,
escamotearem que Portugal desce do 11º para o 38º lugar em matéria de
participação politica.
“Variedades de democracia”? Que coisa
estranha é essa! – diremos nós!… Como se a Democracia fosse um cardápio self-service, ou
pronto-a-vestir numa qualquer estância de Moda, e não emanação perene
do devir histórico, que tem o seu acto fundador na gesta revolucionária de 1789
e na sua pulsão de Liberdade e Igualdade – irmãos siameses – como
eram referidas pelos próceres da Revolução liberal-burguesa.
“Qualidade da democracia”? Como
se a democracia pudesse admitir graus, ou mover-se sobre muletas, que é como
quem diz, como se o mero exercício formal da escolha dos governos, pudesse
alienar a matriz em que se funda o poder democrático e o desígnio
revolucionário do Governo do Povo, pelo Povo, para o Povo.
Apesar do valor indiscutível de
eleições livres, como método de delegação dos poderes de soberania e de escolha
dos governos, a verdade é que o Governo do Povo para o Povo se
apresenta cada vez mais distante, com as grandes decisões, que realmente
determinam a vida dos povos e o próprio destino da Humanidade, fora de alcance
e do escrutínio dos cidadãos e os Estados subjugados ao poder difuso dos
grandes grupos económico-financeiros. E, assim, vemos democracias e povos leiloados pelos
cavaleiros da “nova economia” ou os barões do capital financeiro, que traçam as
suas estratégias de futuro e se digladiam por mais poderio, por cima de milhões
de seres humanos e de legiões de desempregados.
Manifestamente, o Estado nacional
deixou de ser compatível com os interesses do capitalismo global. E a
Comunidade Europeia, como se sabe é, em sua essência, na actual fase da
evolução da Europa, uma rede de instrumentos institucionais de articulação do
capitalismo transnacional que, com a introdução da moeda única, deu impulso
decisivo em direcção ao federalismo.
E esse garrote asfixia a
possibilidade de autodeterminação dos povos europeus e “expropria” os poderes
de soberania dos Estados, sujeitando-os aos ditames e aos interesses
estratégicos do capitalismo global. Acresce que, sem pingo de pudor, à vista de
toda a gente, os dirigentes das instituições comunitárias passam, findos os
mandatos (se não antes), com retribuições escandalosas, para porta-vozes e
dirigentes dos grandes empórios económico-financeiros.
A crise dos Estados nacionais e
promiscuidade do exercício de funções públicas e privadas, nas altas instâncias
do poder económico-político, acarretam inevitavelmente a crise da política e da
cidadania e crise também dos direitos fundamentais, que permanecem como
salvaguarda ideológica do domínio do capitalismo global - meras formalidades
no altar dos direitos humanos.
Por outro lado, o desemprego, a
exclusão social e a miséria e, sobretudo, “a angústia que eles inspiram” colocam
a cidadania em perigo pela apatia e o divórcio dos cidadãos com a política, bem
patente aliás, na expressão constrangedora da abstenção nos processos
eleitorais. Numa sociedade em que, cada vez mais, os cidadãos são descartáveis no
processo produtivo, o medo da despromoção social, da perda de emprego e de
direitos, tanto quanto a miséria e a pobreza que alastram, tornam os cidadãos
cada vez mais dóceis e conformados.
E em situação de debilidade económica,
os cidadãos, perante o vazio de suas vidas e de alienação
ideológica são facilmente seduzidos por “salvadores” populistas e
promessas redentoras. Assim, tanto quanto se alcança, será neste quadro de
referências, que não esgota a análise do problema, que se deverá entender a
emergência da extrema-direita na Europa, designadamente, na França, Alemanha,
Áustria, Itália, República Checa, etc.
A gravidade desta questão reforça
as prevenções daqueles que, preocupados com a aceleração do “processo de
fusão da técnica e da economia” e o rumo que o capitalismo está a impor à
Humanidade, afirmam que a mais eminente missão dos políticos preocupados com a
democracia será, nos alvores do Século XXI, devolver aos Estados as suas
funções de soberania e de restabelecer o primado da política sobre a economia.
Estas fundadas preocupações, no
caso particular da emergência dos fenómenos de extrema-direita na União
Europeia, reclamam que, como foi dito em outros espaços de expressão política,
se mate a serpente no ovo, isto é, que se extraia o problema na sua origem e
causas profundas e não nos limitemos a “excitar” o réptil, afagando-lhe a
causa, agitando piedosas proclamações ou impondo aos países inócuos “castigos”
sem sentido, ou significado substancial.
Seara Nova | editorial
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