segunda-feira, 29 de outubro de 2018

O ovo da serpente


"Poderá dizer-se que a democracia em que vivemos, sequestrada, condicionada e amputada, é também uma democracia leiloada."

(…) “A democracia está aí como se fosse uma espécie de santa de altar de quem já não se esperam milagres, mas que está aí como uma referência – a Democracia - e não se repara que a democracia em que vivemos é uma democracia sequestrada, condicionada, amputada (…)”.

Julgo que, hoje em dia, se justifica acrescentar mais um adjectivo a esta luminosa declaração de José Saramago e, então, poderá dizer-se que a democracia em que vivemos, sequestrada, condicionada e amputada, é também uma democracia leiloada, como se, por escassez de milagres, fôssemos deparar com a santa de altar num qualquer efémero bric-à-brac de ideias, com que a hipermodernidade encena o seu próprio vazio.

Então não é verdade que Portugal está em 10º lugar no ranking das democracias a nível mundial? Exclamarão, rubros de proselitismo, os apóstolos da nossa modernidade, acentuando que assim é dito e atestado pelo segundo Relatório da Democracia de 2018, do projecto Variedades da Democracia (V-Dem), que avalia a “qualidade da democracia” em 201 países de todo o mundo. Para, no mesmo lance, escamotearem que Portugal desce do 11º para o 38º lugar em matéria de participação politica.

“Variedades de democracia”? Que coisa estranha é essa! – diremos nós!… Como se a Democracia fosse um cardápio self-service, ou pronto-a-vestir numa qualquer estância de Moda, e não emanação perene do devir histórico, que tem o seu acto fundador na gesta revolucionária de 1789 e na sua pulsão de Liberdade e Igualdade – irmãos siameses – como eram referidas pelos próceres da Revolução liberal-burguesa.

“Qualidade da democracia”? Como se a democracia pudesse admitir graus, ou mover-se sobre muletas, que é como quem diz, como se o mero exercício formal da escolha dos governos, pudesse alienar a matriz em que se funda o poder democrático e o desígnio revolucionário do Governo do Povo, pelo Povo, para o Povo.

Apesar do valor indiscutível de eleições livres, como método de delegação dos poderes de soberania e de escolha dos governos, a verdade é que o Governo do Povo para o Povo se apresenta cada vez mais distante, com as grandes decisões, que realmente determinam a vida dos povos e o próprio destino da Humanidade, fora de alcance e do escrutínio dos cidadãos e os Estados subjugados ao poder difuso dos grandes grupos económico-financeiros. E, assim, vemos democracias e povos leiloados pelos cavaleiros da “nova economia” ou os barões do capital financeiro, que traçam as suas estratégias de futuro e se digladiam por mais poderio, por cima de milhões de seres humanos e de legiões de desempregados.

Manifestamente, o Estado nacional deixou de ser compatível com os interesses do capitalismo global. E a Comunidade Europeia, como se sabe é, em sua essência, na actual fase da evolução da Europa, uma rede de instrumentos institucionais de articulação do capitalismo transnacional que, com a introdução da moeda única, deu impulso decisivo em direcção ao federalismo.

E esse garrote asfixia a possibilidade de autodeterminação dos povos europeus e “expropria” os poderes de soberania dos Estados, sujeitando-os aos ditames e aos interesses estratégicos do capitalismo global. Acresce que, sem pingo de pudor, à vista de toda a gente, os dirigentes das instituições comunitárias passam, findos os mandatos (se não antes), com retribuições escandalosas, para porta-vozes e dirigentes dos grandes empórios económico-financeiros.

A crise dos Estados nacionais e promiscuidade do exercício de funções públicas e privadas, nas altas instâncias do poder económico-político, acarretam inevitavelmente a crise da política e da cidadania e crise também dos direitos fundamentais, que permanecem como salvaguarda ideológica do domínio do capitalismo global - meras formalidades no altar dos direitos humanos.

Por outro lado, o desemprego, a exclusão social e a miséria e, sobretudo, “a angústia que eles inspiram” colocam a cidadania em perigo pela apatia e o divórcio dos cidadãos com a política, bem patente aliás, na expressão constrangedora da abstenção nos processos eleitorais. Numa sociedade em que, cada vez mais, os cidadãos são descartáveis no processo produtivo, o medo da despromoção social, da perda de emprego e de direitos, tanto quanto a miséria e a pobreza que alastram, tornam os cidadãos cada vez mais dóceis e conformados.

E em situação de debilidade económica, os cidadãos, perante o vazio de suas vidas e de alienação ideológica são facilmente seduzidos por “salvadores” populistas e promessas redentoras. Assim, tanto quanto se alcança, será neste quadro de referências, que não esgota a análise do problema, que se deverá entender a emergência da extrema-direita na Europa, designadamente, na França, Alemanha, Áustria, Itália, República Checa, etc.

A gravidade desta questão reforça as prevenções daqueles que, preocupados com a aceleração do “processo de fusão da técnica e da economia” e o rumo que o capitalismo está a impor à Humanidade, afirmam que a mais eminente missão dos políticos preocupados com a democracia será, nos alvores do Século XXI, devolver aos Estados as suas funções de soberania e de restabelecer o primado da política sobre a economia.

Estas fundadas preocupações, no caso particular da emergência dos fenómenos de extrema-direita na União Europeia, reclamam que, como foi dito em outros espaços de expressão política, se mate a serpente no ovo, isto é, que se extraia o problema na sua origem e causas profundas e não nos limitemos a “excitar” o réptil, afagando-lhe a causa, agitando piedosas proclamações ou impondo aos países inócuos “castigos” sem sentido, ou significado substancial.

Seara Nova | editorial

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